“O ouro e a madeira”
“O ouro / afunda no mar / madeira / fica por cima…” Assim se inicia o refrão de “O ouro e a madeira”, de Eraldo Gentil, interpretada por gigantes da música brasileira como Originais do Samba e Beth Carvalho e que inspira o título deste artigo. A canção orienta o tom do texto: sobrevivente de um país que nos persegue à morte, o movimento negro brasileiro permanece no front da construção de uma sociedade justa
Entre crises políticas e institucionais, é o povo quem deve produzir o show e assinar a direção
Em 2013, as ruas tomadas por ciclos de protestos políticos nas chamadas Jornadas de Junho marcaram a história da democracia nacional. Naquele momento se evidenciou a crise política que, de maneira direta ou indireta, atravessava a cronologia sociopolítica brasileira que culminou no golpe parlamentar que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República.
Além disso, a última década brasileira foi marcada por tragédias que colocaram em xeque a democracia, na medida em que escancararam a desigualdade social e o racismo como projetos de aniquilamento do povo brasileiro, como o desaparecimento de Amarildo Souza, a prisão de Rafael Braga, o desastre de Mariana e Brumadinho, a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, a pandemia de Covid-19 e suas consequências psicossociais. A crise da democracia brasileira teve sua expressão máxima, no último período, com a invasão em Brasília simulando uma tentativa de golpe de Estado.
As eleições presidenciais de 2022 deram o tom da decisão que precisava ser tomada: a defesa da ordem democrática ou a decretação do fim do Brasil enquanto nação. Assim, em outubro, um respiro de alívio: a construção de uma frente ampla para a defesa da democracia, que expressou a soberania popular estabelecida na Constituição de 1988, culminando na eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o terceiro mandato no Poder Executivo federal.
Não faltaram percalços. Nesses dez anos, vivemos um cenário de sufocamento dos espaços públicos para a organização e a participação política. Porém, a mobilização popular da esquerda em torno da defesa da democracia foi vital e, até aqui, não há história sobre as disputas políticas no país que tenham sido atravessadas pela indignação com as opressões transformada em ação política direta e organizada dos movimentos sociais e da sociedade civil.
Lições históricas do movimento negro: enquanto houver racismo, não haverá democracia
21 de março de 2023. Vinte anos após a criação daquela que traduz o reconhecimento do Estado sobre o racismo operante na sociedade brasileira, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), estão presentes em celebração no Palácio de Planalto importantes figuras do movimento negro no Brasil.
Nessa data, em reforço ao seu compromisso com a erradicação da desigualdade e das opressões, o presidente Lula anunciou e assinou junto ao Ministério da Igualdade Racial (MIR) o Pacote pela Igualdade Racial, que prevê sete medidas pela igualdade racial no Brasil. Importante lembrar que, em âmbito global, a data de 21 de março também marca o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, estabelecido pela ONU em memória ao Massacre de Shaperville na África do Sul. Tanto a existência do MIR como o calendário das Nações Unidas são resultado dos avanços que a resistência negra provocou no combate ao racismo.
Nessa perspectiva, ressaltamos, em síntese, a valorosa atuação histórica do movimento negro brasileiro na construção de uma democracia antirracista, apesar dos acontecimentos da última década, marcada por desafios político-institucionais, econômicos, culturais e sociais que aprofundaram a desigualdade racial brasileira.
Medidas como a criação do MIR e do Pacote pela Igualdade Racial são importantes acenos sobre a disposição desse governo no combate ao racismo e à desigualdade racial produzida na realidade do Brasil. Esse espírito retrata os movimentos de ampliação da participação social cidadã no diálogo e construção dos movimentos sociais e da sociedade civil junto ao governo.
Mesmo com a vitoriosa eleição do presidente Lula, não ganhamos o jogo. É preciso conduzir a atuação desse governo ao atendimento dos interesses das classes sociais mais pobres, que foram constante alvo da sanha genocida do governo Bolsonaro.
É indispensável que a agenda de defesa dos direitos humanos, fundamentais e sociais esteja na ordem do dia de todo cidadão e cidadã deste país, inclusive daqueles que estão em serviço no atual governo. Pautas como segurança pública e sistema de justiça, clima e meio ambiente, segurança alimentar, educação, saúde e infraestrutura, organizadas em conjunto ou separadamente, formam as principais agendas defendidas pelos movimentos sociais de esquerda no país.
