O pacote de Moro nasce velho
Moro sugeriu que juízes possam extinguir penas de policiais que alegarem que mataram por estarem submetidos a “violenta emoção, escusável medo ou surpresa”. Pergunto: se o cabo que matou Hélio justificasse que atirou porque se sentiu surpreendido, seria justo que ele não fosse responsabilizado?
Já havia anoitecido quando Jhonata Alves, de 16 anos, saiu da casa do tio, no Morro do Borel, na Tijuca, para voltar para a Usina, na zona norte carioca, onde vivia com a mãe e os quatro irmãos. Ele fora buscar saquinhos de pipoca para a festa junina da creche do caçula, que aconteceria no dia seguinte. Mas Jhonata nem sequer conseguiu sair da favela. Quando descia o morro, foi assassinado com um tiro de pistola na cabeça disparado por um PM da UPP do Borel. O policial teria confundido os pacotes de pipoca com drogas. O crime ocorreu no dia 30 de junho de 2016.
História semelhante se repetiu dois anos depois, em 17 de setembro de 2018, no Morro do Chapéu Mangueira, favela da zona sul do Rio. O garçom Rodrigo Serrano foi assassinado a tiros por um PM que confundiu o guarda-chuva que ele carregava com um fuzil. A execução de Rodrigo lembra a morte do supervisor de supermercado Hélio Ribeiro, de 47 anos, assassinado no Andaraí no dia 19 de maio de 2010 por um cabo do Batalhão de Operações Especiais (Bope) enquanto instalava um toldo na laje de sua casa. O policial achou que a furadeira que Hélio segurava era uma metralhadora.
O pacote apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, com medidas para supostamente enfrentar a violência me fez recordar as histórias de Hélio, Jhonata e Rodrigo. Isso porque, ao abordar a legítima defesa, Moro sugeriu que juízes possam extinguir penas de policiais que alegarem que mataram por estarem submetidos a “violenta emoção, escusável medo ou surpresa”.
Pergunto: se o cabo que matou Hélio justificasse que atirou porque se sentiu surpreendido, seria justo que ele não fosse responsabilizado? Você concordaria que o PM que disparou à queima-roupa contra Jhonata tivesse sua pena extinta caso dissesse que agiu sob “violenta emoção”? Ou que o policial que confundiu o guarda-chuva de Rodrigo com um fuzil não fosse punido porque alegou que naquele momento estava submetido a “escusável medo”?
Medidas como essa não diminuirão a violência. Pelo contrário. Permitir que agentes de segurança pública não sejam responsabilizados por homicídios cometidos sob argumentos tão subjetivos certamente nos levará a uma situação nefasta: mais acobertamento de execuções, impunidade e aumento da violência policial. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, no governo Marcello Alencar (1995-1999), com a chamada gratificação faroeste: policiais eram premiados por bravura, o que levou agentes a matar e a morrer mais, sem que isso reduzisse a criminalidade.
Moro tem dito que o pacote estabelece segurança jurídica ao definir as circunstâncias em que o policial pode agir. Não é verdade, pois se trata, no fim das contas, de segurança jurídica para a prática de execuções. Até porque não existe vácuo legal em relação à legítima defesa. A legislação atual prevê que não há crime quando o policial usa a força de maneira proporcional, inclusive de forma letal, para proteger a própria vida ou a de outra pessoa.
Ao contrário do que dá a entender a proposta de Moro, não há perseguição a policiais que matam em serviço, e sim leniência do Ministério Público e do Poder Judiciário. Fui relator da CPI dos Autos de Resistência na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), encerrada em 2016. Ali, indicamos a responsabilidade do Judiciário, que entre 2005 e 2007 arquivou 99,2% dos processos sobre homicídios ocorridos em operações, segundo pesquisa do sociólogo Michel Misse.
Discursos populistas e modificações legais que incentivam maior violência policial não valorizam a polícia nem seus profissionais. Eles fazem apenas que trabalhadores da segurança se lancem numa guerra insana, matando mais e morrendo mais, porque na guerra é matar ou morrer. E, no nosso caso, não há nem haverá vencedores, muito menos avanços na diminuição da criminalidade.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 a polícia matou catorze pessoas por dia em todo o país, totalizando 5.144 homicídios – um aumento de 20% em relação a 2016. No mesmo ano, 367 policiais foram assassinados, um por dia, em média. A polícia matou e morreu muito, e isso não teve nenhum efeito sobre a redução da violência, como demonstram os dados gerais de homicídios de 2017, quando ocorreram 63.880 assassinatos, 3% a mais do que no ano anterior.
