O “Polígono da Maconha”
No submédio do rio São Francisco, uma cultura ilícita promove o desenvolvimento da região junto com os grandes latifúndios agroexportadores. Mas os benefícios são para poucos, e a população local, formada principalmente por pequenos agricultores, não tem participação nesses lucros
Da Colônia até as primeiras décadas da República, a região do submédio São Francisco poderia ser chamada de “Polígono das Secas”. Modificada por políticas públicas nos anos 1940, e principalmente a partir de 1970, com a intervenção de grandes projetos hidrelétricos, tornou-se a “Mancha Irrigada”. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, o desenvolvimento subsequente produziu uma modernidade extremamente conservadora e minada por conflitos sociais, e, ao final da década de 1980, as condições desiguais e o modelo econômico do “progresso imposto de fora” resultaram em uma nova identidade regional: a do “Polígono da Maconha”.
É possível estabelecer o fim da Segunda Guerra Mundial como o marco inicial de todas essas mudanças no vale do São Francisco. À época, o Estado promoveu uma intervenção focada no potencial de integração entre norte e sul, propiciada pelo curso do rio. Foram privilegiados dois tipos de interesses: geração de energia e agricultura irrigada. É no bojo desse processo técnico-burocrático de criação de aparelhos estatais que foram fundadas a Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (CHESF, em 1945), a Comissão do Vale do São Francisco (1948), a Superintendência do Vale do São Francisco (1967) e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf, em 1974).
A ideia era fomentar o desenvolvimento social por meio de projetos de colonização com base na pequena propriedade, de 4 a 8 hectares, o que de fato aconteceu até os anos 1960, quando se privilegiaram os cultivos de cebola, uva, melão, tomate, pimenta e algodão. Na década de 1970, porém, ocorreu uma mudança radical de rumos, sob orientação da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste): em detrimento da colonização e da produção para o mercado consumidor local, passou-se a apostar no comércio extra-regional, isto é, para exportação. O território recebeu então outro tipo de empreendedores. Incentivados pelos aparelhos estatais, eles eram proprietários de áreas até dez vezes maiores do que os lotes familiares existentes.
Aquecida, a demanda por terras foi engolindo os sítios familiares e gerando um desenho fundiário concentrador. Como num passe de mágica, os antigos colonos transformaram-se em potenciais empregados assalariados das novas fazendas. A prioridade ao desenvolvimento social desapareceu e teve início um processo de acumulação capitalista com base na grande propriedade tecnologicamente reestruturada.
Junto com a proletarização dos colonos, os projetos das barragens de Moxotó e Sobradinho, conduzidos pela CHESF, impuseram a milhares de famílias um deslocamento compulsório em direção às cidades grandes e médias da região. Compensando-as pela perda da terra apenas com dinheiro, a companhia colaborou para inchar os bolsões de pobreza das periferias.
A situação continuou se repetindo até que, em Itaparica, os camponeses ribeirinhos afetados pela barragem se recusaram a ganhar indenização pecuniária. Organizados, eles reuniram os atingidos de todos os municípios que seriam alagados e entrosaram sua ação em dois estados, Bahia e Pernambuco. Fundaram então uma entidade única para representá-los, o Pólo Sindical do submédio São Francisco, que mudou o rumo dos acontecimentos e levou o Estado a alterar a forma oficial de encaminhamento da questão. Em 1986, eles paralisaram as obras da barragem ao permanecerem acampados dentro do reservatório ainda seco até que a CHESF trouxesse uma comissão de representantes do governo federal para negociar com o movimento. Assim aconteceu o que ficou conhecido como “negociação”, para a estatal, e como a “grande luta” para os sindicalistas. Diferentemente da forma de indenização apresentada até então, esses camponeses conquistaram o direito de serem “reassentados” para que pudessem retomar sua existência e sua reprodução econômica, social e cultural em bases minimamente próximas à vida que tinham antes de sua expulsão. Assim, em acordo com o Pólo Sindical, a CHESF promoveu a desapropriação de áreas por interesse social, criou agrovilas para moradia e se comprometeu a implantar sistemas de irrigação eficientes nos lotes, que seriam as “terras de trabalho” das famílias.
Em 1987, o Plano para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco estimulou a opção pela fruticultura. Ao lado de outras medidas públicas, essa escolha tornou a região dinâmica e arrojada na agricultura empresarial, mas complicada e instável para os reassentados da Barragem de Itaparica. Claro, a novidade tecnológica suscitou a expectativa da instalação dos sistemas de irrigação, que ainda não haviam chegado, e a esperança de que o Pólo Sindical pudesse organizar uma agricultura familiar forte e sustentável. Mas o processo terminou se desenrolando por mais de uma década, uma demora crônica e destrutiva, sinônimo de desemprego e de oportunidades negadas para as gerações futuras.