Mesmo que o atual governo seja aberto à participação social, estamos longe de viver em uma democracia igualitária. Ainda há intensos desafios a serem enfrentados na formação de uma consciência e prática políticas distantes da alienação social e da colonização cultural eurocêntricas. Sendo assim, o trabalho dos movimentos sociais e da sociedade civil do campo progressista para articular de forma organizada denúncias sobre o estado de coisas e reivindicar sua mudança precisa seguir incisivo.
Tratando da segurança pública e do sistema de justiça criminal, por exemplo, o debate sobre o perfilamento racial feito no Supremo Tribunal Federal no âmbito do habeas corpus 208.240 evidencia a necessidade de engajar a discussão sobre a atuação truculenta e discriminatória impregnada na atuação policial; e, para além disso, discutir o papel fundamental do Poder Judiciário na garantia de direitos fundamentais da população negra.
No debate climático e ambiental, temos a urgência de trazer para o centro a vida, a dignidade e a humanidade, por meio do protagonismo dos povos originários, que carregam, sem dúvida, o saber para enfrentar a crise climática. É imprescindível tratar do meio ambiente sustentável conforme preconizado no texto da Carta Constitucional de 1988 com base nos sujeitos desse direito. É papel das instituições democráticas trazer a noção de justiça social e racismo ambiental para pensar em políticas de mitigação e adaptação climática, no enfrentamento de questões nevrálgicas como a titulação de terras de povos originários e na regulação do mercado de carbono, por exemplo.
Por meio da compreensão de que a organização do capital econômico provoca desigualdades materiais, é necessário tratar de forma séria a disputa climática há anos construída no país. No entanto, é preciso que estejam na centralidade desta as desigualdades sociais e territoriais que condicionam as populações pobres, negras, quilombolas e indígenas aos efeitos mais severos da crise do clima. Nesse sentido, os temas ambiental e climático deve estar relacionado aos temas das vulnerabilidades sociais e econômicas e do poder, especificamente do poder real na organização da sociedade global.
Nessa toada, parece-nos que a mobilização do direito e das instituições políticas para ações políticas coletivas não será estanque, tendo em vista a necessidade de que as demandas sociais sejam tratadas e viabilizadas pelos Três Poderes, cada um no bojo de suas competências.
Com esse cenário, as expectativas de atuação de diálogo entre movimentos sociais e sociedade civil com o governo não podem deixar escapar a importância estratégica do tensionamento para ampliar a justiça social e fomentar políticas públicas. Apesar da vitória de parlamentares progressistas, o Congresso Nacional segue dominado e a serviço dos interesses das elites políticas e econômicas do país. Portanto, é forçoso dizer que a disputa na arena político-institucional e a construção da luta popular precisam ser rigorosas.
Sabemos que há quem invista na miséria – presente, por exemplo, na postura resistente do Banco Central em reduzir a taxa de juros, o que, entre outras coisas, aliviaria a vida dos pobres deste país. Ao contrário disso, temos em construção constante um projeto de vida para a sociedade brasileira e, em constante caminhar, carregamos em nossa história o passado, o presente e o futuro; no aqui e no agora somos o lastro vivo da luta de ontem e da vitória de amanhã.
O projeto político do movimento negro está historicamente comprometido com a construção de uma sociedade justa, solidária e antirracista, e neste período não seria diferente.
“Que democracia?”: novos desafios, possíveis saídas para a retomada democrática no Brasil
Que tipo de conceito de democracia é disputado para pensar em qual tipo de democracia que está sendo construída no Brasil? Certo que esse é um questionamento central ao desafio per se da retomada democrática no contexto político atual. Em que pese a eleição Lula 3, é inegável a presença do bolsonarismo na institucionalidade brasileira, sendo um dos mais densos desafios políticos e institucionais a serem encarados de maneira contundente.
Concordamos que o pacto democrático de 1988 foi rompido por parte da direita com o golpe que retirou Dilma da Presidência e que essa ruptura evidencia a prática radicalmente antidemocrática por parte da extrema direita em nível individual, regional e global, que atinge os países da América Latina de maneira específica, considerando o processo de colonização e exploração de mão de obra escravizada.
