Crise e anti-intelectualismo hoje
O Think Thank and Civil Societies Program e os think tanks são resultantes de esforços cotidianos de contenção da democratização. Integram, conforme visto no primeiro texto desta série, movimento de exclusão da participação popular de espaços decisórios
A Queda da Bastilha, em 1789, simboliza profunda mudança de época. Saem de cena os privilégios feudais, determinados pelo nascimento; é chegado o tempo da cidadania. A conhecida Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pelos revolucionários franceses naquele ano, exprime avanços logrados. O famoso texto declara, em seu artigo 6º, que todos os cidadãos são iguais perante a lei. Lei que, na letra do documento, aparece como “expressão da vontade geral”, produto da coletividade dos cidadãos que ela instaura e que, naquele momento, é incorporada pelos que ditam a norma. Trata-se de um suposto atributo do cidadão, qual seja, esta capacidade de se fundir na coletividade por sua vocação universal.
O texto, todavia, reserva espaço para particularidades que distinguem pessoas reais. Elas são legítimas, desde que confinadas nos limites do que é considerado como “virtude” e “talento”. Traços da individualidade que se efetiva na vida privada – espaço por excelência de manifestação desses atributos, que se expressariam na efetivação de diferentes condições de existência. A Revolução Francesa, assim, consolida a cisão entre um espaço privado, onde a desigualdade aflora; e o espaço público, instância de universalização na qual as particularidades deveriam ser ocultadas. O caráter universal da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão indica se tratar da suposta descoberta de uma realidade natural, que estaria presente, até então, de modo oculto, virtualmente, em toda sociedade humana. A descoberta francesa, por conseguinte, marcaria o primeiro passo para advento de uma era tendencialmente mais democrática, posto que desdobrada sob o signo de valores universais perseguidos pelos cidadãos.
Pouco mais de cinquenta anos depois, Karl Marx começou a demarcar os limites do terreno conquistado. A circunscrição da igualdade à esfera da cidadania, em que pese representar vitória sobre os grotescos parâmetros de vida da nobreza, consolidou a distinção e a coexistência entre duas dimensões da sociedade – a política e a civil –, resultando na preservação das desigualdades no espaço da vida privada, com consequente impossibilidade de realização da democracia.[1] Desigualdades que, muito embora sejam atribuídas a virtudes e talentos, devem-se sobretudo à desigual inserção nas relações sociais postas pelo modo de produção e reprodução da existência. Nesse sentido, o desenvolvimento das reflexões marxianas nos alerta a respeito de uma contradição fundamental, que emerge nessa época. Por aquele expediente, ajustou-se um sistema de reprodução da vida social baseado na apropriação privada de excedentes – o capitalismo – a um tipo de organização política baseado na igualdade formal, isto é, igualdade na esfera pública, espaço do exercício de direitos e deveres que permitem a efetivação de trocas voluntárias, cuja generalização é necessária a uma sociedade de mercado.
Desde então, as crises da democracia são resultantes dessa tensão.[2] A desigualdade privada vigente em uma sociedade com igualdade pública representa ameaça potencial e efetiva a essa forma social, na medida em que a mobilização dos que nela são dominados tende a pôr em xeque seu afastamento em relação aos centros de poder. A reprodução das dicotomias público/privado; sociedades política/civil, bem como a esterilização do potencial transformador da política, por conseguinte, não são produtos espontâneos do processo histórico, mas fenômeno reiterado no tempo pela ação contrarrevolucionária dos dominantes. Ação que assume formas espetaculares, como golpes de Estado e ditaduras, espectro onipresente na época que assim se abre; mas também formas discretas, efetivadas no esforço cotidiano de contenção da democracia nos limites daquele complexo ajuste entre igualdade formal e desigualdade substancial.[3] Ação que, contudo, na medida em que se afirma não pode deixar de fortalecer sua negação, isto é, as lutas pela socialização da política,[4] cuja força motriz reside, precisamente, na manutenção daquela contradição. Por isso, toda superação da crise no capitalismo é necessariamente provisória, na medida em que ele próprio é um ser em estado de crise.[5]
Vimos no artigo anterior como a constituição de uma rede de aparelhos técnicos, e de uma imprensa a eles vinculada, representou a tentativa de superação da manifestação dessa crise nos anos 1970. O Think Thank and Civil Societies Program e os think tanks são, assim, resultantes daqueles esforços cotidianos de contenção da democratização. Integram, conforme visto no primeiro texto desta série, movimento de exclusão da participação popular de espaços decisórios. Exclusão que, assim, aparece como limitação da participação aos que detêm saber considerado legítimo – necessidade que seria posta pelo desenvolvimento de uma sociedade cada vez mais complexa, cuja direção dependeria de conhecimento especializado. Trata-se, enfim, de movimento que tem legado ao nosso tempo de vida um Estado cada vez mais entrincheirado contra a participação popular.
