Nos bastidores, dois palhaços fantasiados fumando incessantemente discutem política num abrigo mal iluminado. “Você sabe, o ministro vai escapar dessa, o juiz não tem provas!”, diz um deles. “Mas não, foram encontrados documentos no Departamento de Segurança do Estado que provam a sua culpa”, responde o outro. Koko e Timon falam do julgamento por corrupção do ex-ministro do Interior, Habib Adly, e da ordem que a polícia recebeu de atirar contra os manifestantes. “Ora, antes nada se sabia de política, agora não se discute outra coisa”, constata Walid Yassin, aliás, Timon, por entre uma cortina de fumaça. Lá fora, a revolução borbulha.
“Todo mundo pode representar um palhaço, mas é diferente quando se vivencia isso com verdadeira paixão”, diz Walid, filho de um artista de circo itinerante e também palhaço, enquanto aplica base branca ao redor da boca. Hoje ele se apresentará numa festa infantil de aniversário. Walid ergue as mãos sobre o rosto enquanto recita a fatiha(verso de abertura do Alcorão). “Timon, Timon.” Ele fará malabarismos com anéis e fingirá tirar água do nariz das crianças, então recolherá seus objetos e seguirá rumo ao circo nacional – onde esperará por seus amigos e irmãos –, lugar que todos consideram como sua casa.
Há cinquenta anos, pouco depois dos acordos de compra de armamento firmados com o bloco soviético, o presidente Gamal Abdel Nasser criou o Circo do Estado, uma inovação no mundo árabe. Os artistas, formados por professores russos e alemães orientais, rodaram o mundo e colecionaram prêmios. O Circo do Egito se apresentou até na Coreia do Norte e no Canadá, mas no início da década de 1980 o governo de Hosny Moubarak se desinteressou das tournês internacionais e suspendeu as subvenções.
O país havia mudado desde os primórdios do circo em 1966, passando de um processo de nacionalizações a outro de privatizações, e de um governo de partido único para um arremedo de democracia. O circo nacional também mudou. Afetado por um incêndio em 1975, ele continuou, apesar de períodos de recessão sucessivos, e finalmente renasceu. Sua receita anual atinge a casa de US$ 1 milhão – a do ano passado bateu recordes com as apresentações no Festival Internacional do Circo. Portanto, ainda que constitua a mais importante fonte de receita do setor das artes e espetáculos do Ministério da Cultura, ele foi negligenciado.
Antes do toque de recolher, numa hora qualquer entre as manifestações cotidianas, sirenes e tiros esporádicos, o espetáculo começa. Ashraf, o mágico, introduz facas numa caixa onde se espreme uma mulher de formas generosas, enquanto Karim, vestido com colant, balança a 5 metros do solo, fazendo malabarismo. Uma mulher de 70 anos, com plumas nos cabelos e envolta em serpentes, se contorce ao som da música. Gêmeos se apresentam com cães e pombos. Acrobatas saltam uns sobre os outros, e equilibristas avançam vestidos com trajes nas cores da bandeira egípcia. Atrás das grades da jaula, Medhat Kouta, de 53 anos, vestindo uma camisa com estampa de leopardo, dança com um enorme leão e, em seguida, de frente para o público e sorrindo, rebola ao som de um ritmo latino. Essas são as grandes estrelas do picadeiro. Após a apresentação, desaparecem. “Somos um pequeno circo no grande circo do mundo”, pontifica o diretor do espetáculo.