Não podemos perder de vista a forma como o Brasil se organiza enquanto sociedade. Em quadro histórico resumido, a convivência democrática não se apresentou como realidade na história da sociedade brasileira. Exemplo disso é o mito da democracia racial superado no campo teórico que arrasta correntes quando pensamos na dinâmica social pautada em uma ideologia racista.
Nesse sentido, a trivial ideia e proposta de transformação de estruturas de uma sociedade forjada historicamente no escravismo que gera uma ideologia autoritária e racista, como afirma Clóvis Moura, não parecem servir à consecução de um projeto coletivo democrático que priorize a vida e a justiça social. Precisamos apostar na construção de projetos políticos essencialmente comprometidos com a descontinuidade da produção de desigualdade e opressões. A teoria a serviço da ação política antirracista se apresenta como uma imprescindível resposta ao crescimento da extrema direita no Brasil.
A prática antirracista é, por excelência, anticapitalista. Partindo dessa compreensão para construir a retomada democrática na atual conjuntura, mostra-se essencial o reforço à mobilização social da esquerda em torno das pautas sociais a fim de retomar a legitimidade da ocupação das ruas em busca de resultados concretos de nossas demandas por igualdade. Para isso, parece-nos central que a consciência de classe sobre a situação de exploração do capitalismo neste tempo histórico seja tratada no âmbito coletivo. Outro desafio (nada novo) que se mostra, portanto, é criar uma consciência coletiva sobre nosso papel em nossas comunidades e territórios, em detrimento da ideologia da hierarquia que domina a sociedade brasileira, como já afirmou há décadas Lélia Gonzales.
Tendo em vista a dinâmica sistêmica de violações de direitos e produção de desigualdade na realidade brasileira – sobretudo em relação à população negra –, é de primeira importância a exigência de ações positivas do Estado brasileiro na garantia e proteção de direitos constitucionais. É preciso elevar o investimento público em políticas voltadas a garantir o pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais das populações negra e quilombola, dos povos originários, das mulheres, da população LGBTQIA+, das crianças, da juventude, dos nossos mais velhos.
Políticas voltadas à igualdade racial se mostram historicamente centrais para retardar o colapso irreversível da sociedade, demonstrando a essencial necessidade de que o antirracismo seja encarado como compromisso e tarefa de toda a sociedade brasileira. O interesse e os esforços políticos pela luta antirracista devem ser coerentes com a superação da ideia de democracia, ou com seu conteúdo formal. A construção de uma democracia que nos caiba vivos é inegociável, bem como a prevalência da salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais que inauguram a ordem democrática brasileira.
Parafraseando Florestan, está entre um de nossos desafios responder à pergunta “Que democracia?” construiremos daqui em diante e, nesse sentido, devemos nos preocupar em mobilizar na prática novos valores que formarão as gerações futuras e serão transmitidos a elas sobre a compreensão coletiva do que é a vida e a dignidade humanas.
*Ágatha de Miranda é mestranda e pesquisadora na Escola de Direito da FGV-SP e coordenadora na Diretoria de Incidência Política do Instituto de Referência Negra Peregum; Beatriz Lourenço do Nascimento é advogada graduada pela PUC-SP, técnica em Gestão Ambiental e militante do Movimento Negro Uneafro Brasil; Vanessa Nascimento é diretora-executiva do Instituto de Referência Negra Peregum e militante do Movimento Negro Uneafro Brasil; e Marcos Amaral é coordenador de Incidência Político-Institucional do Amma Psique e Negritude: Centro de Pesquisa Formação e Referência em Relações Raciais e doutorando em Psicologia da Educação pela PUC-SP.
Referências bibliográficas
FERNANDES, Florestan. Que tipo de república? 2. ed. São Paulo: Globo, 2007.
GONZALES, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
HARRIS, Angela P. Vulnerability and Power in the Age of the Anthropocene [Vulnerabilidade e poder na era do Antropoceno], Washington and Lee Journal of Energy, Climate and the Environment, v.6, 2015.
MACIEL, Débora Alves. Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: o caso da Campanha da Lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.26, n.77, out. 2011.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.
SANTOS, Fabiano; SZWAKO, José. Da ruptura à reconstrução democrática no Brasil. Saúde em Debate, v.40, p.114-121, dez. 2016.
SANTOS, Milton. Pobreza urbana. São Paulo: Edusp, 2009.