O pesadelo da "operação Condor"
Em 1960, um general norte-americano convidou seus colegas latino-americanos para uma reunião onde se discutiriam problemas comuns. É a partir dessas reuniões, um pouco obsessivas, que se situa o coração do que se tornaria um dia a operação CondorPierre Abramovici
“Nós, chilenos, como todos os povos do Ocidente, combatemos as ditaduras dos ’ismos’ e os agentes estrangeiros que ameaçam o nosso país. Devemos combatê-los com todas as forças, tendo como arma principal a cooperação entre as polícias de toda América.”1
As origens do que seria um dia a operação Condor podem ser da época em que Hollywood produzia filmes patrióticos intitulados “Por uma defesa comum”
O “señor Castillo, do serviço de segurança chileno”, está com os olhos fixos no espectador. O filme se intitula O crime não compensa. Estamos em plena II Guerra Mundial e Hollywood fabrica pequenos filmes patrióticos intitulados “Por uma defesa comum”. Inspirados pelo FBI, pretendem ser um ataque contra os espiões nazistas na América Latina e uma ilustração da cooperação dos serviços policiais e de segurança em escala continental.
Poderíamos dizer que as origens do que iria ser a operação Condor datam dessa época: um vasto plano de repressão continental, posto em prática pelas ditaduras latino-americanas nos anos 1970-1980. Somente a cor do “ismo” mudou, passando do pardo ao vermelho.
O ovo do condor
A descoberta acidental de duas toneladas de arquivos numa delegacia paraguaia permitiu reconstituir as atividades criminosas de uma rede internacional
Foi a descoberta, por acaso, em fins de dezembro de 1992, de duas toneladas de arquivos da ditadura Stroessner numa delegacia de Lambaré, subúrbio de Assunção (Paraguai), que permitiu reconstituir, em um primeiro momento, as atividades criminosas desta rede internacional. O deslocamento de documentos da CIA referentes ao Chile, no dia 13 de novembro 2000, confirmou e detalhou o conteúdo desses “arquivos do terror”.
Desde a Conferência Pan-Americana de Chapultepec, no México, em fevereiro de 1945, os Estados Unidos vinham alertando os militares sul-americanos contra o comunismo. Nessa perspectiva, acordos bilaterais de assistência militar seriam efetivamente assinados em 1951: fornecimento de armas e financiamento norte-americano, presença de assessores militares e treinamento de oficiais latino-americanos nos Estados Unidos e na Escola das Américas, na zona norte-americana do canal do Panamá.
A revolução castrista, em 1959, evidentemente precipitou o movimento para uma “defesa continental contra o comunismo”. Em 1960, o general Theodore F. Bogart, comandante da US Southern Command (Comando Sul do exército dos Estados Unidos), com base na Zona do Canal, no Panamá, convidou seus colegas latino-americanos para uma reunião “amigável” onde se discutiriam problemas comuns. Dessa forma nasceram as Conferências dos exércitos americanos (CEA). Realizadas todos os anos em Forte Amador (Panamá) e depois, em 1964, em West Point, as reuniões se tornam mais espaçadas a partir de 1965 e passam a ser organizadas a cada dois anos. É aí, nessas reuniões um pouco obsessivas, típicas da guerra fria e raramente abertas ao público, que se situa o coração do que se tornaria um dia a operação Condor.
A rede “Agremil”
Desde a Conferência de Chapultepec, no México, em fevereiro de 1945, os Estados Unidos vinham alertando os militares sul-americanos contra o comunismo
Além do MCI (Movimento comunista internacional, sigla cômoda para designar todos os opositores), os militares latino-americanos compartilhavam de uma obsessão maior: a interconexão dos serviços. Desde sua segunda reunião, a CEA exprime o desejo de estabelecer um comitê permanente na zona do canal de Panamá “para trocar informações e dados.”2 Esta vontade vai se realizar principalmente na organização de uma rede de comunicação em escala continental e a encontros bilaterais ultra-secretos (Argentina-Paraguai, Brasil-Argentina, Argentina-Uruguai, Paraguai-Bolívia etc.) para informações.
