O papel estratégico da Venezuela na geopolítica energética global
A influência das disputas geopolíticas que envolvem a Venezuela tem sido sentida em todo o continente. Táticas e estratégias da guerra não convencional que envolve o país sul-americano, um dos maiores produtores de petróleo do mundo, são explicitadas neste artigo de profunda reflexão contemporânea
Entender a Venezuela hoje exige situá-la no contexto geopolítico global. Mudanças hegemônicas raramente ocorrem sem conflitos, e a América Latina, historicamente disputada, volta a ser alvo de pressões econômicas e políticas, especialmente da China, Estados Unidos e Rússia. Essas potências buscam ampliar sua influência, e a Venezuela, com vastos recursos naturais, ocupa posição central nessa disputa.
As gigantescas reservas de petróleo da Venezuela a tornam essencial no equilíbrio energético global. Com a guerra Rússia-Ucrânia e sanções a Moscou, fontes alternativas de energia tornaram-se vitais, levando à flexibilização das sanções venezuelanas desde 2014. Países antes críticos ao governo passaram a disputar seu petróleo, tornando a Venezuela não apenas um fornecedor, mas um ator estratégico na concorrência energética global.
A oposição a Nicolás Maduro é diversa, incluindo setores de extrema direita que tentam deslegitimar o governo e as eleições. O cenário político envolve autoproclamações, como a de Edmundo Gonzales, seguindo Juan Guaidó, ao se declarar presidente interino e mobilizar apoiadores via redes sociais. Essas ações integram uma estratégia de desestabilização social e política, com apoio externo para uma mudança de regime. Essa tentativa já era prevista, pois, desde 2002, a Venezuela enfrenta uma guerra híbrida, sob a acusação de ser um “Estado falido”.
A Venezuela enfrenta tentativas de troca de regime desde Hugo Chávez. O histórico inclui o golpe fracassado de 2002, a greve petroleira de 2003, as guarimbas[1] de 2014 e 2017, a tentativa de magnicídio de Maduro em 2018, a autoproclamação de Guaidó em 2019, reconhecida por vários países, e a incursão frustrada de mercenários em 2020, que visava sequestrar Maduro e derrubar seu governo.

Guerra não convencional
As tentativas de mudança de governo perderam força após o fracasso de Guaidó em consolidar apoio, evidenciando as divisões internas e a dificuldade da oposição em desafiar a hegemonia do Partido Socialista Unido da Venezuela. Após as eleições de 2024, protestos violentos eclodiram, principalmente em Caracas, refletindo estratégias de desestabilização semelhantes às utilizadas durante as guarimbas de 2014 e 2017, embora com menor intensidade. O Ministério Público venezuelano afirmou que alguns manifestantes receberam pagamentos para ampliar a percepção de descontentamento popular. No ano passado, os protestos chegaram a se espalhar por diversas áreas, com maior concentração em regiões nobres da capital.
As sanções econômicas fazem parte da guerra não convencional contra a Venezuela, limitando suas transações financeiras e comerciais. Com o tempo, enfraquecem a economia, geram inflação, pioram as condições de vida e ampliam a pressão social e política. Além disso, reduzem o poder estatal, dificultando políticas públicas e comprometendo a estabilidade do país.
Apesar das sanções, a economia venezuelana mostra sinais de recuperação, com a estabilização de sua moeda, o bolívar, e o retorno de migrantes. Esse fortalecimento enfraquece a oposição radical, reduzindo o apoio empresarial, antes impulsionado pela instabilidade política. Além disso, a estabilização econômica reforça a posição de Maduro, mesmo sob sanções e pressões externas.
A Venezuela enfrenta táticas de guerra híbrida[2] comuns em conflitos como as Revoluções Coloridas e a Primavera Árabe[3]. Popularizadas por Gene Sharp e promovidas pelo Albert Einstein Institution, essas estratégias visam desestabilizar regimes sem intervenção militar direta. A guerra híbrida envolve ações não violentas, propaganda, desinformação e sanções econômicas, levando à desestabilização política e econômica.[4] As guerras contemporâneas também se desenrolam no campo midiático, em que redes sociais moldam narrativas e mobilizam setores políticos. Na Venezuela, essa estratégia busca enfraquecer o governo para viabilizar uma transição política.
Nesse país, táticas de lawfare e proxy war[5] usam empresas e ONGs para favorecer potências estrangeiras. Em cenários semelhantes, organizações financiadas externamente influenciaram a opinião pública e fomentaram a oposição, como na Ucrânia e no Oriente Médio, onde entidades locais promoveram agendas específicas, exemplificando como esses grupos podem desestabilizar regimes sem intervenção militar direta.
Um dos principais agentes proxy na Venezuela é a ONG Center for Applied Nonviolent Action and Strategies (CANVAS), um subproduto da Otpor, organização política que foi atuante na Sérvia durante a troca de regime de Slobodan Milosevic (2000), durante uma Revolução Colorida. A CANVAS, financiada e assessorada pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID), atua como instrumento de guerra híbrida na Venezuela.[6]
Em resumo, a Venezuela vive um cenário de guerra não convencional, marcada por estratégias híbridas e de proxy, nas quais potências estrangeiras exercem pressões para influenciar os rumos do país devido aos interesses estratégicos em suas vastas reservas de petróleo. Esse conflito indireto envolve sanções, desinformação e esforços para desestabilizar o país.
