O problema da política como técnica
Os think tanks aspiram a ser centros de organização da sociedade. Isso porque as entidades devem influenciar seu funcionamento ao nível dos aparelhos públicos, vinculados ao Estado, e dos privados, no nível da sociedade civil. Ao pretender dirigir a ação dos centros de poder ali presentes, eles próprios se tornam importantes espaços de concentração de poder
A sexta-feira 13 de novembro de 2020 não foi um dia de azar para James McGann. A data marcou o início de mais um Global Think Tank Summit, evento que ele organiza reunindo think tanks do mundo todo. Na sétima edição, o fórum contou com a presença de representantes de mais de 150 entidades. Na agenda de debates, constavam avaliações das respostas dos think tanks e governos à pandemia de Covid-19. O objetivo era trocar informações que, segundo os envolvidos, aperfeiçoariam a atuação de Estados no enfrentamento aos desafios postos pelo novo coronavírus.
A criação desse fórum global de think tanks é ponto culminante na trajetória de anos de esforço e dedicação de McGann. A relação entre nossa personagem e essas entidades começa nos anos 1980. Por nove anos, ele foi funcionário da Pew Charitable Trusts,[1] aparelho criado com recursos da Sun Oil Company, a Sunoco, gigante petrolífera de Pittsburgh, Pensilvânia.[2] McGann era responsável por gerir o repasse de verbas da empresa a think tanks selecionados para defender interesses do setor.[3] “A perspectiva de conduzir uma avaliação crítica desse grupo de instituições era intrigante para mim”, confessou depois, “por causa de sua suposta influência e dos milhões de dólares que são gastos diariamente para custear suas operações”.[4]
Naquela época, McGann passa a estudar o outro lado da relação. Torna-se doutor pela Universidade da Pensilvânia, investigando a concorrência por dinheiro, especialistas e influência travada entre think tanks. Conclui que essas organizações compõem uma nova indústria atuante em novo mercado. Disputam recursos empresariais, oferecendo em troca influência sobre a esfera pública. É um processo de mercantilização do poder político, mas McGann assume o discurso oficial dos envolvidos no ramo, argumentando que as entidades são “imparciais”.[5]
Com experiência na interseção entre o mundo corporativo e o acadêmico, em 1989 monta o The Think Tank and Civil Societies Program (TTCSP). A iniciativa começou como laboratório de pesquisas sobre think tanks, mas, pelo menos desde 2008, tenta ser uma espécie de líder do setor. Foi quando começou a publicar o Global go to Think Tank Report, balanço anual sobre entidades em escala planetária.
A cada nova edição, esses documentos trazem diversos rankings, que hierarquizam think tanks por função e áreas nas quais atuam, e sua elaboração conta com a participação da comunidade formada em torno dessas entidades. Inscrito para participar como ouvinte da sétima edição do Global Think Tank Summit, recebi, no fim do ano passado, um e-mail com formulário no qual eu deveria indicar aqueles que eu considerava os melhores think tanks em cada quesito ali arrolado. A mensagem informava que a votação seria submetida à avaliação de um comitê de experts, selecionado pela equipe de McGann. Ao fim do processo, o ranking seria publicado, expressando o ponto de vista dominante entre aqueles que habitam o universo dos think tanks. Claro, tudo sob o prisma de verificação do TTCSP, que não abre mão de dar a última palavra na formação dessas hierarquias.
Tudo isso é pautado por critérios de análise, divulgados pelo programa quando do processo seletivo. A sugestão é que se considere um bom think tank aquele que consegue influenciar a formulação de políticas públicas, com seus associados penetrando nos espaços decisórios do Estado, interagindo diretamente com burocratas de carreira e representantes eleitos pelo voto popular. A entidade deve ser ainda “economicamente viável”, sustentando-se com recursos da iniciativa privada. Por fim, deve demonstrar capacidade de “dirigir” os debates na esfera pública, contribuindo com “um ponto de vista técnico”. Para tanto, precisa divulgar “pesquisas científicas” que sirvam de matéria-prima de discussões travadas nos meios de comunicação de massa, em geral, e em outras associações da sociedade civil.[6]
Do exposto, conclui-se que os think tanks aspiram ser centros de organização da sociedade. Isso porque as entidades devem influenciar seu funcionamento ao nível dos aparelhos públicos, vinculados ao Estado, e dos privados, no nível da sociedade civil. Ao pretender dirigir a ação dos centros de poder ali presentes, eles próprios se tornam importantes espaços de concentração de poder. Em nome do que ou de quem eles o exercem?