Antigos, novos e diferentes atores entraram em cena para produzir, gerir ou disputar essas transformações, que ocorreram desde o ponto de vista físico (o aumento e a mudança demográfica ao lado da nova paisagem, produto dos projetos “barrageiros” que modificaram o rio durante meio século) até o sociogênico. Esse é um exemplo de como uma ação externa e planejada – portanto, artificial – constrói sociologicamente um território: se sobrepondo a uma realidade preexistente na qual o patriarcalismo ainda tem poder e está articulado de modos variados com os “novos personagens”. No fim das contas, levando em consideração que todo lugar humano é dinâmico, esse ambiente se torna real. E passa a se reproduzir como totalidade significativa, mas sem abdicar as contradições dialéticas do presente com o passado e do geral com o singular.
Nessa perspectiva, podemos tomar o submédio como um espaço criado pelo planejamento estatal, que recortou no mapa do país uma “sub-região irrigada” e gerou um ambiente eivado por tensões. Por um lado, por meio do desenvolvimento da agricultura agroexportadora em escala internacional, responsável por um processo de proletarização que gerou enorme contingente de assalariados rurais. Por outro, pela recriação de unidades familiares de produção agrícola para os reassentados, decorrentes da pressão conduzida pelo movimento social organizado em reação ao projeto “barrageiro” do Estado.
No âmbito de todos esses conflitos de interesses, ainda nos anos 1980 se abriu espaço para a expansão do cultivo da maconha, planta tradicional, mas até então sem investimento em escala comercial. Essa economia ilícita foi constituída dentro de um amálgama moldado pela cultura sertaneja tradicional, impregnada de violência e pistolagem misturadas a uma linguagem e uma presença modernas, mas também como conseqüência das contradições fomentadas pela ambiguidade do modelo agrícola central, que reduziu o foco no social e aumentou o contingente de excluídos. Afinal, a maconha apareceu na franja do avançado processo de precarização do trabalho assalariado na agroindústria frutícola de exportação (com destaque para as questões de gênero que afetam as estruturas familiares, já que a mão-de-obra feminina é privilegiada para o processo manual de empacotamento de frutas, mercadoria frágil e delicada que sofre pressão de um padrão de consumo sofisticado) e no vácuo das omissões do investimento estatal, que não concluiu os sistemas de irrigação nos projetos de reassentamento. Além disso, ao atender os interesses diretamente contraditórios das grandes e das pequenas propriedades agrícolas, o apoio público se tornou muito complexo, ainda que a capacidade produtiva de ambas esteja subordinada à mesma base energética para irrigação.
Mais tarde, com o aumento da criminalidade, o suporte estatal, até então concentrado nos ministérios de fomento econômico e agrícola, foi exigido também para resolver problemas de segurança nacional. Curiosamente, essa intervenção posterior não produziu distinções e acabou atendendo de modo igual aos diferentes setores identificados com a demanda por repressão. Isso porque todos – potentados tradicionais, grandes proprietários, empresários rurais, pequemos proprietários, trabalhadores, ricos e pobres – consideram a criminalização da Cannabis sativa como tácita. Dessa vez, o apoio do Estado veio sem muitas contradições e bem articulado. Uma das formas assumidas por essa presença foram os instrumentos criados para operar de modo mais eficiente o ataque ao cultivo ilícito, tais como a Delegacia de Polícia Federal em Salgueiro, que atua no flagrante, repressão e erradicação da planta; a Delegacia Federal do Incra em Juazeiro, responsável pelo levantamento das terras com cultivo, visando à expropriação sumária de acordo com a lei; novos escritórios de Procuradoria e Promotoria federais; e aumento do número de juízes trabalhando dentro de um sistema de rodízio estratégico, que propicia uma cobertura mais ampla do sistema judicial.
Migração do plantio para outros locais
Com todo esse aparato, conseguiu-se, em menos de uma década, reduzir a extensão do cultivo e alterar a fonte da demanda. Com uma quantidade enorme de pés erradicados e muitos plantadores aprisionados – geralmente trabalhadores rurais homens e jovens, já que raramente os donos das roças são detidos – a ação do Estado foi bem-sucedida em impedir a auto-suficiência do abastecimento de maconha para os clientes brasileiros. Como o volume de consumo não foi afetado, isso impeliu a importação do produto do Paraguai. E, na medida em que a produção foi reduzida, mas não aniquilada, o plantio migrou para outros estados e o Nordeste saiu ileso dos efeitos da perseguição pública. A escala comercial da maconha ficou restrita ao abastecimento dos nordestinos e nortistas, os únicos clientes que usam o produto nacional!
