O que as manifestações nos revelam
Não são apenas os dois anos suplementares da aposentadoria que motivam os protestos.Os slogans atuais trazem à tona questões de outros tempos, mais precisamente de maio de 1968: “Não queremos perder nossas vidas enquanto tentamos ganhá-las!”Danièle Linhart
Como sustenta a opinião pública, as manifestações recentes que tomaram conta da França evidenciam uma forte oposição à mudança da idade mínima para a aposentadoria, de 60 para 62 anos. Mas os protestos mostram também uma oposição ao mundo do trabalho em geral e à sua “modernização” recente.
Nele, as condições só pioram e vem o sentimento de uma degradação inevitável. Boa parte dos assalariados não acredita que poderá suportar por muito tempo as exigências atuais. O que se ouve nas passeatas são expressões como: “Melhor se matar de trabalhar do que morrer no trabalho!”, ou ainda: “Por uma vida após o trabalho!”. As falas revelam o que se tornou o labor cotidiano para grande parte dos franceses. Enquanto as novas tecnologias são adotadas, supostamente, para aliviar o trabalho físico, enquanto mais de dois terços dos assalariados pertencem ao setor terciário, e o tempo legal de trabalho corresponde a 35 anos, enquanto isso, nasce uma imagem sombria da atividade profissional, associada à morte ou à privação da vida.
Não são apenas os dois anos suplementares que alimentam essas representações tão trágicas. Os slogans atuais trazem à tona questões de outros tempos: “Não queremos perder nossas vidas enquanto tentamos ganhá-las!”. Foi em maio de 1968 e, no decorrer de três semanas de greve geral, que os operários exprimiram suas aspirações a outra vida. Eles retornam agora ainda mais desesperados, como mostrou a reprise, neste outubro de 2010, de uma frase famosa de 1968: “Metrô, trabalho, cama!”, que agora se transformou em “Metrô, trabalho, túmulo”. Como explicar tal degradação?
Os franceses temem não aguentar os horários exigentes que perturbam o sono, os movimentos repetitivos que desenvolvem problemas músculo-esqueléticos, a exposição a intempéries, a pressão dos clientes, a intensificação do trabalho e de tudo que pudermos classificar como “penoso”, tema em torno do qual vemos (enfim) se instaurar um debate público, mas ainda numa perspectiva bastante individualista.
Eles têm medo de não suportar esta realidade também por outras razões, que são menos abordadas: o medo de não estarem preparados para um trabalho que impõe uma pressão constante e que se inscreve numa lógica de “sempre mais”; medo de não poder alcançar objetivos impostos, de maneira irreal, por patrões que não param em seus cargos e que frequentemente ignoram as atividades concretas de seus subordinados; medo das avaliações que não levam em conta os obstáculos encontrados nem os esforços feitos. Eles receiam ser obrigados a executar mal seus trabalhos e a cometer faltas profissionais; receiam atingir um nível de incompetência que os deixaria vulneráveis, que poderia expô-los à perda do emprego e os deixaria com uma imagem desvalorizada de si mesmos.
Na realidade, por serem autoritários e deixarem os assalariados numa situação de autoexploração, os gestores modernos criam uma desestabilização sistemática. Eles se esforçam para criar um clima hostil: os trabalhadores não devem se sentir em casa na empresa; eles não devem dominar seus trabalhos nem se aproximar de seus colegas ou de seus clientes: relações de cumplicidade permitiriam que eles se preservassem. As reorganizações permanentes, uma mobilidade imposta e mudanças periódicas levam à perda de referências profissionais, à desaprendizagem sucessiva. A França Telecom é um bom exemplo disso.
Pressão constante
Com o trabalho mais complexo e o ambiente mais incerto, a experiência adquirida não é mais uma segurança. Não é mais suficiente alcançar os objetivos: é necessário ultrapassá-los para ganhar a confiança de seu superior. Daí resulta uma característica arbitrária das avaliações: se é preciso ultrapassar os objetivos, como devemos fazê-lo?
No decorrer das entrevistas, muitos assalariados falaram da sensação de se encontrar na “corda bamba”, de aguentar somente por conta de uma mobilização sem trégua de suas energias e, sobretudo, de o fazerem em meio a uma completa solidão, sem poder contar com outra pessoa além de si mesmos. A hierarquia não ajuda em nada: seu papel consiste em manter a coerção. Os colegas se tornaram concorrentes. Assim, os assalariados ficam sem saída face às dificuldades.
