O projeto musical Floresta Ancestral: “Resgatar a nossa ancestralidade” e “ampliar a cosmovisão”
Uma das mensagens passadas é a necessidade de resgatar nossa ancestralidade. Veja a entrevista com os músicos Ju Rodrigues e Xainã Tupinambá
Existe um motivo pelo qual usamos a palavra espetáculo em duplo sentido. O projeto musical Floresta Ancestral é a prova disso. A apresentação prende a plateia de uma maneira que, hoje em dia, pouco se vê e poucos conseguem fazer. Numa era em que se apela pela atenção do público com um bombardeio de estímulos sensoriais – vídeos curtos, danças eróticas, figurinos extremos e telas de todos os tamanhos – o Floresta Ancestral traz a nossa atenção de volta para o que realmente importa: a resiliência da terra, da população brasileira e a necessidade de resgatar nossa ancestralidade.
Há uma simplicidade nobre na cenografia, calculada para um público de todas as idades e perfis. Quando os músicos são habilidosos, não é comum o ambiente com distrações. Uma arte com alma e história basta. O diálogo entre luzes e sombras, instrumentos e voz, interpretação e som, plantas e corpos transmite uma mensagem certeira.
Ju Rodrigues e Xainã Tupinambá apresentaram o show Floresta Ancestral dia no 24 de outubro no Centro da Música Carioca Artur da Távola, e inspiraram uma ovação de pé de um público diverso e atento. Nesta entrevista, os dois nos contam um pouco sobre os bastidores e suas motivações pessoais, políticas e espirituais por trás do evento. Confira a entrevista completa:
Como foi concebida a cenografia deste espetáculo?
Xainã Tupinambá: Ela foi composta pela produtora Juliana Lago e busca ressignificar e se posicionar em relação à consciência ambiental. A cenografia traz para perto do público as plantas sagradas, compondo um cenário vivo!
Ju Rodrigues: A Juliana Lago compartilha das mesmas visões e filosofia de vida que temos e, inclusive por isso, a convidamos para nos produzir. Ela teve total liberdade na elaboração do cenário e trouxe lindamente a atmosfera que precisávamos.
As plantas são pontes entre o visível e o invisível, guardiãs de energias divinas que traduzem a harmonia do universo em formas tangíveis. Juliana compôs o cenário com três plantas sagradas:
A samambaia, com suas folhas que se abrem como véus de sabedoria, é símbolo da conexão com os caboclos, os espíritos ancestrais da floresta, que trazem cura e sabedoria ancestral. A espada de São Jorge, com sua lâmina firme e protetora, é um amuleto de defesa, afastando as energias negativas e protegendo o espaço com uma força imbatível. A arruda, conhecida por sua capacidade de purificar e proteger energeticamente, é um escudo contra as vibrações baixas, criando um campo de energia vibrante e limpa.
Ela, então, transformou o palco em que pisamos ao nos apresentarmos em um altar, ou konga, lugar onde essas plantas formam um círculo de proteção e força. Esse espaço vibra com o poder dos elementos, proporcionando equilíbrio, proteção e cura; Além disso, traz para o público uma sensação única, como a de adentrar uma floresta.
Vocês consideram responsabilidade do governo financiar projetos como esse?
Xainã Tupinambá: A iniciativa por parte dos órgãos públicos é de uma grande importância, que além de oportunizar os trabalhos artísticos de diversas categorias gera um fluxo de ganho cultural.
Ju Rodrigues: Fomos contemplados por um edital voltado para novos talentos, o que nos permitiu realizar com tranquilidade um projeto que há tempos batia à nossa porta, mas não conseguimos colocar em prática por falta de verba e de um olhar cuidadoso para temas tão delicados, porém essenciais, como a ancestralidade e a espiritualidade.
Quando o governo coloca um olhar especial para o tema em questão, temos margens mais amplas de contato e discussão sobre este assunto tão necessário nos tempos atuais, visto que os povos indígenas se “atualizaram” muito em relação às mudanças do mundo “moderno” ao mesmo tempo que o planeta parece estar passando por um colapso: inundações, queimadas, furacões, e etc. Para mim, é muito claro que a “cura”, em médio e longo prazo, para essas condições e fenômenos climáticos parecem estar justamente na forma como os povos originários cuidam e sempre cuidaram da natureza.
Como vocês se identificam e qual é a relevância da identidade nesse espetáculo?