Existem duas questões, uma de fundo ético e outra de fundo prático. Do ponto de vista da ética, o Estado não pode encobrir crimes de seus agentes sob o argumento de combater a criminalidade. É uma contradição horrenda. O argumento prático pode ser assim resumido: se a violência policial resolvesse, o Brasil seria o país mais pacífico do mundo.
Os problemas relativos à legítima defesa não se restringem às ações policiais. A proposta prevê que os mesmos argumentos valham para civis. Façamos um exercício de fabulação. Imagine um jovem de família humilde, morador de uma cidadezinha do interior do país. Nesse mesmo município vive um próspero fazendeiro. E, sempre que passa pelo farto pomar do latifundiário, nosso protagonista lança os olhos compridos para as árvores carregadas de tangerinas. De vez em quando, ele pula a cerca e pega algumas frutas. Revoltado, o fazendeiro um dia dispara e mata o rapaz. Caso a proposta de Moro estivesse valendo, o assassino poderia alegar que agiu sob “violenta emoção” e não ser punido.
À exceção do desfecho trágico, o relato é inspirado em fatos. Matéria da BBC News Brasil de 16 de janeiro de 2019 contou a história do período em que as famílias Bolsonaro e Paiva, do deputado Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar, conviveram em Eldorado Paulista, em São Paulo. O jovem que surrupiava tangerinas era Bolsonaro. E o fazendeiro, o patriarca Jaime Paiva, que chegou a escalar um vigilante para desencorajar os meninos. Se o jovem Bolsonaro tivesse sido atacado pelo fazendeiro, que benefícios isso traria à segurança? Nenhum.
Outro exemplo. Pensemos numa mulher que é frequentemente agredida pelo marido, mas nunca registrou o crime – ninguém sabe o que ocorre em sua casa. Se num dia ela resolver reagir aos ataques e for morta pelo cônjuge, o homicida poderá alegar que agiu sob “violenta emoção” e não ser punido.
No que se refere à segurança pública, Moro comete o erro elementar de apostar em iniciativas que fracassaram ao longo dos últimos anos e nos levaram ao descalabro que vivemos hoje. Isso não ocorre somente em relação à medida que abre brechas para o agravamento da violência policial. O ministro propôs modificações legais para, em suma, prender mais e soltar menos. A consequência dessa escolha é óbvia: o sistema prisional, que já é caótico, vai explodir. E não é preciso ser especialista em segurança para concluir que o fato provocará efeito contrário ao esperado: a violência tenderá a aumentar por meio do fortalecimento de facções criminosas cujas bases estão no sistema penitenciário. O Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC) não surgiram e se organizaram nas ruas, mas dentro das cadeias e graças à barbárie dentro delas. Medidas que agravem a superlotação tornarão a situação ainda mais delicada.
O país precisa discutir de maneira menos populista o sistema prisional. Entulhar pessoas em masmorras e submetê-las a maus-tratos em celas superlotadas pode satisfazer nossos sentimentos imediatos de vingança, mas não nos ajuda a melhorar as condições da segurança. Por uma razão muito simples: as prisões não são um mundo à parte da realidade; a violência dentro delas alimenta a violência nas ruas. Não se reduz a criminalidade simplesmente encarcerando em massa. Vejamos os dados: entre 1990 e 2016, a população penitenciária cresceu 707%, chegando a 726 mil. A criminalidade diminuiu? Meu argumento não é só humanitário, ele também é fruto de uma preocupação prática com a eficácia do sistema. Os presídios brasileiros são lugares caros para tornar as pessoas piores.
Evidentemente, criminosos que representam riscos à vida das pessoas precisam ter a liberdade restringida. Mas esse não é o perfil majoritário da população carcerária, até porque a taxa de homicídios elucidados no Brasil é baixíssima. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2016, publicado pelo Ministério da Justiça, crimes contra a vida, como homicídio e latrocínio, correspondem a 14% dos detentos. Além disso, em 2017 havia 247,8 mil pessoas presas sem julgamento definitivo, o que equivale a 37% da população carcerária.
Além de apostar no que fracassou, Moro se omite sobre a ausência de políticas de ressocialização, como se não fossem centrais para a segurança pública. De acordo com o mesmo Infopen, apenas 12% dos detentos brasileiros estudam e somente 15% trabalham. Ao passar ao largo desse problema, o pacote mostra que a política para o sistema prisional continua sendo não ter política alguma.
O ministro também se equivoca ao tratar as milícias de maneira superficial, assemelhando-as ao narcotráfico. Não se enfrentam milicianos e traficantes com as mesmas estratégias. Presidi a CPI das Milícias na Alerj em 2008. O trabalho foi um marco no enfrentamento ao crime organizado: pedimos o indiciamento de 226 pessoas; possibilitamos a prisão dos chefes das quadrilhas, entre eles deputados e vereadores; apresentamos à União, ao estado e ao município do Rio, bem como aos três poderes, 58 propostas para combatê-las de forma inteligente e eficaz, mas pouco se avançou.
