O problema da punição
Como justificar uma ação estatal que visa causar dano intencional, uma vez que isso é errado em situações regulares?
Em um país conhecido internacionalmente pelo desrespeito aos direitos humanos de sua população carcerária, que já é uma das maiores do mundo, com 979 mil presos em 2021, um fato chamou atenção recentemente. O Pavilhão F do antigo Presídio Central de Porto Alegre, agora Cadeia Pública de Porto Alegre, foi demolido no fim do último mês de maio. Também, dois pavilhões restantes devem ser derrubados até o final do ano de 2023, sendo que uma nova penitenciária, com capacidade para 1,8 mil presos, será construída. Na avaliação de Luiz Henrique Viana, Secretário de Sistemas Penal e Socioeducativo do Rio Grande do Sul, o fato é emblemático, pois “é para acabar com uma história que nós temos aí, de fugas, rebeliões, uma ação na Comissão dos Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que mancha a história de nosso Rio Grande. Uma nova história, com melhores condições de trabalho aos servidores, mais dignidade para pessoas privadas de liberdade, para que possam cumprir a pena” (RBSTV 25/05/2023). E esse fato é marcante, pois o Presídio Central é conhecido como uma das piores cadeias no Brasil, com superlotação, problemas estruturais, insalubridade e controle das celas e galerias executado pelas facções. E isso é um grave problema, pois estas condições, por exemplo, violam a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) que estabelece que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas cruéis, desumanas ou degradantes, uma vez que toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade ao ser humano, destacando que o objetivo das penas de privação de liberdade é a reforma e a readaptação das pessoas condenadas.
Embora seja muito relevante refletir sobre os problemas concretos que afligem o sistema penal brasileiro, sobretudo refletindo sobre o desrespeito aos direitos humanos a que a população carcerária é submetida diariamente, bem como sobre os altos índices de reincidência no país, gostaria de pensar mais detidamente sobre o problema mesmo da punição, isto é, de como podemos justificar tanto a instituição da punição, como os atos punitivos propriamente ditos, bem como a quantidade das penalidades. Este tema é conhecido na literatura como o problema normativo da punição, isto é, como justificar uma ação estatal que visa causar dano intencional, uma vez que isso é errado em situações regulares? E creio que isso seja relevante, pois pode nos ajudar em um processo civilizatório para compreender que a punição não é necessariamente equivalente a sofrimento.
O problema normativo da punição
É comum, em nossas sociedades, punirmos os agentes que cometem crimes, seja com a privação da liberdade, serviço comunitário, estabelecimento de multas, ou ainda, em certos lugares, até mesmo com a pena de morte, como é o caso da China e alguns estados dos EUA, por exemplo. Mas, como justificar a punição legal, dado que ela é um ato estatal intencional que visa causar dano aos ofensores e causar dano intencional é um ato errado em situações regulares? Esse é o problema normativo da punição, que investiga sobre a justificação do dano intencional estatal, e pode ser formulado da seguinte maneira: como pode do fato da pessoa responsável descumprir uma regra ou lei justa seguir a permissão moral para uma autoridade legítima (estatal) causar dano ao agente, sendo que isso não é permitido em situações comuns? A resposta usual é dizer que a punição é justificada porque o agente cometeu um crime, que é um ato errado, enquanto os outros obedeceram a lei. Mas, um dos problemas é que nem todo crime é um ato errado e nem todos os atos errados são punidos em nossas sociedades. Pensemos no ato de jogar em um cassino. Ele é um crime no Brasil, mas não se configura como um ato errado moralmente, pois não produz nenhum dano direto aos outros e, inclusive, é um ato legal em muitos países, como os vizinhos, Uruguai e Argentina. Também, nem todos os atos errados são passíveis de punição legal, como é o caso da infidelidade, mentira, deslealdade etc. É claro que nós ensinamos aos jovens que mentir é errado, bem como que é errado trair os amigos, mas essas ações não estão tipificadas no Código Penal e não são passíveis de punição, apenas de censura.