Xainã Tupinambá: Sou um homem indígena e carrego comigo a força e os ensinamentos do meu povo, Tupinambá. Sem podermos imprimir quem nós realmente somos, não existe o projeto Floresta Ancestral.
Ju Rodrigues: A miscigenação é uma marca forte do povo brasileiro. Me identifico como uma pessoa mestiça, já que meus antepassados são afrodescendentes, indígenas, alemães, italianos e portugueses. Tenho toda essa mistura sanguínea e intimamente, não consigo me considerar uma coisa ou outra. Me vejo como uma mistura que se transforma em outro elemento que ainda não sei, e nem quero, dar um nome. Ao mesmo tempo, ela contém todos os nomes.
Ainda dentro do tema da identificação, algo me é explícito: sou uma mulher lésbica. Ser mulher, lésbica e mestiça neste mundo é algo que me abre portais de compreensões muito sensíveis, por não participar de padrões sociais normativos, nos quais claramente identifico um tipo de aprisionamento do ser que não me agrada, porque limita a minha liberdade.
Neste resgate de identidade, necessário para que eu saiba quem eu sou, encontro facilmente muitas informações no âmbito da espiritualidade livre e autêntica, tanto com o despertar de potenciais adormecidos, quanto com o desenvolvimento dessas forças. Nesse reencontro, intuo e construo uma realidade artística e pessoal que culmina na realização desse projeto.
Qual é o papel da religião, ou da espiritualidade nesse espetáculo?
Xainã Tupinambá: Ampliar a cosmovisão e clarear as esferas espirituais.
Ju Rodrigues: Espiritualidade é uma palavra que me agrada. Quando percebi que o som tem poder de cura, iniciei um estudo profundo de como esse fenômeno acontecia e comecei também a realizar trabalhos terapêuticos. Eu também sou terapeuta do som, além de artista. Tudo isso começou quando, em 2008, tive o primeiro contato com um pajé da floresta, aqui na cidade, no Rio de Janeiro, tudo era puro e livre, sem dinheiro, sem nenhuma imposição ou conversão de fé. Eu apenas estava lá, recebendo os cânticos sagrados com os maracás sem entender direito o que estava acontecendo comigo. E então vi os efeitos. Foi transformador.
Depois deste primeiro contato, tive uma vida mais saudável em todas as áreas, não apenas no campo físico, mas também no emocional e mental. De lá pra cá, desde que entrei em um universo onde tudo é sagrado, concebido por uma compreensão natural e espontânea, principalmente pela consagração da Ayahuasca, a espiritualidade passou a ter um papel fundamental na minha vida e consequentemente em todos os projetos que eu realizo.
Este projeto, Floresta Ancestral, nasce dessas experiências diretas, com a busca pela expansão da consciência através de uma medicina indígena.
O que é a identidade brasileira para vocês? Ela é um personagem nesse espetáculo?
Xainã Tupinambá: As identidades culturais dos povos indígenas se entrelaçam com outras culturas, e é desse entrelaçar que surgiu o projeto Floresta Ancestral.
Ju Rodrigues: A identidade brasileira, é essa miscigenação, não apenas no sangue, mas na cultura. Para nós é um estado de ser, é uma realidade, um modus operandi. Somos e vivemos o que fazemos neste espetáculo. Então, ela não é uma personagem e sim a essência desse projeto, por isso fica explícito o seu protagonismo.
Como a cultura, a identidade e o território se cruzam nessa performance?
Xainã Tupinambá: O objetivo é suscitar a etnomusicologia, que fica explícita nesse projeto.
Ju Rodrigues: Nossos encontros, em nossa vida pessoal, vêm de culturas ligadas à espiritualidade e expansão de consciência, através de espaços em que se discute a alma humana em sua totalidade, os “por quês” e “porquês” de cada coisa, tudo o que está dentro e fora dos livros, por meio da experiência direta. Também dos caminhos já percorridos pelos nossos ancestrais, pistas, rastros, escrituras, pesquisas, tradições e culturas que tentaram apagar da história, mas continuam vivas. É impossível não existir cruzamento entre esses ministérios. Eles coexistem no mesmo espaço de pesquisa pessoal, do desenvolvimento dos nossos projetos e das nossas vidas.
Nesse projeto temos o encontro de uma mulher mestiça, da cidade, com um homem indígena. Somente por esse encontro já se dá o cruzamento total de culturas, identidade e territórios.