Em trabalho recente, o cientista político Yascha Mounk mostra como, nos Estados Unidos, a maioria esmagadora das atividades do aparelho político hoje se dá por meio de autarquias. “Em 2007, enquanto o Congresso aprovou 138 leis públicas”, ele conta, “as agências finalizaram 2.926 regulamentos. E não se pode pontificar que os eleitores disponham de alguma forma real de supervisionar as regras às quais se subordinam”.[6] A atuação dos bancos centrais é um exemplo concreto. Mounk lembra que, desde a dissolução dos acordos de Bretton Woods, em 1971, eles vêm ampliando sua autonomia, de modo que “algumas das decisões econômicas mais importantes para países do mundo todo hoje são tomadas por tecnocratas”.[7] Aqui, a atuação dos think tanks se destaca. São estes, afinal, elos na cadeia da formação das políticas públicas ditas tecnicamente embasadas a serem colocadas em prática por meio desses espaços de poder isolados do alcance democrático, em processo que se estende por todas as áreas, da saúde à educação.[8] Processo que fortalece a tendência de estranhamento do poder político por grupos dominados.

Com efeito, na interface daquela disjunção entre esferas pública e privada, aparece o indivíduo cindido, ao mesmo tempo ser particular e universal. Na esfera da vida privada, ele deve atuar e esperar ser tratado em sua particularidade, enquanto na vida pública é sua dimensão universalista a que supostamente age. Do ponto de vista dos indivíduos trabalhadores, ocupantes das posições dominadas no capitalismo e cuja participação na esfera pública deve ser por isso contida, o Estado tende a aparecer como algo estranho, alheio.[9] Essas pessoas sabem que a realidade da vida é a vida particular em sua dureza, ainda que eventualmente ignorem que esses desafios são postos pelo despotismo do capital. Os momentos de celebração da igualdade formal e da suposta universalidade da ação estatal são, assim, frequentemente encarados com cinismo, pela impossibilidade de sua efetivação nos marcos de uma sociedade atravessada por aquela contradição. A distância que os separa dos centros de poder compreende, por isso, o espaço de desenvolvimento potencial de toda sorte de fantasias e conspiracionismos, cujo grão de verdade é uma forma política capturada por outros, mas que diz existir também em seu nome.
A manifestação desse afastamento é conhecida como crise de representação. Nesse sentido, elas nos dizem muito sobre a maneira como se tem contido a participação popular em limites aceitáveis pelos dominantes. Por esse prisma analiso o que se tem chamado de anti-intelectualismo.[10] Entendo que ele se nutre da fratura entre Estado e classe trabalhadora no capitalismo. Fratura histórica, específica, que hoje se apresenta em parte na forma do domínio privado de um código específico – o saber técnico, especializado – mas cujo lastro efetivo é o controle privado de centros decisórios no processo de formulação de políticas públicas.[11] Aparência que, tornada absoluta na prática política da extrema-direita, expressa os limites do movimento que a propaga. O problema, claro, não está nos intelectuais, no conhecimento, nem mesmo no que se pode considerar como “técnica”, mas nas hierarquias presentes também no campo de produção de saberes – sobretudo no seu uso para garrotear a participação popular. Essas particularidades, combinadas às funções do Estado no capitalismo, que, para usar eficiente expressão surrada pelo tempo, priorizam a bolsa, não a vida, fazem com que o conhecimento se apresente às maiorias de modo pervertido. Se esse poder é o poder dos que sabem, é fácil deduzir que todos que sabem são a causa do sofrimento, ainda que isso seja fundamentalmente tomar as coisas pelo avesso.