Na face mais aparente do fenômeno, são os think tanks e os especialistas que saem ganhando. Dada a pretensão que as entidades nutrem de “superar a distância entre o conhecimento e os princípios de ação (policy)” da sociedade e do Estado,[7] espera-se que experts conduzam o debate, mas ao fim e ao cabo são os próprios think tanks que definem quem são os especialistas no tema em questão. Tem-se, assim, a efetivação de um circuito consagrador: o intelectual eleito empresta parte de seu prestígio ao think tank, que retribui o favor. O avesso do processo é a desvalorização da participação popular na definição dos rumos da sociedade e do Estado – participação excluída desses circuitos pelo movimento que, ao selecionar o que é conhecimento técnico, institui o grupo que dele é despojado.
Mas isso não é tudo. Convém destacar um dos critérios de definição do bom think tank, acima apresentado. Eles devem ser economicamente viáveis, isto é, devem conseguir patrocínio empresarial, o que implica afinar sua atuação aos interesses e valores desse setor. Assim, aquele circuito de consagração conta com uma presença espectral, sem a qual seu funcionamento careceria de fundamento – expresso nos recursos que o viabilizam. Não são apenas think tanks e um determinado grupo de especialistas que saem ganhando, mas também seus financiadores. Empresas que, dessa forma, veem posições que lhes são caras adquirirem estatuto de saber técnico. É por isso que aqui consideramos os think tanks como aparelhos da classe dominante, no capitalismo.
Por colaborar com a organização destes aparelhos, o TTCSP se identifica como “think tank dos think tanks”[8] – ou seja, como aquele capaz de aprimorar e liderar as demais organizações do tipo. Há aqui outro nível de embate político – é isso que estamos vendo, afinal. Trata-se, atenção, da concorrência travada entre os think tanks que querem ser think tanks dos think tanks – processo que põe em disputa quais devem ser os papeis assumidos por esse tipo de entidade, cuja definição potencializa a capacidade de direção do vencedor.
Se um indício da resolução favorável deste confronto é o apoio recebido pelas gigantes do setor, o TTCSP vai bem. Sua parceria mais notável é com a The Brookings Institution, a qual recomendamos atenção ao eventual leitor e/ou leitora, tamanha a importância dessa associação. Neste caso, o suporte fica expresso no financiamento de livros e de atividades da iniciativa;[9] apoio que encontra reciprocidade em textos mais recentes de James McGann. O diretor do TTCSP atribui àquela entidade o papel de modelo de organizações que aproximam o “conhecimento e a expertise acadêmicos” do debate público, contando com atuação de “estudiosos reconhecidos que se engajam em análise empírica, acadêmica e objetiva de questões de políticas públicas no âmbito das ciências sociais”.[10] Definição, notemos, que implica concessão de prestígio em um campo que estabelece uma suposta neutralidade científica como princípio de distinção social.[11]
Os estudos do TTCSP indicam impressionante expansão de think tanks, sobretudo a partir dos anos 1980.[12] Isso mostra certa adequação dessa forma associativa à forma de funcionamento do poder desde então, mas também preocupa McGann. Com efeito, no ano de 2010, em evento da Fundação Friedrich Ebert dedicado a debater o tema, nossa personagem já expressava o temor de que “boas ideias pudessem se perder no mar de cabeças pensantes” resultante do crescente número dessas associações.[13] Os think tanks precisavam, afinal, de uma liderança, um eixo capaz de articular a rede, servindo de ponto de integração e socialização do conteúdo produzido pelas entidades associadas.
Não é sem razão, portanto, que Summits como os daquela sexta-feira 13 de novembro são organizados pelo TTCSP. “Estamos trabalhando agora para criar redes globais de think tanks”, declara o aparelho de McGann, “em um esforço para facilitar a colaboração e a produção de um […] conjunto de bens públicos (public goods) globais. Nosso objetivo é criar parcerias institucionais e estatais duradouras, envolvendo e mobilizando think tanks que provaram sua habilidade de produzir pesquisas […] de alta qualidade e de moldar opiniões e ações do povo e das elites”.[14]
São “bens públicos” (public goods) as estratégias que aprimoram a capacidade dos think tanks de influenciar os formuladores de políticas públicas e o debate público em que atuam, elaboradas com base na experiência coletiva partilhada pela rede associativa. Trata-se de inestimável recurso de poder, uma espécie de acervo de táticas para moldar opiniões e ações acerca dos princípios de funcionamento da sociedade. Trata-se, ainda, de uma grave ameaça à democracia. Afinal, não há qualquer controle popular sobre as organizações e sobre as redes assim formadas. A barreira da participação, que aqui aparece como barreira de saber, faz a política passar por técnica e torna a técnica uma arma política.
Como e por que chegamos até aqui? Essa forma de contenção da participação popular na política tem alguma relação com o anti-intelectualismo grassante hoje? São as questões que tento responder nesta que é uma série de textos.