Tal conjuntura geopolítica torna a Venezuela uma peça central na disputa pela influência na América Latina, especialmente em um momento de reordenação dos poderes globais. A luta pelo controle de seus recursos naturais e a importância estratégica do país para a região têm desdobramentos que impactam não apenas a estabilidade local, mas também a geopolítica mundial, posicionando a Venezuela como um ponto de convergência para interesses regionais e globais.
América Latina nas disputas geopolíticas
A situação da Venezuela também reflete desafios comuns a países latino-americanos e produtores de petróleo sob pressão global. Cuba mostra como sanções prolongadas afetam a economia, exigindo modelos alternativos e apoio regional. Já Irã e Líbia exemplificam nações petrolíferas isoladas por sanções, lidando com pressão externa e autodeterminação. Essas comparações inserem a Venezuela em um contexto global, evidenciando os impactos das sanções e a necessidade de integração regional e alianças estratégicas para proteger a autonomia da América Latina.
Em resposta, o governo Maduro reforça a segurança e a militarização do Estado, enquanto promove a democracia participativa por meio dos consejos comunales e comunas, envolvendo a população na gestão local.[7] Essa estrutura descentralizada fortalece o protagonismo comunitário e sustenta o chavismo. Sua postura busca manter a ordem diante das pressões internas e externas, preservando a autonomia política da Venezuela em um cenário geopolítico hostil.
Em 2022, sob Joe Biden, as sanções dos EUA à Venezuela, especialmente no setor petrolífero, foram atenuadas devido à guerra Rússia-Ucrânia, permitindo a retomada das relações comerciais. Com o não reconhecimento das eleições venezuelanas de 2024, os EUA retomaram grande parte das sanções, mantendo apenas algumas exceções, como a da Chevron. A política externa de Donald Trump, a partir de 2025, reduzirá significativamente a produção dessa empresa petrolífera, reforçando a pressão sobre o governo chavista e alinhando-se à extrema direita venezuelana.
Diante dessas disputas geopolíticas, a Venezuela simboliza resistência e é peça-chave nas alianças latino-americanas. Sua trajetória reflete os desafios de manter uma política autônoma em meio à competição entre potências. Isso reforça a necessidade de integração regional para proteger riquezas naturais e soberania, tornando alianças baseadas na autodeterminação fundamentais para a independência da região no cenário global.
Por fim, a Venezuela seguirá no centro das disputas geopolíticas latino-americanas, lidando com interferências estrangeiras e instabilidade doméstica. Sanções, guerra híbrida e disputas por seus recursos moldarão seu futuro. Seu destino dependerá, em grande parte, da capacidade de articulação regional e das alianças estratégicas que garantirão sua autonomia e estabilidade.
Beatriz Abreu – doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
Tereza Spyer Dulci – doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
[1] As guarimbas foram manifestações violentas de uma minoria oposicionista contra Maduro em 2014 e 2017, visando desestabilizar a ordem pública por meio do caos e terror social. Barricadas foram erguidas em ruas de aproximadamente 18 municípios, resultando em confrontos com a polícia e setores da população civil. Ver RIVAS, P. La violencia esconde una paradójica agenda oculta que todos conocen. Educere, v. 18, n. 59, p. 9-12, jan./abr. 2014. Universidad de los Andes, Mérida, Venezuela.
[2] A guerra híbrida é uma estratégia militar que combina táticas convencionais e não convencionais, incluindo guerra política, irregular, cibernética, além de desinformação e lawfare. Esse conceito tem sido amplamente discutido na comunidade de defesa internacional para descrever as novas dinâmicas dos conflitos no século XXI. Ver MCCULLOH, T.; JOHNSON, R. Hybrid Warfare. JSOU Report 13-4. The JSOU Press, 2013.
[3] As Revoluções Coloridas foram movimentos de protesto no início dos anos 2000 na Europa Oriental e Ásia Central, como a Revolução Rosa na Geórgia (2003) e a Revolução Laranja na Ucrânia (2004). Já a Primavera Árabe, iniciada em 2010, foi uma onda de protestos e revoltas no mundo árabe, como na Tunísia, Egito, Líbia e Síria.
[4] Essas estratégias, promovidas por think tanks — organizações que operam entre o meio acadêmico e a política, desenvolvem estudos e análises com o objetivo de orientar políticas públicas e influenciar decisões governamentais — como o The Albert Einstein Institution, fundado por Gene Sharp, envolvem ações de resistência não violenta voltadas para a mudança de regime. Países submetidos a esses tipos de conflitos frequentemente sofrem uma desestabilização econômica e política profunda e, em alguns casos, os conflitos evoluem para guerras territoriais, como ocorreu na Síria e na Líbia.
[5] Lawfare utiliza mecanismos legais para fins políticos, visando deslegitimar ou enfraquecer opositores. Proxy war ocorre quando potências externas apoiam grupos locais para influenciar um país sem intervenção direta.
[6] Em 2005, quatro estudantes venezuelanos foram à Sérvia para receber treinamento da ONG em táticas de ações não violentas e estratégias de mudança de regime. Ver COHEN, D.; BLUMENTHAL, M. The Making of Juan Guaido: How the US regime change laboratory created Venezuela’s coup leader – Juan Quaido. Support MPN, 2019.
[7] Os conselhos comunais garantem a participação popular e a democracia direta. A Constituição de 1999 incentiva a atuação da sociedade civil na política e nas decisões do Estado. Desde 2006, esses conselhos fortalecem o controle territorial nos bairros e a inclusão das camadas populares.