O Xainã carrega consigo a força dos povos originários e, poder construir um projeto ao seu lado, está sendo uma das experiências mais ricas que já vivi. É como poder levar para os palcos pontos altos da história, da nossa cultura, e também a parte considerada uma grande diversidade do nosso país.
Um homem indígena e uma mulher lésbica, que tem uma avó afrodescendente e que era Mãe de Santo. Buscamos colocar no palco um pouco desse retrato do Brasil, que nada mais é do que esse cruzamento todo. O Candomblé, a Umbanda, o indígena, um povo com uma diversidade gigantesca e uma musicalidade viva. O povo preto e os povos indígenas, a cidade e a mata, e a luta para viver e ser quem se é.
Como a curadoria musical foi feita?
Xainã Tupinambá: Foi concebida como forma de resgate cultural, e com o objetivo de passar exatamente esse caminho para o público.
Ju Rodrigues: Foi intuitivo. Todas as músicas autorais foram recebidas ao longo da nossa caminhada nesta busca por nós mesmos. Todas as minhas parcerias são com pessoas que estão no mesmo caminho e foram inspiradas por tudo o que estudamos. Então, na elaboração do repertório, roteiro e arranjos seguimos a mesma linha intuitiva, que parte de uma base construída em cima de um estudo profundo sobre a espiritualidade e a vivência dela. A consequência é que quando pensamos em um repertório musical, não tem como fugir: exprimimos aquilo que somos através da música e, principalmente, da escolha do nosso repertório. Além da necessidade latente de despertar na plateia a consciência desse resgate ancestral.
Qual é a relação entre ancestralidade e música, e o que é ancestralidade para vocês?
Xainã Tupinambá: Para mim que nasci no coração da floresta e tive toda a minha infância na aldeia, a música é sagrada muito antes de existir o termo musicoterapia. Os povos originários já eram sabedores da importância da música ancestral de cura, pois na floresta se canta nos principais períodos da vida como: no nascimento, na juventude, na ‘melhor’ idade e até na morte.
Ju Rodrigues: Para mim, música passou a ter outro sentido a partir do meu primeiro encontro com o pajé indígena, quando ele fazia alguns cânticos sagrados com os maracás, que me trouxeram uma consciência nítida e certeira de que o som era algo mais do que apenas um fenômeno auditivo e sensorial usado para entreter. Esses cânticos vieram da sua cultura, passados adiante de geração em geração, e, hoje, ainda vigoram, pois seguem leis que vêm da própria Natureza.
A partir disso, fui estudar outras formas de harmonização através do som e em várias culturas antigas em outros continentes, como na Índia, no Tibete e com os povos aborígenes australianos, que, por exemplo, já realizavam esse tipo de cerimônia, onde, através do som, provocam um estado significativo de harmonização e cura humana há milhares de anos.
Música, som e ancestralidade são assuntos que, para mim, estão entrelaçados. O resgate fundamental da nossa ancestralidade, na minha visão, é a chave de um futuro melhor para a humanidade. A ancestralidade é o chão que eu piso, é a base sólida do meu caminhar, da construção da minha vida e da possibilidade de futuro. Ao olhar e resgatar a minha ancestralidade, passo a entender melhor o hoje e olho para o futuro com mais certeza do meu caminho.
Set-list autoral:
– Firmeza das Águas ( Ju Rodrigues e Marcelo Asth)
– Jangada de Prata (Ju Rodrigues e Caio Martins)
– Nove Contas Vermelhas (Ju Rodrigues e Caio Martins)
– Arerê (Ju Rodrigues e Marcelo Asth)
– Omulu Meu Pai Obaluaêc (Ju Rodrigues e Marcelo Asth)
– Bailado de Jurema (Ju Rodrigues)
– Raio na Veia Fina (Ju Rodrigues e Marcelo Asth)
– Clareira(Ju Rodrigues e Marcelo Asth)
Sobre a letra: “Um canto contra a tirania.” O que é a tirania de hoje pra você?
Xainã Tupinambá: A ganância sempre foi e sempre será causadora da desarmonia, portanto, para mim, ela traduz a tirania.
Ju Rodrigues: Um estado de ignorância em relação ao que realmente somos enquanto seres humanos. A falta de consciência da força do nosso subconsciente e da espiritualidade, nos faz seguir por caminhos que nos destroem. É um estado de miséria da alma: egoísmo, mentiras, corrupção, ganância e sentimentos de superioridade em relação a pessoas que são diferentes, a outros povos, chegando ao cúmulo de tomar posse de terras, de corpos, de vidas, exterminar pessoas, culturas, destruir… Tudo isso é tão antigo e tão atual.