Combater esse processo de regressão social – que em nosso país flerta com o genocídio, com o presidente Jair Bolsonaro boicotando as recomendações das autoridades de saúde durante grave pandemia, que já ceifou as vidas de mais de meio milhão de pessoas – é um imperativo para todos aqueles preocupados com a democracia. Fazê-la avançar passa por compreender a força da atração daquele movimento. O que ocorre é que, no tempo em que a fratura do Estado capitalista se revela mais uma vez, não conseguimos construir um horizonte democratizante capaz de atacar a contradição fundamental entre a desigualdade substancial e a igualdade formal. Na ausência da revolução transferida para as calendas gregas, a extrema-direita cresceu e apareceu, falseando o ataque ao “sistema” e arregimentando apoio dos que por ele são “excluídos”.
É óbvio que Bolsonaros e Trumps não representam saída efetiva dessa situação. Federico Finchelstein, em importante trabalho sobre a história do fascismo e do populismo, velhos e novos, mostra como as “crises de representação” que dão fôlego a esses movimentos também evidenciam seus limites.[12] Isso porque a solução que eles oferecem é a troca de uma forma de dominação por outra, é a substituição do falseamento tecnocrático da democracia por uma ilusão. A ilusão de que há um líder capaz de interpretar corretamente os anseios do povo, de falar a verdade que liberta. Trata-se de uma mudança que nada muda, e faz sentido que seja assim. A extrema-direita é a alternativa da classe dominante para quando outras formas de exercício do poder deram uma fraquejada.
Enquanto isso, os think tanks ampliam seu alcance desde os anos 2000, apesar de atuais dificuldades postas pelo “ambiente político”. James McGann relata que o início do milênio testemunhou a formação de redes de colaboração internacional.[13] Embora ele julgue um “fenômeno novo”, a conexão de entidades associativas no plano internacional é mais antiga, existente pelo menos desde a primeira metade do século XX.[14] Talvez seja inédita a estabilidade das conexões, que, graças à evolução dos meios de comunicação, garante reuniões praticamente instantâneas e fluxos de informação constantes. Mesmo durante a atual pandemia, que deixou muita gente isolada em quarentena, a sétima edição do Global Think Tank Summit, cuja apresentação abriu esta série de textos, foi realizada. E outros encontros estão confirmados.[15]
Se quisermos efetivamente defender a democracia e enfrentar a extrema-direita, é preciso recuperar a defesa radical da democracia. Isto é, de uma democracia que comece na vida privada e se estenda para a vida pública. Para não ir longe, lembremos os ensinamentos de Carole Pateman, feminista e estudiosa dessas questões. Pesquisas coincidentemente ou não realizadas por ela nos anos 1970 insistiam que sem uma gestão coletiva de tudo – de tudo – não poderíamos ter esperanças em um futuro para a humanidade, livre de crises como as que aqui tratamos e das figuras bizarras a que elas dão luz.[16] Há de se perguntar por que esquecemos essa valiosa lição.
Diego Martins Dória Paulo, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), foi professor de História do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ) e de História do Brasil da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – campus Marechal Cândido Rondon (Unioeste) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, é professor substituto do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ), lecionando História do Brasil para os cursos de Ciências Sociais e Relações Internacionais.
Confira os artigos anteriores desta série
[1] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 1997. A partir do desenvolvimento da obra do pensador alemão que persegue essas pistas, aprendemos que, na primeira, as pessoas são iguais como cidadãs, sujeitas da mesma maneira às leis, dotadas do mesmo conjunto de direitos. Esta é por definição a dimensão de uma das formas de Estado hoje vigentes, chamada Estado de direito e baseada em contratos – fundamento indicado já na mitologia que explica suas origens, isto é, o contratualismo. Trata-se de suposto representante da universalidade que sintetizaria as múltiplas particularidades que seguem como tais na dimensão da sociedade civil. Esta permaneceria como dimensão da vida privada em suas múltiplas diferenças. Espaço, portanto, em que aqueles cidadãos genéricos se revelam pessoas determinadas – com gênero, raça, classe social e modos de vida distintos.
[2] Importante o suficiente para atrair atenção de grandes pensadores que investigaram o problema de posições sociais radicalmente opostas. Após o já mencionado Marx indicar os potenciais transformadores dessa contradição, entendida por ele como fundamentalmente baseada na propriedade privada dos meios de produção, Carl Schimitt, em seu A crise da democracia parlamentar, também identifica que esse regime exige igualdade substancial, mas desloca a natureza dessa substância. Isso porque ela é entendida por ele como homogeneidade sobretudo étnica. Daí as observações elogiosas à Turquia, que na época da redação do texto deportava gregos no processo de promoção da “turquificação” do país. Daí também considerar que o nazismo tinha raízes democráticas, na medida que por obra dele o povo alemão seria formado para a homogeneidade ariana. Ver: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996, p. 16.