O problema normativo, então, é ver como podemos justificar essas ações estatais reprobatórias e retributivas que intencionam causar sofrimento, considerando que é um erro moral causar sofrimento aos agentes. Mesmo assumindo que aqueles que descumpriram a lei são responsáveis por suas ações e que as leis são justas, ainda assim temos um problema relevante: como pode do fato da pessoa responsável descumprir uma lei justa seguir a permissão para uma autoridade legítima causar dano ao agente, sendo que isso não é permitido em situações regulares, considerando as democracias liberais? Veja-se que a punição envolve tratar aqueles que descumpriram a lei de uma forma tal que seria errado tratá-los assim se eles não a tivessem descumprido, estabelecendo uma linha divisória entre os cidadãos de um dado país. E a linha se estabelece, de forma geral, pelo (de)mérito ou culpa, de forma que os que descumpriram a lei mereceriam o sofrimento recebido pela escolha livre do mal cometido.
Assim, a punição envolve estabelecer uma linha tênue entre os culpados e inocentes, de forma que seria errado tratar os inocentes da mesma maneira que se trata os culpados, causando danos apenas em um grupo e não em outro, punindo-se o agente porque ele é culpado do crime, considerando que o crime é um ato errado. Um dos problemas é que sempre se pode punir um inocente, uma vez que os julgamentos – via tribunais – são casos de justiça procedimental imperfeita. Veja-se o famoso caso Dreyfus, que foi injustamente condenado pelo crime de traição ao exército, injustiça essa que só descoberta posteriormente à sua prisão. Também, há muitos crimes que não são moralmente errados, como é o caso da poligamia ou do jogo em cassino, considerando o Código Penal brasileiro, bem como há muitos atos errados que não são punidos, como já foi dito, como a deslealdade, mentira, o egoísmo etc. Além destes problemas, há o problema da desproporção entre o crime e a pena, pensando nos crimes contra a propriedade, por exemplo, de forma que a violação dos direitos dos ofensores parece maior que a violação dos direitos das vítimas. Mais grave ainda, há casos em que a culpa é compartilhada com a estrutura social, política e econômica do país, como no caso da pobreza e desemprego explicar, parcialmente, um ato de roubo ou tráfico de drogas. E essa última consideração é importante, considerando que a população carcerária brasileira é composta majoritariamente por pessoas pobres, pretas e com baixa escolaridade.
Embora seja comum no debate se falar do problema da justificação da punição, é possível distinguir três problemas distintos, mas que estarão conectados, a saber: a justificação da instituição da punição, a justificação dos atos particulares punitivos e a justificação mesma das penalidades. Com essa distinção em mente, o problema de justificar a instituição da punição tem relação com a justificação de um sistema legal que pune as pessoas pelo dano cometido, por exemplo, ao invés de perdoá-las ou até mesmo modificá-las geneticamente para que não venham a cometer futuros crimes. Os abolicionistas penais, por exemplo, defendem que devemos extinguir a instituição da punição, uma vez que o Estado não poderia justificar moralmente o dano intencional cometido apenas contra alguns de seus cidadãos e, assim, como não haveria uma solução para o problema da punição, seria moralmente proibido para o Estado punir as pessoas pelo descumprimento da lei.
O segundo problema é diferente, trata-se de justificar o ato particular punitivo, isto é, porque punir o agente A e não o agente B. Uma resposta bastante influente no debate é dada pela teoria retributivista, que diz que a culpa do agente em ter agido ilicitamente é uma razão suficiente para puni-lo, e que seria injusto, em qualquer circunstância, punir um inocente, mesmo considerando as boas consequências que isto traria, como seria o caso da maior estabilidade social por auxiliar a prevenir futuros crimes. Esta parece ser uma das principais diferenças entre as teorias retributivista e preventivista, uma vez que para a última a justificação do ato particular punitivo não se dá pela culpa do ofensor, mas considerando as melhores consequências que se tem com a instituição da punição. Por fim, o terceiro problema tem relação em como justificar os diversos tipos de penalidade e a quantidade mesma da pena. Por exemplo, como justificar a privação da liberdade ou a pena de morte? Isso não feriria os direitos individuais dos ofensores e, imperativamente, deveríamos abolir essas modalidades punitivas e substitui-las por práticas punitivas que não visassem o sofrimento do cidadão, talvez com serviços comunitários ou uma terapia benéfica não punitiva? Similarmente, como justificar uma pena de vinte anos de privação de liberdade ou uma pena perpétua de prisão? Fazendo menção ainda às duas teorias mais influentes do debate, para o retributivismo os tipo de penalidades e a sua quantidade seriam justificados pela proporcionalidade entre o crime e a punição, enquanto que, para o preventivismo, as penalidades seriam justificadas apenas pelos bons resultados que elas podem gerar, que é maior segurança ou bem-estar social e, dessa forma, poderia ser o caso, ao menos teoricamente, de se punir um ofensor com penas desproporcionais ao delito praticado, ou com penas muito pesadas ou com penas muito leves, ou mesmo com a total ausência de penalidades.
