O preço do inestimável
Um pequeno quadro atribuído a Leonardo da Vinci vendido por 385 milhões de euros em novembro; As mulheres de Alger, de Pablo Picasso, negociado por 160 milhões de euros: especuladores invadiram o domínio da arte. Longe dos projetores, milhares de obras “ordinárias” são vendidas por ano. É um mercado que obedece a regras bastante particulares
Como se determinam os preços no mercado das artes? Quando se observam as listas de preços nos bancos de dados comerciais – Artprice, por exemplo –, tem-se uma forte impressão de um mercado mundial, idealizado e transparente de US$ 1,58 bilhão (julho de 2016 a junho de 2017), determinado apenas pela oferta e pela procura. No entanto, qualquer pessoa que se pergunte como esses bens “inestimáveis” são concretamente avaliados se depara com uma cortina de fumaça. Para tentar ter mais clareza de como isso ocorre, nossa equipe de sociólogos fez uma pesquisa durante três anos entrevistando atores e parceiros de uma das mais importantes manifestações desse universo: a Feira Art Basel, uma “olimpíada de artes” que acontece anualmente em Basileia, Miami e Hong Kong.1
Para entender a lógica em ação, é preciso voltar o olhar para algo que vai além – ou melhor, para o que está por trás – das transações do grande espetáculo e do grande orçamento representados pelas estrelas do setor – como a compra, no último mês de maio, de uma tela de Jean-Michel Basquiat por US$ 110,5 milhões –, e se interessar por outras: as da grande massa dos profissionais “costumeiros” do mercado primário (em que a obra adquirida encontra um primeiro comprador basicamente por intermédio de um galerista) e as do segmento inferior do mercado secundário (para as revendas, principalmente em leilões). As entrevistas realizadas com os deste último revelam um leque de regras implícitas.
Em primeiro lugar, não se colocam os preços em discussão: nada de pechincha, nada de tarifas promocionais. Uma exigência à qual eles se acomodam normalmente, ainda mais porque ela serve a seus interesses, como afirma uma galerista: “Temos o exemplo de um grande colecionador, na Áustria, que tem seus próprios museus e opera com a arte da mesma maneira que em outras áreas nas quais se enriqueceu. Sua coleção é composta apenas por obras de terceira ou quarta categoria porque ele demanda 30% de abatimento a cada marchand que procura. Consequentemente, só consegue bens que não foram vendidos, pois nenhum galerista ou marchand vai abrir mão de 30% do preço de catálogo se poderá vender mais caro para outro”.
Em segundo lugar, os preços jamais devem baixar. A diretora de um grande museu privado alemão conta que durante o auge de 2006-2008, período de grande especulação em que os compradores mergulharam na arte contemporânea, “o volume de obras leiloadas foi três vezes superior ao conteúdo do catálogo que se tinha em mãos. Todo mundo tinha medo de que não fossem vendidas, pois quando uma obra não encontra comprador nos leilões ela fica ‘queimada’… O interesse do marchand é manter a cotação de seu artista; por isso, vai dizer: ‘Se ninguém quer seus quadros, eu vou comprá-los nos leilões, estocá-los e, daqui a dois ou três anos, eu os coloco à venda novamente’. Cada um quer salvar seu mercado” – uma estratégia amplamente disseminada.
Outra regra: o resultado da venda é dividido em partes iguais entre o artista e o galerista, na maior parte das vezes com a garantia de um simples acordo verbal. Mas, como explica um galerista de Zurique, “quando um artista desconhecido alcança repentinamente a notoriedade, não é raro que ele diga a si mesmo: ‘Agora que meu trabalho foi reconhecido, por que vou dar de presente para meu galerista a metade de meus ganhos?’”.
As tarifas altíssimas que prevalecem nas grandes feiras internacionais de Paris, Zurique e Londres representam apenas uma parte mínima – ainda que superexpostas – de todas as transações mundiais. De acordo com o gerente de uma das maiores empresas leiloeiras alemãs, o preço médio das obras comercializadas nos salões de vendas e vendidas pelas galerias não passa de 3 mil euros.2 O que determina o montante é, antes de mais nada, uma mistura de intuição e experiência. Como diz uma colaboradora: “É difícil explicar… Acabam desenvolvendo uma espécie de sexto sentido”.
Quem quer avaliar um objeto “inestimável” com precisão sai do ateliê do artista com uma grande paleta de critérios. Inicialmente, os dados materiais: o material e o tempo de trabalho investido na elaboração da obra. “Quando você passa duas semanas inteiras, de seis a oito horas por dia, realizando seu quadro, você pode calcular aproximadamente o custo por hora do seu trabalho. Ele é irrisório. A ele você acrescenta o custo das matérias-primas. Depois, a ideia que você investe em tudo isso. Esta ninguém lhe paga”, observa um pintor.
Quando se trata de um mesmo artista, as diferenças de preço não se explicam pela oferta nem pela demanda, nem sequer pela qualidade das obras, mas unicamente por seu formato. Como afirma um galerista suíço, “quando os quadros são do mesmo tamanho, seus preços também devem ser mais ou menos idênticos. Sou eu que tenho de cuidar disso. Na verdade, existe um fator: multiplicamos a altura pela largura, isso nos dá uma superfície, que multiplicamos pelo coeficiente próprio do artista”.
