O perigo de um confronto armado e nuclear
O ambiente é de clara escalada. Ademais, as informações sobre o programa nuclear norte-coreano são opacas, o que gera um ambiente incerto em que a lógica da dissuasão corre o risco de não funcionar. E essa crise pode levar-nos ao uso de armas nucleares pela primeira vez desde Hiroshima e Nagasaki
A Assembleia Geral da ONU deste ano será lembrada como palco das trocas de agressões verbais e ameaças entre o presidente norte-americano e a Coreia do Norte. Depois de dizer que aqueles que têm negócios com este país poderiam ser barrados de contatos econômicos com os Estados Unidos, Donald Trump ameaçou o país asiático de aniquilação. A proposta, como tantas outras que ouvimos do atual presidente norte-americano, foi mal elaborada já que seria inconcebível que relações econômicas entre a China e os Estados Unidos cessassem, por exemplo. Ainda assim, as ameaças são assustadoras. Uma situação que já envolve demonstrações crescentes de força militar e escalada de retórica agressiva. E evitar uma guerra, e um confronto nuclear, pode não ser possível.
Em resposta aos crescentes testes norte-coreanos, os Estados Unidos e a Coreia do Sul apressaram a instalação do sistema de defesa de alta altitude e operações militares tornaram-se mais frequentes. O ambiente é de clara escalada. Ademais, as informações sobre o programa nuclear norte-coreano são opacas, o que gera um ambiente incerto em que a lógica da dissuasão corre o risco de não funcionar. E essa crise pode levar-nos ao uso de armas nucleares pela primeira vez desde Hiroshima e Nagasaki.
O avanço do programa nuclear norte-coreano, incluindo o teste do final de novembro de um míssil balístico intercontinental que poderia chegar aos Estados Unidos, é certamente assustador e impressionante. Pyongyang realizou sete testes nucleares desde 2006 e diversos outros com mísseis variados. Projéteis sobrevoaram o território japonês pela primeira vez este ano e seu primeiro-ministro tomou medidas para lidar com o possível uso de armas químicas. O ministro das Relações Exteriores norte-coreano ameaçou realizar um teste nuclear sobre o Pacífico, algo que não acontece há quarenta anos, e reafirmou o direito de abater bombardeiros norte-americanos mesmo em espaço aéreo internacional.
É preciso perguntar como chegamos a este ponto. Armas nucleares continuam sendo uma opção para países que têm relações de inimizade e recursos de poder profundamente assimétricos. O Regime de Não Proliferação Nuclear não avançou para um regime de banimento de armas nucleares, embora um tratado proibindo estas armas tenha sido assinado este ano. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, mais Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte, possuem arsenais nucleares e não há hoje a possibilidade de que o tratado tenha impacto sobre suas decisões. Por outro lado, a percepção de que os Estados Unidos são um inimigo é extremamente profunda na Coreia do Norte. Um tratado de paz entre as Coreias nunca foi assinado. Tentativas de negociação sempre fracassaram. É importante lembrar que entre 1950 e 1953 os Estados Unidos detonaram 600 toneladas de explosivos na península e cerca de 28 mil soldados estão baseados na Coreia do Sul. Temos de atentar para a realização de exercícios militares com a Coreia do Sul anualmente. A operação este ano incluiu 300 mil soldados sul-coreanos e 17 mil norte-americanos. Estamos falando de uma das maiores operações militares de treinamento já realizadas. Na região a presença militar norte-americana é ainda maior, mais de 47 mil soldados estão baseados no Japão e a base de Yokosuka naquele país é a casa da sétima frota americana, além da base na ilha de Guam. A história do conflito é um dos sustentáculos da identidade coletiva coreana e os exercícios militares são vistos como um treinamento para a futura invasão do país.
A pressão sobre a Coreia é feita através de sanções que isolam o país e dificultam a mobilização de recursos por parte de sua liderança. Desde 2006, a ONU produziu seis conjuntos de sanções contra o regime coreano. Mas as possibilidades de evadir as sanções através de empresas de fachada e de relações com países dispostos a desrespeitá-las e a percepção de que armas nucleares e o programa de mísseis garantem a própria sobrevivência do regime faz com que estas não sejam efetivas. Ademais o isolamento alimenta o poder do regime autocrático dentro de seu território.
As negociações que devem continuar para que se evite maior escalada do conflito entre os Estados Unidos e a Coréia do Norte são complexas e envolvem chineses, sul coreanos, russos e japoneses. Trata-se de um complexo tabuleiro de xadrez multidimensional. Nós, é claro, não saberemos necessariamente se e quando estão acontecendo. Mecanismos de administração de crises são uma necessidade premente. As pressões de sanções e as demonstrações de força militar não vão substituir esse processo de negociação. O objetivo de desnuclearização da península deve ser tratado em tempos variados. A administração da crise atual envolve uma lógica de dissuasão aliada ao reconhecimento e sensibilidade em relação aos medos da elite norte-coreana. O retrocesso do programa nuclear envolverá um processo mais longo de negociação e a busca de dissenso dentro do próprio regime para produzir pontes visando transformações mais profundas. A completa desnuclearização estará associada a uma mudança radical do regime, à reunificação da península ou à produção de um regime internacional de proibição de armas nucleares efetivo. Pede-se cuidado àqueles que sobem ao palco do sistema internacional para falar e gesticular.
*Mônica Herz é professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.