[3] A obra sobre a luta contra a democracia é vasta. Para ficar em um exemplo, indico a leitura de LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
[4] Tendência que, ao equalizar a humanidade na categoria de cidadão, mas conservar suas particularidades na esfera “privada”, permite que, em uma sociedade liberal, as desigualdades derivadas das diferenças verificadas na instância privada possam se expressar livremente naquela “esfera pública”. Para uma discussão dos problemas que isso interpõe à democracia, ver: LENIN, V. I. Democracia e luta de classes: textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019.
[5] István Mészáros, partindo das contribuições de Karl Marx, enfatiza a sobreposição alienada entre Estado e modo de produção capitalista. Em poucas palavras, o filósofo húngaro indica assim a impossibilidade de resolução da crise do Estado nos marcos do capitalismo, posto ser ela amadurecimento das contradições do modo de produção. Com ele aprendemos que já na base sociometabólica desta forma de vida a centrifugalidade é uma característica determinante, isto é, a expulsão de largas parcelas da sociedade dos espaços de controle, o que resulta na alienação que impede o reconhecimento mútuo entre as partes, isto é, entre subalternos e as criações do poder. A sobreposição alienada, assim, é essa característica que atravessa o ser complexo surgido do desenvolvimento do capitalismo que engendra o Estado capitalista. MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos conquistar. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 17.
[6] MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 81-82.
[7] MOUNK, Yascha. Op cit, p. 87.
[8] A importante pesquisa de Mounk, no entanto, detém-se na superfície do fenômeno, atribuindo sua gênese à “complexidade dos desafios regulatórios” que teria “disparado” com o desenvolvimento econômico desde o pós-guerra – o que é parcialmente verdadeiro, mas está longe de explicar o processo. Creio ter mostrado aqui, em vez disso, que o reforço da tecnocracia corresponde a uma manobra da luta política, por meio da qual a classe dominante tentou superar a crise provocada pelo que organizações como a Comissão Trilateral chamaram de “excesso de democracia” dos anos 1960 e 1970. Nesse sentido, mesmo o modo de vida que dá à luz uma ciência econômica intrincada expressa a alienação da maioria da população que, despojada da participação nos centros de controle da sociedade, passa a observá-la com crescente estranhamento. Assim, aqueles “desafios” não são a causa, mas o efeito do processo que aqui tentei descrever. Ver: MOUNK, Yascha. Op. cit, p. 76-87; CROZIER, Michel; HUNTINGTON, Samuel; WATANUKI, Joji. The crisis of democracy. Report on the governability of democracies to the Trilateral Comission. Nova Iorque: New York Press, 1975, p. 114.
[9] Exceção feita aos momentos em que as contratendências postas pelas lutas democratizantes conseguem se impor, fazendo a participação popular no Estado relativamente aumentar. Sempre, contudo, nos limites do modo de produção capitalista, garantidos pelo espectro da ditadura contrarrevolucionária.
[10] Para uma história do que se poderia entender como “anti-intelectualismo em geral” nos Estados Unidos, ver o clássico HOFSTADTER, Richard. Antiintelectualismo nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
[11] Código aqui entendido como a forma da mensagem. Trata-se de um conceito usual na teoria da comunicação, que diferencia mensagem, código e canal – sendo o último o meio por onde corre o fluxo da informação. Ver: VANOYE, Francis. Usos da linguagem. Problemas e técnicas na produção oral e escrita. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
[12] FINCHELSTEIN, Federico. Do fascismo ao populismo na História. São Paulo: Almedina, 2019.
[13] MCGANN, James. Op. cit. 2011, p. 9.
[14] Sobre o tema, o trabalho de René Dreifuss segue como referência principal. Ver: DREIFUSS, René. A internacional capitalista. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
[15] Nos dias 22 e 23 de junho último, outro fórum global foi sediado pelo TTCSP. A agenda da entidade prevê ainda para este ano a oitava edição do Global Think Tank Summit. Para consultar a agenda, ver: https://www.gotothinktank.com/upcoming-summits.
[16] PATEMAN, Carole. Participation and democratic theory. Cambridge: University Press, 1976