Uma das características do trabalho moderno reside nas organizações híbridas, que sustentam lógicas tayloristas e apelos ao engajamento subjetivo dos assalariados. Basta pensar nos centros de telemarketing, onde falas pré-redigidas e tempos restritos de comunicação são impostos aos operadores. Se eles quiserem obter uma gratificação, devem personalizar as ligações por meio de advertências ou comentários inteligentes e simpáticos, modular a entonação da voz e apelar sempre com uma resposta pronta.
Os gestores continuam a impor objetivos quantitativos em curto prazo, mas exigem dos trabalhadores que eles resolvam a tensão entre a qualidade e a quantidade do trabalho (número de ligações recebidas, de dossiês tratados, de entregas efetuadas…) em um contexto cada vez mais instável. Uma boa parte da organização é, assim, subcontratada pelos empregados mais subordinados, decretados responsáveis pelo controle de qualidade. “Autônomos” num universo regido por exigências de alta produtividade, sem possibilidade de negociar os meios nem os atrasos que causam as demandas. Eeles se sentem em perigo, em situação precária, mesmo quando se beneficiam de uma posição estável. Os executivos estão em meio às mesmas tensões e contradições: eles veem seus objetivos situados num horizonte cada vez mais próximo, mas sofrem também um controle rígido, graças à prática do reporting, que os obriga a justificar suas jornadas.
No setor público, a brusca entrada desses critérios de gestão vindos do mundo privado desestabiliza da mesma maneira as profissões, as identidades profissionais e o fazer.1 Para o pessoal afetado, as mudanças não se apoiam nas experiências de cada um, mas se impõem com brutalidade, surpreendendo uns e outros nas tentativas de adaptação à evolução do ambiente e do público destinatário dos serviços. Neste momento, em que o mundo muda em torno deles, os servidores públicos do Estado têm o sentimento de estar sendo coagidos, impedidos de cumprir corretamente suas funções.
É preciso ter nervos de aço para não viver na angústia permanente em relação às mudanças que exigem atitudes contrárias ao senso de um trabalho bemfeito e à ética. Os gestores modernos têm características predatórias. Exigindo excelência, envolvimento total e incondicional. Exige-se flexibilidade e disponibilidade em detrimento da vida pessoal e familiar. Compreendemos melhor porque grandes empresas detêm uma organização, uma pirâmide, onde a base e o topo são bem moldados: o gestor moderno cansa e desiste rápido. Passada certa idade, é difícil resistir e se inserir quando ainda não existe seu posto. A presença de jovens nas manifestações, ao lado de anciãos, nos mostra sua lucidez: a taxa de desemprego entre eles é uma das piores da Europa. Os jovens sabem que a dificuldade para integrar uma empresa moderna é parecida com a dificuldade dos “anciãos” de manter seus lugares.
As pesquisas de Lucie Davoine e Dominique Méda2, que datam de 2008 e incluem 27 países europeus, revelam que os franceses são os que esperam mais do trabalho, os que o revestem de maior importância, mas também são os que sofrem mais decepções e frustrações. Esta constatação é explicada pela história: a Revolução Francesa que, liberando os indivíduos da servidão e os colocando em liberdade para vender sua mão de obra, fez do trabalho um jogo de emancipação e, em seguida, de lutas sociais importantes. Lá, está a pedra angular da sociedade. As exigências desmedidas criam cidadãos inquietos, tomados de um sentimento de impotência, fechados em suas desconfianças a respeito dos outros e também das regras de um jogo que eles não compreendem. A questão dos meios de sobrevivência os assombra: mais da metade dos franceses responderam que não excluem a possibilidade de, um dia, não ter mais domicílio fixo.
Na batalha contra as reformas da aposentadoria, os assalariados, que normalmente enfrentam as dificuldades percebidas como fraquezas ou incapacidade de adaptação, parecem retomar a consciência de um destino comum. Utilizado por um grande número de manifestantes, o adesivo “Eu luta de classes”3, concebido pela associação “Ne pas plier” (“Não se submeta”), simboliza uma aliança possível entre o individualismo imposto pelo mundo do trabalho moderno e uma tradição que dorme.