Em sua segunda parte, tentarei mostrar como os think tanks aparecem como uma alternativa para a contenção da democracia na conjuntura de crise generalizada que marca os anos 1970 nos Estados Unidos. Na ocasião, as entidades, já presentes no acervo das formas associativas das classes dominantes, são recrutadas para a enfrentarem a politização dos setores subalternos, mobilizados na luta pela conquista de espaços no Estado e na sociedade.
Na terceira e última parte, defendo que a superação das turbulências dos anos 1970 contribuiu com o encastelamento do poder político, instituindo barreiras à participação popular. A manifestação da crise que ora atravessamos, segundo entendo, tem íntima relação com esse processo, não podendo ser adequadamente compreendida sem referência a ele.
Ao fim da série, espero contribuir com a compreensão da esfinge do nosso tempo. Falo da chamada “crise da democracia”, processo histórico no qual movimentos políticos bizarros têm emergido, indicando ao mesmo tempo os problemas estruturais da forma de vida que levamos e os limites das propostas políticas democratizantes que defendemos.
Diego Martins Dória Paulo, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), foi professor de História do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ) e de História do Brasil da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – campus Marechal Cândido Rondon (Unioeste) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, é professor substituto do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ), lecionando História do Brasil para os cursos de Ciências Sociais e Relações Internacionais.
Confira os próximos artigos desta série
- Os turbulentos anos 1970 e a contraofensiva empresarial problema da política como técnica
- Crise e anti-intelectualismo hoje
[1] MCGANN, James. The competition for dollars, scholars and influence in the public policy research industry. Tese de PHd. Universidade da Pensilvânia, 1991, p. 3. Disponível em:
https://repository.upenn.edu/dissertations/AAI9200370
[2] A Pew Charitable Trusts, fundada em 1948 e reorganizada nos anos 1970, é uma das inúmeras organizações do gênero radicadas nos Estados Unidos. Apresenta-se de modo mistificador, assegurando defender o interesse público em diversos setores, como saúde, educação, arte – sem jamais explicitar exatamente o que defende. Mais informações sobre a entidade podem ser acessadas em seu site. Ver: https://www.pewtrusts.org/pt/about/mission-and-values
[3] MCGANN, James. Op. cit. P. 3-4.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] No parágrafo, sintetizei o conjunto de critérios que devem ser levados em consideração quando da montagem dos rankings. Para acessar a lista completa, ver: MCGANN, James, 2020 Global Go To Think Tank Index Report. TTCSP Global Go To Think Tank Index Reports, 2021. Disponível em: https://repository.upenn.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1019&context=think_tanks
[7] É uma espécie de lema que consta na “missão” do TTCSP e em diversas publicações do laboratório. Ver em seu site: https://www.gotothinktank.com/history-and-mission
[8] A reivindicação do “título” também consta na “missão” da entidade, disponível aqui: https://www.gotothinktank.com/history-and-mission.
[9] O evento que abriu este texto é um exemplo de atividade financiada pela The Brookings Institution. Ana Claudia Pinheiro, em trabalho orientado pelo importante pesquisador Ary Minella, identificou livros de McGann financiados pela mesma fundação. Ver: PINHEIRO, Ana Claudia. Repensando os think tanks. Uma revisão da produção acadêmica brasileira. Trabalho de conclusão de curso. Universidade Federal de Santa Catarina. P. 18
[10] McGann, James G. Think Tanks and Governance in the United States. In: ______ The Fifth Estate: Think Tanks, Public Policy, and Governance,. Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2016, P. 8
[11] A análise se apoia na teoria dos campos, desenvolvida por Pierre Bourdieu. Ver: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012
[12] A entidade registrou 1777 think tanks nos Estados Unidos em 2008. Em 1980, eles eram menos da metade. Ver: MCGANN, James. 2008 Global Go To Think Tanks Index Report. TTCSP Global Go To Think Tank Index Reports, p. 11. Disponível em: ttps://repository.upenn.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1000&context=think_tanks
[13] MCGANN, JAMES The think tanks. The global, regional and national dimensions. In: RICH, Andrew et all. Think tanks in policy making. Do they matter? Briefing paper, special issue, Xangai, setembro de 2011. Disponível aqui: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/china/08564.pdf
[14] Tradução livre a partir do seguinte trecho: “Our goal is to create lasting institutional and state-level partnerships by engaging and mobilizing think tanks that have demonstrated their ability to produce high quality policy research and shape popular and elite opinion and actions for public good”. Optei por traduzir public good por bem público, como é o usual em português no Brasil, mas o sentido do texto original está mais próximo do que entendemos por tecnologia política: formas de operação do público, desde sua elaboração a sua execução e reprodução. O texto na íntegra, em inglês, está disponível em: https://www.gotothinktank.com/history-and-mission