Nesse universo há uma hierarquia: no topo, os domadores de leões; em seguida, os acrobatas; e no nível inferior, os palhaços. É como uma tribo, esclarecem eles. Os laços familiares são essenciais. Mostafa Ramah, de 60 anos, equilibrista, viu seus filhos partirem, mas ele permaneceu. Juntamente com seu irmão Hamed, único membro de sua família no circo, disputam a mesma posição. Hamed foi condecorado pelo presidente Sadat e desfilou sob um dossel elevado a 50 metros do solo por toda a Cairo. Mostafa era ainda mais jovem: “Vim para o circo por causa do meu irmão e depois me desliguei”. Ele prorrogou seu contrato muito além da idade de se aposentar. Após sua estreia aos 12 anos, aprendeu sozinho a adestrar raposas para se apresentarem na corda bamba. Viajou por 21 países, mas hoje não mais. Ganha US$ 100 por mês e ninguém caçoa dele, porque conhece todos os segredos. Ramah lamenta que essa seja a hora do acerto de contas entre os artistas.
Medhat Kouta tem um pequeno orificio nos músculos da perna. “Esse leão me salvou a vida, eu teria morrido se ele não tivesse intervindo”. Aos 16 anos, ele foi atacado pelos felinos durante um treino. Tomy (um dos leões) avançou contra os outros enquanto a mãe Medhat o tirava do picadeiro. Antes da revolução, ele se apresentou em Dubai com a filha Anusa. Já Hamada, seu filho de 25 anos, deixou o Egito há um ano e não pretende voltar. Ele acreditava que nem o circo nem o público compreendiam a dificuldade que envolvia seu trabalho. Anteriormente se apresentava com seu pai, e os leões são seu passatempo favorito. Hamada fala frequentemente com os animais.
Hoje, o filho se apresenta no Circo Nacional da Rússia, casou com uma acrobata local, ganha US$ 1 mil por espetáculo e se declara satisfeito, pois quando trabalhava no circo estatal egípcio costumava substituir seu pai, mas não era contratado. Já trabalhou em circos privados por US$ 180 por espetáculo. “O circo [egípcio]não evoluiu desde 1970 e não evoluirá jamais, mesmo após a revolução.” Lá fora, um cartaz iluminado em preto e branco apresenta Medhat colocando a cabeça na boca de um leão, com Hamada à sua frente, como se fossem apenas fantasmas de uma época gloriosa.
Rivalidade transcendente
Quando o Egito era ainda uma monarquia, nos anos 1930, Ali Al-Helow e seus filhos, Mohamed e Hassan, trabalhavam no porto onde viam passar os circos italianos. Fascinados pela vida circense, começaram a trabalhar em circos estrangeiros e terminaram por comprar animais para criar. Mas infelizmente Mohamed e Hassan resolveram se separar, montando cada qual seu circo itinerante, e logo uma rivalidade que permaneceu por anos se criou. Eles foram os pioneiros em adestramento de grandes felinos na região.
Hassam Al-Helow teve uma filha que se tornou a primeira mulher domadora de leões do Oriente Próximo. Ela se juntou ao circo estatal nos anos 1960. Como seu pai havia feito, Mahasen ensinou a Medhat como domar leões, e ela e seus filhos se apresentavam juntos. Mahasen Al-Helow casou-se com um membro da família Kouta e ambas as famílias passaram a compartilhar a arte de domar animais. As gerações seguintes herdaram os animais, a arte e também… a rivalidade.
O espetáculo gira em torno do controle. Louba Al-Helow, neta de Mohamed, que o diga. Certa noite, a apresentação saiu do controle. A música parou. O público entrou em pânico. “Que Deus venha em seu socorro” gritou uma mulher. Um dos leões avançou para morder seu braço. “Deitado”, ordenou ela, apesar do medo. “Jamais dê as costas” – esse erro havia custado a vida de seu avô. Seu pai se precipitou correndo ao picadeiro para salvar a filha. Um leão arranhou sua mão. O domador gritou para obter novamente o controle. Finalmente, os leões obedecem e deixam o picadeiro, ao som do público que aplaude freneticamente. Louba me confidencia, mais tarde, que eles não tinham nem seguro saúde. Pouco depois desse incidente, Emad Abou-Ghazi, novo ministro da Cultura, declarou que o circo estatal não era mais uma prioridade.