Nessa ciranda, a erradicação do plantio demonstrou-se mais eficiente do que a eliminação da importação, o que criou quase um monopólio do abastecimento nos principais mercados consumidores do país. E, claro, existem algumas perguntas que ficam no ar: que tipo de enfoque predomina nas políticas de segurança que se norteiam pelo controle do auto-abastecimento nacional, enquanto a maconha importada permanece forte? O que pode representar esse “nicho” de mercado nordestino para a região? Qual seria o papel dessa agricultura no cenário de uma disputa política e, conseqüentemente, na produção de meios para “armar” financeiramente os contendores na briga eleitoral? Ao contrário do que pretende, a política de repressão à maconha estaria gerando uma fronteira agrícola espontânea, desorganizada, que facilita atos corruptos ou corruptores, delimitados no Norte e Nordeste?
São questões abertas para serem pensadas sob um dos ângulos da criminalização da maconha no Brasil, levando em consideração que a elaboração que cria e gera a conformação desse território contém elementos que encobrem várias dimensões e processos, mais precisamente o conflito de interesses entre as agriculturas. Assim, o espaço tecido não pode ser reduzido à ideia de que se trata de um local prioritário de criminalidade, mesmo que essa representação, elaborada ideologicamente para “esconder” algo, não deixe de ser real.
Importa reconhecer que por trás dessa imagem existem hoje três agriculturas a serem consideradas, em pleno desenvolvimento e expansão. Duas obtendo êxito e sucesso financeiro: a do agronegócio frutícola, que recebe investimento de grandes círculos de poder e segmentos endinheirados externos à região e se articula com as estruturas de dominação mais tradicionais sem fortes traumas; e a da maconha, que produz novos ricos emergentes, que saem dos segmentos intermediários locais, e, aparentemente, também podem se articular com as estruturas de poder tradicionais. No mínimo por meio da lavagem do dinheiro gerado nessa economia subterrânea, via negociações pouco transparentes; no máximo, articulando-se com o lado clandestino das “famílias”, que se armam para matar ou “dar segurança”, também sem rupturas. Essas afirmações tornam-se mais factíveis quando se leva em conta a existência de uma impunidade seletiva, em que só os trabalhadores são presos, e não os “donos” das roças, e se tem em vista a persistência desse cultivo dentro de certo padrão de produtividade, que não o deixa desaparecer há mais de três décadas, apesar da repressão organizada institucionalmente e financiada como interesse público.
A terceira atividade é a agricultura dos reassentados, produto da luta sindical regional que enfrentou essas estruturas de poder, democratizou a organização fundiária e acenou com uma diferenciação social dos rurícolas, que poderia permitir uma melhoria na qualidade de vida das populações mais carentes. Mas é justamente ela que permanece marginalizada dos resultados econômicos que promovem o enriquecimento regional. O empenho político assumido pelo Estado nessa longa trajetória de intervenções técnicas pautou diferentes resultados em termos de sucesso e disponibilidade de recursos e atenção. Certamente essas
disputas, combinadas com a demora na conclusão dos projetos de reassentamento, facilitam de modo estrutural as condições de consolidação do cultivo da maconha e a situação instável desse terceiro agente. Sem saída melhor, a agricultura familiar dos reassentados está em permanente conflito para se defender da pressão que visa sua fragmentação ou desaparecimento, por meio do envolvimento desses camponeses em trabalhos assalariados temporários dessa ou daquela agricultura bem-sucedida na região.
Mudança de identidade depende do estado
Caso fosse valorizado, um projeto de agricultura familiar para os atingidos por barragem, como a de Itaparica, teria um grande potencial demonstrativo para o mundo, além de beneficiar as populações diretamente afetadas. Seria um exemplo de solução da questão social resultante das intervenções para a produção de energia limpa – no caso, a hidro-eletricidade.
O resultado alcançado poderia significar, aqui sim, a modernidade real do Nordeste, dado o seu caráter experimental tanto para o Estado como para o Banco Mundial, que financiou a obra de Itaparica, e, principalmente, para o sindicalismo. Até agora, no entanto, os sucessivos governos têm atuado no sentido de secundarizar a consolidação da agricultura familiar reassentada e de privilegiar a agricultura empresarial voltada para a exportação. Permaneceram enraizados e re-significados os mesmos antigos esquemas de dominação existentes no sertão. E ampliada a precariedade das condições de vida dos mais pobres.
Depende do Estado, portanto, e de suas intenções de investimento no social a mudança de identidade desse território configurado como “da maconha”, alcunha que, além de marginalizar e estigmatizar a região, ainda criminaliza as lutas por direitos dos trabalhadores rurais que desde os anos 1950 são atingidos pelas barragens do rio São Francisco!
Ana Maria Motta Ribeiro é professora de sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense.