Intermitências da prisão
A garantia dos direitos de um são as garantias dos direitos de todos
O sol brilha em um céu de azul intenso. A temperatura agradável permite que eu me sente em um banco e coma um croissant que, de tão fresco, dissolve-se na boca. Estou na praça Labbé Georges Hénocque, no quartier des Peupliers. O bairro remonta ao século XVIII e suas ruelas de paralelepípedos levam a prédios de dois andares com fachadas verdejantes e floridas. É Paris na primavera.
Depois de onze anos na Vara de Execuções Penais, resolvi pegar férias plenas, sem interrupção. Anteriormente, o máximo que havia usufruído resumia-se a uma semana ou pouco mais. As atividades da unidade, com suas demandas externas de corregedoria dos presídios, não permitiam um afastamento maior. Sempre existiam urgências que, por se estenderem no tempo e trazerem reflexos para todo o sistema, demandavam a minha presença. Dessa vez, porém, entendi que era o momento, eu precisava desse afastamento, longe do exaustivo trabalho forense e do duro complexo prisional, tinha necessidade de colocar a cabeça no lugar, por assim dizer. Então, de maneira inédita, ultrapassados os trâmites burocráticos, no último dia do expediente, às 19h, fiz recomendações à assessoria, desejei boa sorte e me fui, rumo ao velho continente.
Profundamente consciente do privilégio de estar em uma das cidades mais lindas do mundo, que também tem seus sérios problemas, a começar pelas pessoas em situação de rua, a maioria refugiada do norte da África e leste europeu, em um desafio humanitário sem precedentes, tomei esse tempo para mim, na certeza de que a distância me traria maior lucidez sobre meu trabalho e sobre o sistema de justiça criminal e prisional.
Com essa sensação, diante desse lugar tão aprazível e etéreo, ora escrevo este texto. O título é uma alusão direta à obra do português José Saramago (As intermitências da morte) e se deve exatamente à vida aprisionada e à morte simbólica dos condenados que, vez ou outra, atingem-me de forma implacável.
O que percebo, a bem da verdade concluo, é que existe uma força veemente que se opõe a qualquer mudança no sistema, que não signifique brutalidade e desumanidade.
Ao longo dos anos, foram milhares de decisões que tomei, centenas de palestras que proferi, em faculdades, escolas, coletivos, associações, instituições públicas e privadas, infindáveis entrevistas concedidas, diálogos reflexivos realizados! Em todas as ocasiões levei apontamentos sobre o fenômeno da violência, sobre a criminologia, sobre as interpretações dos tratados e pactos internacionais de direitos humanos, mostrei os dados, defendi o desencarceramento, o não encarceramento. Entretanto, não interessa o tanto que eu tenha trabalhado, pouca mudança houve; seres humanos, de maioria negra, continuam sendo jogados em depósitos de tristezas.
Em 2012, quando iniciei meus trabalhos como juiz da execução penal, no país havia cerca de 500 mil presos. Atualmente, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, esse número ultrapassa os 900 mil, nada obstante o Ministério da Justiça aponte um número por volta de 700 mil (os dados não são qualificados e o Estado não chega a um levantamento preciso). De uma forma ou de outra, a população prisional aumentou, mas a estrutura não. O efeito é a superlotação e a série de malefícios que dela decorre.
O fundamento da República, consubstanciado na dignidade da pessoa humana (art.1o, III, da Constituição Federal), a vedação da tortura (art.5o, IV), a individualização da pena (art.5o, XLVI), a proibição de penas de morte e cruéis (art.5o, XLVII, “a” e “e”), as Regras de Mandela, o Pacto de São José da Costa Rica, a Lei de Execução Penal, entre tantos outros ordenamentos, inclusive Súmulas Vinculantes do STF e resoluções do Conselho Nacional de Justiça, nada disso tem implicado em alterações estruturais ou evitado o extermínio de uma parcela da juventude brasileira, totalidade da população prisional. A falta de oportunidades e de acesso aos direitos fundamentais tem condenado famílias à prisão e essa condenação atinge gerações. Pior, é uma prisão que se tornou a morte do condenado, se não física, a morte social, nela se trata de mortos-vivos!
A coisa é inconstitucional e fazemos de conta que não é conosco! E quem se importa, quem assume que a coisa é conosco mesmo, este trava uma batalha. Não me refiro ao micro, ao universo que está ao meu alcance, mas ao macro, à universalidade. O encarceramento tem aumentado de uma maneira nunca antes vista. Com alguma calmaria e recuo aqui e acolá, a prisão continua com seu avanço arrebatador, sendo a primeira e única resposta para a segurança pública, não importa o horror e tragédia que ela cause.
É difícil ter essa consciência! Parafraseando Dostoiévski, em sua obra Irmãos Karamázov, como havemos de viver com semelhante inferno em nosso peito e nossa cabeça?
Estamos na beira do abismo e somente a percepção de alguma melhora geral é que pode impedir de nos tornarmos o próprio abismo.
Fico a considerar, com a calmaria e distância que as férias propiciam, se não sou eu que não vejo a evolução, quem sabe?
O sistema penal, seletivo, neutralizador, necropolítico, por existir há tanto tempo, com formatos que pouco mudaram, aparenta ser imperfurável. Os avanços democráticos, despenalizadores, são tão demorados, levam gerações para se realizarem. Aos olhos individuais, humanos e passageiros, tudo se torna imperceptível. Para além das realidades concretas de vulnerabilização das minorias, também vivemos em uma prisão mental, sem vislumbre de uma conquista ética e cidadã que se enraíze entre nós como efetiva cláusula pétrea.
Assim, se não vejo mudanças, não é porque elas não existam, talvez apenas estejam fora de meu alcance. Está na hora de as avistar, de todos as avistarmos, em telas de cinema, grandes e nítidas. A garantia dos direitos de um são as garantias dos direitos de todos, não há mais volta. O Leviatã deve ceder, porque os ventos democráticos voltaram a soprar sobre o Brasil. Mais pilares para os direitos fundamentais se constroem; eles indicam o plano de estado que colocará o direito penal no seu devido lugar, a “última ratio”.
As férias e a distância, por entre as ruelas deste histórico quarteirão, fazem-me assim olhar melhor. Suportarei e cumprirei rigorosamente o meu dever constitucional, meu irrenunciável dever constitucional, longe das intermitências. É meu compromisso exercer continuamente meu papel na construção de espaços que respeitem a lei, a dignidade humana, os direitos humanos, mesmo dentro de um terrível sistema opressor.
O tempo continua bom, a noite já se aproxima e um vento frio sopra, vindo do norte. Perto da praça há um prédio com fotos gigantes de faces de pessoas coladas na fachada. Naquele local, há mais de cem anos, na primeira grande guerra, dezenas de bombas explodiram, matando famílias inteiras. A intervenção artística é uma homenagem àquelas vítimas. No mesmo lugar, hoje, crianças brincam e correm atrás de pombos em revoada. A vida prevalece.
João Marcos Buch é autor e juiz de direito.