Por que essa omissão? Talvez porque as milícias, que não são problema exclusivo do Rio de Janeiro, interessem a muita gente. Ao contrário do tráfico, milícia é uma máfia bastante enfronhada nas estruturas do Estado. Milicianos conseguem transformar seu domínio territorial em capital eleitoral. Em outras palavras, o projeto das milícias é econômico e político. É o Estado leiloado. As quadrilhas ajudam a eleger vereadores, deputados, prefeitos, senadores. Por isso, chama a atenção que Moro trate o assunto de forma tão ligeira, mesmo diante de tanta informação produzida.
Na realidade, o pacote não é sobre segurança pública, mas sobre o processo e a execução penal, que, apesar de serem assuntos correlatos, estão longe de dar conta da complexidade do problema. Não há uma linha, por exemplo, sobre o que fazer para melhorar o setor de inteligência das polícias, algo fundamental para revertermos a baixíssima taxa de elucidação de crimes contra a vida. O jornal O Globo publicou em 18 de fevereiro que apenas 0,5% da verba de segurança nos estados e no Distrito Federal foi investida em inteligência. No governo federal, o volume foi de apenas 9%, em média, nos últimos cinco anos. Moro ignorou essa questão.
O ministro também passou longe das urgentes melhorias nas condições de trabalho dos agentes de segurança e do aprimoramento das instituições policiais: treinamento adequado; valorização da carreira e dos salários para que os trabalhadores não precisem recorrer a bicos, algo que está na origem das milícias; promoção da saúde no trabalho, principalmente no que se refere à saúde mental por causa dos altos níveis de estresse; revisão das jornadas de trabalho extenuantes, essencialmente dos praças, para que eles tenham mais tempo para a família e o lazer; integração das polícias estaduais e federal; definição dos papéis de cada ente federativo no trato da segurança pública – como viabilizar o cumprimento das responsabilidades dos municípios, do estados e da União, como manda a Constituição? Esses desafios receberam de Moro somente o silêncio.
Esta análise não poderia deixar de fora a relação das propostas do ministro com o decreto presidencial que na prática liberou a posse de armas de fogo. A combinação é explosiva. De um lado, facilita-se que mais pessoas adquiram armas. Do outro, abre-se brecha jurídica para que assassinatos sejam enquadrados como legítima defesa.
Permitir que mais pessoas se armem pode até reduzir a sensação individual de insegurança, mas não diminuirá a violência. O decreto é tão demagógico e ineficaz quanto o estímulo à violência policial e ao encarceramento em massa. Na prática, o presidente Jair Bolsonaro está declarando a falência do Estado no trato do problema e repassando aos indivíduos, que não têm nenhum preparo para tal, a responsabilidade de enfrentar o crime. Se policiais morrem aos montes ao serem surpreendidos por bandidos, que será dos cidadãos comuns?
Presidi a CPI do Tráfico de Armas e Munições na Alerj em 2011. Constatamos à época que o problema maior não está nas fronteiras, mas nas armas fabricadas no Brasil e que foram desviadas para a ilegalidade dentro do território fluminense – elas corresponderam a 82% das apreensões entre 2000 e 2010. Assim, ampliar a circulação de armamentos significa também fortalecer o mercado clandestino que alimenta a violência, diminuindo inclusive o preço, já que aumenta a oferta. Moro também se omite sobre isso.
Sabemos que o poder público não tem conseguido apresentar soluções reais para o crescimento da criminalidade. Mas não podemos deixar que nossa angústia, por mais compreensível que seja, nos leve a namorar medidas populistas num salvacionismo ilusório de recrudescimento da ação policial, endurecimento penal, facilitação do acesso a armas e extinção de garantias constitucionais. Precisamos de mais diálogo e políticas responsáveis. Afinal, existem propostas concretas a serem discutidas, algumas delas apresentadas aqui.
Infelizmente, Moro elaborou esse pacote sem nenhum debate anterior e permanece resistindo a conversar com pessoas e entidades que acumulam experiência sobre o tema e muito poderiam contribuir. Sem a abertura ao diálogo e a viabilização da participação da sociedade, não conseguiremos avançar, principalmente num Congresso dominado pelo lobby da indústria das armas. A bancada da bala não tem nenhum compromisso com a redução da violência – nela prevalece somente a lógica econômica em detrimento da vida das pessoas, inclusive dos policiais lançados à guerra e dos cidadãos mais angustiados e propensos a acreditar em ilusões armadas. Se aprovadas como estão, as propostas do ministro para a segurança pública agravarão ainda mais nosso drama.
*Marcelo Freixo é professor de História e deputado federal (Psol-RJ).