A partir de agora, surge uma questão espinhosa: como regular o nível dos preços em um mercado globalizado em que os atores dos países emergentes ocupam um lugar crescente? Após sua primeira participação na Feira Internacional de Arte Contemporânea (Fiac) de Paris, uma galerista mexicana ficou “siderada pelos preços. De volta ao México, eu disse: vou ter de triplicar os meus, se quiser participar dela. Vou ter de aumentar muito as exigências. Em três anos, a obra de um artista que começa cotada a US$ 5 mil passa a valer US$ 100 mil, é absurdo. Para nós, é muito mais complicado, porque temos um mercado local. De qualquer maneira, não posso dizer para meus artistas que, de repente, eles valem US$ 100 mil. A concorrência, agora, baseia-se em quem será o mais caro. É o jogo. É difícil entrar nele quando você não está entre os grandes jogadores”. Como muitos atores provenientes de regiões emergentes, a jovem ainda se esforça para desbravar caminhos por meio dos paradoxos do florescente mercado de artes planetário, esse “mundo invertido”, diz ela, em que um preço exorbitante dá garantia de qualidade.
E o que pensa o comprador sobre a determinação dos preços? O que ele acha da lógica deles? Fizemos essas perguntas a uma grande amostra de colecionadores. “Sim, eu também gostaria muito de saber”, disse um deles rindo. “Na verdade, não entendo nada. Há algum tempo, consegui um quadro de X. Na época, ele custava 300 mil euros; hoje vale 1,5 milhão. Não o comprei por ser caro, mas porque ninguém o queria. Fiz também a aquisição de uma escultura de madeira de Y, acho que por 2 mil euros. Depois houve uma exposição em Nova York, e ela é vendida agora por 36 mil euros”.
Para ele, assim como para a maior parte de nossos interlocutores, o orgulho de possuir objetos materiais sem valor intrínseco se mede em dados estritamente contábeis. Nessa bolsa do capital simbólico, há mais perdedores do que ganhadores, salienta um consultor holandês: “Depois de dez anos investindo em arte, muitos revendem sua coleção sem obter lucros. Se você comprar por intuição, não vai enriquecer. O mercado de artes é manipulado pelos grandes jogadores. Eles sabem como intervir e onde pôr o dinheiro; fazem operações das quais o comum dos mortais não entende nada. Pense em X [um famoso industrial e colecionador francês]: um belo dia, ele decide apostar num artista jovem. Compra quinze obras dele e escolhe uma para colocar logo no mercado por ocasião de uma grande venda na Christie’s. Astúcia é o que ele pede a um amigo que costuma dar lances mais elevados. Ele lhe diz: ‘Faça o preço subir o máximo que você puder, e eu te reembolsarei’”. Resultado: a obra de um jovem comprada por 10 mil euros é cotada a 200 mil. Os que costumam participar desses leilões desconfiam que haja algo estranho, mas outros pensam: “Puxa vida, dizer que no ano passado eu poderia ter comprado isso por 10 mil euros e, hoje, vale vinte vezes mais…”. Eles se lançam sobre esse artista, e então a profecia autorrealizadora acontece.
Mesmo que essa história pertença aos mitos e lendas da arte contemporânea, os testemunhos mencionando práticas comerciais obscuras ou falsificadas se repetem tantas vezes entre nossos interlocutores, quaisquer que sejam os países onde eles exercem sua posição no mercado das artes, que a tendência é lhes dar algum crédito.
Os mecanismos revelados nessas narrativas agem de maneira sempre muito sutil antes mesmo da venda. De forma alguma são fenômenos secundários, mas usos perfeitamente típicos de um mercado muito atípico, em que se manifesta a continuidade de formas antigas de inclusão e exclusão sociais. “O que acontece é que, hoje, essa cultura ambicionada não é vendida. Ela é atribuída e transmitida”, observa um colecionador suíço bem estabelecido. “Você tem de ser parte integrante do sistema para satisfazer esses critérios de atribuição, sem o que só lhe resta pagar você mesmo por sua cultura. É o que explica a ocorrência de alguns preços nos leilões: os compradores, nesses casos, são os que não fazem parte do sistema. Eles disputam os objetos de arte como trapeiros”. Ele justifica essa prática de exclusão por um provérbio inventado por ele mesmo: “Quem quer comprar cultura deve ter cultura”.
Afinal de contas, a cultura seria então “esse bem que o dinheiro por si só não pode comprar”? Em todo caso, do ponto de vista dos galeristas, argumentos a favor de uma estratégia de seleção dos clientes não faltam. O proprietário de uma prestigiosa galeria londrina justifica, assim, a linha de demarcação entre atores legítimos e ilegítimos do mercado: “Chego a recusar uma venda a alguém que venha me procurar? Sim, isso acontece. Os preços do mercado primário são geralmente muito inferiores aos do secundário, e alguns colecionadores lucram com seus preços por razões simplesmente especulativas. Não vejo por que deveria vender para eles minhas obras”.
Enquanto para Max Weber o mercado representa um mundo que só tem “consideração pelas coisas e nenhuma pelas pessoas”,3 o que ocorre no mercado de artes é totalmente diferente; nele, o comprador é, ao contrário, submetido a uma vigilância constante. Dele se espera não só que tenha recursos para pagar, mas também que se mostre digno de confiança, prudente nas escolhas e disposto a adquirir uma obra não por simples fascínio pelo ganho, mas por outras razões. Para o galerista e o artista, trata-se de garantir, por exemplo, que o cliente não vá correndo rumo aos leilões para revender por um bom preço o quadro que acabou de comprar ou, pior, que não consiga encontrar comprador, arriscando arruinar seriamente a cotação do artista.
*Franz Schultheis é sociólogo e coautor, com Erwin Single, Raphaela Köfeler e Thomas Mazzurana, de Art Unlimited? Dynamics and Paradoxes of a Globalizing Art World [Arte ilimitada? Dinâmicas e paradoxos de um mundo artístico globalizante], Transcript Verlag, Bielefeld, 2016.