Emitidas por um determinado país para um ou muitos outros, as fichas de informações circulavam através da rede “Agremil” — de agregados militares (adidos militares). Originadas geralmente nos serviços secretos militares (G-2), elas podem vir de polícias políticas ou mesmo de serviços menos oficiais, como a Organização de Coordenação de Operações Antisubversivas (OCOA), um esquadrão da morte originário da polícia política uruguaia, cujos membros participam dos interrogatórios, da tortura e de execuções, principalmente na Argentina.3
Esquadrões da morte “oficiais”
As conferências dos exércitos americanos (CEA) começaram por ser realizadas em Forte Amador (Panamá), e a partir de 1964, em West Point
Por ocasião da X reunião da CEA, ocorrida em Caracas no dia 3 de setembro de 1973, o general Breno Borges Fortes, chefe do Estado-Maior do exército brasileiro, admite que a estratégia de luta contra o comunismo é da competência exclusiva das forças armadas de cada país mas que, “no que diz respeito ao aspecto coletivo, estimamos que somente são eficazes (…) a troca de experiências ou de informações e a ajuda técnica na medida em que esta for solicitada.”4 É tomada a decisão de “dar mais força à troca de informações para enfrentar o terrorismo e (…) controlar os elementos subversivos em cada país.”5
Enquanto o sub-continente cai progressivamente nas garras de regimes militares inspirados no exemplo brasileiro, a Argentina passa por uma curiosa transição entre a volta ao poder de Juan Domingo Perón, em 1973, e o golpe de 1976. A polícia e as forças armadas autorizam o desenvolvimento de esquadrões da morte originários de suas fileiras, como a Aliança Anticomunista Argentina (AAA, ou Triple A). Entretanto, a Argentina continua sendo o único país do Cone Sul onde podem encontrar asilo milhares de refugiados, principalmente chilenos e uruguaios, vítimas da perseguição política e social.
O assassinato de Prats
Além do Movimento Comunista Internacional (MCI), os militares latino- americanos compartilhavam de uma obsessão maior: a interconexão dos serviços
No início de março de 1974, representantes das polícias do Chile, Uruguai e Bolívia se reúnem com o sub-chefe da polícia federal argentina, delegado Alberto Villar (co-fundador da Triple A), para estudar a maneira pela qual poderiam colaborar para destruir o “foco subversivo” que constitui, em sua opinião, a presença destes milhares de “subversivos” estrangeiros na Argentina. O representante do Chile, um general dos carabineiros, propõe “credenciar em cada embaixada um agente secreto, que poderia pertencer seja às Forças armadas ou à polícia, e cuja função principal seria a de assegurar a coordenação com a polícia ou o representante da Segurança de cada país”. E o general acrescenta: “Deveríamos dispor igualmente de uma central de informações onde pudéssemos buscar informações sobre indivíduos marxistas (…), trocar programas e informações sobre pessoas políticas (…). Seria necessário podermos entrar e sair da Bolívia, passar da Bolívia para o Chile e de lá voltar à Argentina. Em suma, nos deslocarmos em qualquer desses países sem necessidade de um pedido formal.”6
O delegado Villar promete que o Departamento de Assuntos Estrangeiros (DAE) da Superintendência de Segurança da polícia federal argentina se ocupará dos estrangeiros que interessam às ditaduras vizinhas. Em agosto desse ano, começam realmente a aparecer, nos depósitos de lixo de Buenos Aires, os primeiros cadáveres de refugiados estrangeiros, principalmente bolivianos. No dia 30 de setembro, na capital argentina, uma bomba colocada por um comando chileno e um agente (ou ex-agente) da CIA, Michael Townley, mata o general Carlos Prats, ex-comandante em chefe do exército durante o governo da Unidade Popular e principal adversário do general Augusto Pinochet.
Um Estado dentro do Estado
Emitidas por um país para vários outros, as fichas de informações circulavam através da rede “Agremil” — de agregados militares (adidos militares)
Comandos policiais ou militares atravessam fronteiras sem qualquer dificuldade. Durante os meses de março e abril de 1975, por exemplo, mais de vinte e cinco uruguaios são presos em Buenos Aires por policiais argentinos e uruguaios. Nas delegacias de polícia argentina, os policiais uruguaios participam dos interrogatórios.7 Jorge Isaac Fuentes Alarcón, militante argentino, foi preso pela polícia paraguaia após passar a fronteira deste país. Como estabeleceria a Comissão Retting — Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação Chilena — em seu relatório enviado ao presidente Patrício Aylwin no dia 8 de fevereiro de 1991,8 o interrogatório do preso foi feito pela polícia paraguaia, pelos serviços secretos argentinos e… por funcionários da embaixada dos Estados Unidos em Buenos Aires, que transmitiram à polícia chilena as informações obtidas. Alarcón seria em seguida entregue aos agentes da Direção de Informações Nacionais (Dina chilena) presentes no Paraguai, e transferido para o Chile.
Pois, neste meio tempo, o Chile aperfeiçoou o sistema. Depois do golpe de 11 de setembro de 1973 — pelo qual o presidente norte-americano Richard Nixon e seu secretário de Estado Henry Kissinger têm responsabilidade direta —, o general Pinochet confiou plenos poderes ao coronel Manuel (Mamo) Contreras para “extirpar o câncer comunista” do país. Rapidamente, a Dina se transformou num Estado dentro do Estado.