Em 1967, o Egito perdeu a guerra contra Israel. O país estava arruinado e a moral do povo em baixa. Três anos mais tarde, um leão atacou seu domador por trás e lhe lacerou os rins no momento em que esse se virava para saudar o público. Mohamed Al-Helow morreu num hospital pouco antes do leão Sultan. O romancista egípcio Youssef Idris, que havia presenciado o ocorrido, escreveu um poema em que o ataque do leão simbolizava uma metáfora da fragilidade e da falta de firmeza do Egito. Essa tragédia contribuiu para firmar a reputação do clã Helow. Em 2004, outro leão tornar-se-ia símbolo do país. Talaat Sadat, sobrinho do ex-presidente, escolheu esse animal como símbolo de sua campanha: pediu a Hamada que lhe emprestasse um de seus leões, o que ele fez. A polícia secreta, então, prendeu Hamada sob acusação de atividade política ilegal!
Depois da revolução
Houve três mudanças ministeriais desde a revolução de 2011. Agora, o novo ministro tem em mãos todos os meios para reconstruir o Ministério da Cultura e focar sobre literatura, censura, arte e cinema. O ministro Abou-Ghazi se reuniu com líderes de departamentos e intelectuais, mas ninguém do circo nacional estava presente. Mohammed Abou Leila, diretor do circo, se reuniu com três mágicos para tentar interpelar o ministro. Ele se declara não adepto de ultimatos, mas acredita que a situação do circo nada ganhou com a mudança do regime. “Temos que reagir imediatamente, senão estaremos num beco sem saída”, diz ele. Até que o ministro nos receba iremos protestar, acrescenta um dos mágicos. “Nós enviaremos três de nossos mágicos como portadores de uma petição”, afirma outro. E todo mundo se acaba de rir da bravata.
Em 1973, Abou Leila era um jovem e brilhante ginasta num circo em plena evolução. “A sensação de estar em cena, quando centenas de pessoas o observam realizar algo que nenhum outro consegue, te impacta. Você passa quatro anos aprendendo um número que durará apenas oito minutos, isso é único.” Em 1975, ele foi escolhido para um programa de intercâmbio entre a URSS e o Egito para aprender artes circenses e se especializar em acrobacia aérea. Atualmente, ele não se apresenta mais, pois o trabalho burocrático absorve grande parte de seu tempo, mas nunca esquece seus tempos de acrobata. “O circo nacional tinha grande importância na época de Nasser: estava entre os cinco melhores do mundo. Hoje, as pessoas não se dão conta que o circo é uma forma de arte.”
Durante a estagnação econômica das últimas duas décadas, a jovem geração de artistas tentou outros meios para complementar os magros subsídios pagos pelo Estado. Anúncios, casamentos, aniversários de crianças, shows em supermercados, pontas em filmes, tudo é válido. O salário médio no circo nacional é de US$ 90 por mês e US$ 180 para os domadores, ao passo que o setor privado paga US$ 1 mil ou mais por apresentação. Em 2010, os empregados do circo se envolveram em greves de protesto contra as severas reformas econômicas e a escalada desenfreada dos preços. Walid Yassin tomou parte delas. E durante a revolução de 2011, os artistas voltaram a participar das greves gerais.
O palhaço – quer dizer, Walid – é um reflexo dessa realidade. Em cena, Timon pode andar de costas na bicicleta, mas quando o espetáculo termina e nada resta além de lenços sujos, ele volta a ser Walid, aquele que faz as próprias roupas de cena e se dirige aos endereços elegantes para animar festas e casamentos onde se gastam fortunas em material importado. Duas vidas que se opõem, uma no palco, outra atrás das cortinas. “Eu já pensei em deixar o circo estatal, pois jamais ganhei mais de US$ 1.800 em toda a minha carreira. Mas é como um vírus: nunca consigo partir, aqui tenho meus amigos, levanto todas as manhãs e me dirijo ao circo. Vivi mais lá que na minha própria casa, adoro isso”, diz o palhaço.