A tirania pode existir em pequenos e grandes detalhes nas nossas relações íntimas e, consequentemente, na nossa sociedade. Ela se manifesta como um silêncio ensurdecedor disfarçado de liberdade, quando as vozes são amordaçadas por promessas vazias.
Também é o medo disfarçado de ordem, o controle disfarçado de segurança. Uma prisão de mentes que se dizem livres, mas que, na verdade, são guiadas por correntes invisíveis, onde a verdade se dissolve como névoa em uma manhã fria. Ela veste mil faces – de normas, leis, ideologias – mas o coração da tirania é sempre o mesmo: o poder que silencia, que cega e que controla.
Sobre a letra: “Força ancestral das serpentes”? Qual o significado?
Xainã Tupinambá: São seres sagrados para os povos das florestas. A música Clareira faz referência aos animais de poder que fluidificam esse plano terrestre.
Ju Rodrigues: Um dia eu ouvi uma mulher sábia, indígena, contar uma história muito interessante. Ela falou que existe um fenômeno que acontece de tempos em tempos na mata. É um terreiro, um espaço que parece um “parque” aberto no meio da floresta, muito grande, com contornos perfeitos que parece ter sido construído pelo ser humano. Ela contava que se você estivesse diante desse “parque”, você jurava que foi um ser humano que fez aquilo. Mas na verdade foi construído pelos animais. E depois que esse terreiro está pronto, os animais se misturam lá dentro, correm e brincam. Animais de espécies diferentes, fazem coisas que o ser humano não consegue entender.
A razão para construir esse terreiro, e como eles constroem, os indígenas não sabem. Mas intuem que é para se conhecerem e brincarem juntos, todos, pássaros, serpentes, onças, macacos, tatu, capivara, borboleta, todos os animais de pequeno, médio e grande porte. É como se neste espaço, a lei da cadeia alimentar fosse proibida, naqueles momentos.
Tinha um ar sagrado, tipo um terreiro religioso mesmo. Do nada os indígenas encontram estes espaços abertos. E eles os denominaram de clareira, traduzido de sua língua nativa para o português, pelos próprios indígenas.
Sobre a letra: “A madeira quando morre canta.” Qual é o significado?
Xainã Tupinambá: A nossa casa é a floresta, e ela canta feliz quando está de pé e chora quando é derrubada pela ganância, pelo despreparo e, até hoje, pelo explorador que não tem a compreensão da importância de manter a floresta viva. Quando se derruba uma árvore, perdemos as plantas medicinais ancestrais que podem salvar a humanidade.
É triste, mas essa é a versão nova de uma velha história que todos nós já conhecemos. Somos impotentes, porque essa ordem vem de fora, e aí, mais uma vez aparecem os grandes culpados pela destruição das florestas e dos povos que habitam tanto dentro, quanto nas suas margens das florestas!
Ju Rodrigues: Esta é a minha interpretação desta parte da letra da música de João Nogueira e Paulo César Pinheiro: primeiro, vejo como uma visão de que a morte é ilusória, expressa de forma poética. Como quando a madeira morre e se transforma em instrumentos musicais, como tambores, violões, violinos, flautas… Mas ela ainda carrega um significado mais profundo e poético. A madeira, quando cortada, ainda “canta” através do som que emite, talvez como uma última melodia, um lamento, uma despedida ou a dor de ter a vida tirada. Esse canto pode ser entendido como uma metáfora para a vida humana, onde, mesmo nos momentos finais, há algo que persiste, uma essência que se revela.
A madeira é também símbolo de algo que já foi vivo — árvores, florestas, natureza. Quando a madeira “morre”, ela é transformada, seja em música, arte ou simplesmente no som de seu fim. A ideia de “cantar” não é necessariamente uma melodia alegre, mas um eco de resistência, uma maneira de ainda se fazer ouvir, de deixar uma marca. O canto da madeira que morre é o grito de algo que se vai, mas que permanece de alguma maneira, ecoando através do tempo, da memória ou da arte.
A próxima apresentação do espetáculo Floresta Ancestral acontecerá no Parque Glória Maria – Teatro Ruth de Souza, em Santa Teresa, no dia 22 de dezembro às 17h, com classificação livre e entrada gratuita.
Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e fundadora da Plataforma9.