A exceção venezuelana
A Organização de Coordenação de Operações Antisubversivas, um esquadrão da morte uruguaio, participava dos interrogatórios, da tortura e das execuções
A grande presença no exterior de opositores irredutíveis constitui um dos principais problemas da ditadura chilena. Ela consegue assassinar o general Prats, mas os anticastristas cubanos recrutados em fevereiro de 1975 fracassam na tentativa de execução de Carlos Altamirano e Volodia Tetelboim, respectivamente líderes dos partidos Socialista e Comunista chilenos no exílio. No início de agosto, o coronel Contreras efetua uma viagem destinada a convencer os serviços de segurança de toda a América Latina a criarem uma força especial anti-exilados. Ainda se deu ao trabalho de ir à sede da CIA em Washington, no dia 25 de agosto, onde se encontrou com Vernon Walters, sub-diretor encarregado da América Latina.
Dois dias mais tarde ele visitaria, em Caracas, Rafael Riva Vasquez, diretor adjunto dos serviços secretos venezuelanos, a Disip: “Ele explicou (…) que desejaria ter agentes nas embaixadas chilenas no exterior, que já tinha a confiança de funcionários das embaixadas prontos para servirem de agentes, se necessário. Disse que fez várias viagens coroadas de êxito para conseguir o apoio de diferentes serviços secretos latino-americanos. Tudo isso na base de acordos verbais.”9 Segundo Rivas, o governo venezuelano deu ordem à Disip de rechaçar as propostas do coronel Contreras. Seria a única recusa. Todos os outros países (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia) aceitam.
A versão chilena da operação Condor
O general Borges Fortes, chefe do Estado-Maior do exército brasileiro, disse que a luta contra o comunismo é da competência exclusiva das forças armadas
Paralelamente, é dada a ordem para concretizar uma rede na Europa. Esta se articula junto a terroristas italianos de extrema-direita. Não podendo eliminar Carlos Altamirano — que vivia na República Federal Alemã, sob escolta armada —, esses assassinos optam por Bernardo Leighton, ex-vice-presidente do Chile e um dos fundadores do Partido Democrata-Cristão. No dia 6 de outubro de 1975, Leigthon e sua esposa são atacados em Roma por um comando fascista. Salvam-se, mas a sra. Leighton ficaria paralisada para o resto da vida. Apesar do fracasso, o general Pinochet encontra-se com o chefe dos comandos italianos, um certo Stefano Delle Chiaie, que aceita em ficar à disposição dos chilenos.
Por ocasião de sua reunião de 19 a 26 de outubro de 1975 em Montevidéu, a CEA aprova a organização de uma “primeira reunião de trabalho sobre informação nacional” preparada pelo coronel Contreras, de 25 de novembro a 1º de dezembro de 1975. Ela tem “um caráter estritamente secreto”. A principal proposta do coronel Contreras visa à criação de um arquivo continental, “algo, em linhas gerais, parecido ao que a Interpol tem em Paris, mas especializado em subversão”. Nascia a operação Condor, versão chilena.
A fase três do Condor
A polícia e as forças armadas argentinas autorizaram, em 1976, o desenvolvimento de esquadrões da morte originários de suas fileiras, como a Triple A
Segundo a CIA — que garante nunca ter realmente ouvido falar a respeito até 197610 -, três países membros da operação Condor (o Chile, a Argentina e o Uruguai) “teriam ampliado suas atividades de cooperação antisubversiva para incluir o assassinato de terroristas de alto escalão no exílio na Europa”. Embora se considerasse, há muitos anos, que a troca de informações se deveria processar de maneira muito mais bilateral, “uma terceira e muito secreta fase da operação Condor teria concebido a formação de equipes especiais, vindas dos países membros, implicadas em operações que incluiriam assassinatos de terroristas ou simpatizantes de organizações terroristas. Por exemplo, se um terrorista ou um simpatizante de uma organização terrorista de um país membro fosse identificado, uma equipe especial seria mandada para localizar e vigiar o alvo. Enquanto a localização e a vigilância fossem efetuadas, uma segunda equipe seria enviada para executar a operação. A equipe especial contaria com documentos falsos originários de países membros. Ela poderia ser composta de indivíduos vindos de uma ou muitas nações membros”.
Para a CIA, o centro operacional desta “fase três” se situa em Buenos Aires onde uma equipe especial teria sido constituída. Enquanto isso, as reuniões bilaterais da CEA continuam entre os diferentes países do Cone Sul e suas co