Duas rotas promissoras
A primeira rota seria considerar que a instituição da punição deve se justificar pelos benefícios que ela gera, tanto ao ofensor, como à vítima, bem como à sociedade como um todo, devendo oportunizar tanto a prevenção de futuros crimes quanto a reforma e ressocialização dos ofensores, e não estar ligada a uma ideia retributivista tradicional de retribuição ao sofrimento causado. Até porque no final o objetivo central da punição em nosso país é a reconciliação, uma vez que nós não temos pena perpétua e nem pena de morte. Isso pode propiciar a base de uma política pública para proteger a sociedade daqueles que causam danos aos outros, compreendendo que o crime é cometido em geral por pessoas comuns e não por monstros cruéis, o que poderia levar a uma investigação necessária sobre as causas mais profundas do comportamento criminoso, de forma similar como as organizações de saúde buscam investigar as causas dos padrões das doenças. Isso poderia implicar, inclusive, em adotar práticas restaurativas no interior mesmo do sistema penal, sem precisar se valer dos pressupostos abolicionistas que parecem utópicos se confrontados com teses científicas sobre a psicologia humana e a natureza social, além de parecerem inspirarem-se, como diz Ferrajoli em Derecho y Razón (Trotta, 2001, p. 250-251), em um moralismo mitológico e nostálgico em relação a modelos arcaicos de comunidades sem direitos.
A segunda rota sugerida, sobretudo para lidar com o ato particular punitivo e a justificação dos tipos de penas (e sua quantidade), seria apelar para uma moralidade política esclarecida, de forma a se pensar nas penalidades como podendo gerar um benefício aos ofensores, visando sua ressocialização. Embora os crimes possam ser errados moralmente, pensar na punição como estando fundamentada apenas na responsabilidade moral do agente, isto é, em sua culpa, se mostra como uma fonte de mal-entendido para se lidar com o problema de um ponto de vista legal. Assim, a estratégia seria olhar, concomitantemente, para as distorções sociais, políticas e econômicas que estão na base das decisões dos agentes. Como dito corretamente por Hyman Gross, em Crime and Punishment (Oxford University Press, 2012), certamente há vilões e monstros em nossas prisões, mas elas estão repletas principalmente de pessoas socialmente vulneráveis, iletrados, deficientes mentais e mentalmente doentes, de forma que as condições infelizes parecem estar intrinsecamente conectadas às razões delas estarem na prisão (2012, p. vii). Com isso em mente, as penas alternativas, tais como práticas restaurativas, mediações, serviço comunitário e multas, entre outras, parecem mais promissoras, em alguns casos específicos, que a pura privação de liberdade.
Adotar essas duas rotas seria uma forma de evitar que se compreenda a punição como equivalente ao sofrimento, a entendendo, também, como uma terapia que pode ser benéfica ao ofensor, à vítima e a comunidade como um todo. Assim, como defendido por Bruce Waller, em The Injustice of Punishment (Routledge, 2017), aquele que causa dano receberia uma terapia benéfica ao invés de uma punição dolorosa (2017, p. 143-161). O ganho dessa visão é que isto pode propiciar uma política mais esclarecida para proteger a sociedade daqueles que cometem crimes, bem como poderia incentivar a realização de pesquisas científicas sobre as causas mais profundas do comportamento criminoso, desmistificando a imagem do ofensor como um agente que escolhe livremente fazer o mal, sendo ele próprio um tipo de personificação do mal. Mesmo considerando que as prisões continuarão existindo, elas podem oferecer uma boa estrutura e segurança aos apenados, além de estudo e trabalho, e não ser um lugar de sofrimento, tendo por foco a reabilitação do agente e sua ressocialização. Assim, se poderia defender um tipo de punição humanizada, que se compromete com a dignidade de todos os seres humanos.
Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Pesquisador do CNPq.