O que esperar da Comissão da Verdade
No dia 21 de setembro, a Câmara aprovou a criação da Comissão da Verdade. A proposta, objetiva investigar violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, segue para o Senado. Em entrevista, Maria do Rosário, ministra da Secretaria de Direitos Humanos, destaca a importância e os limites desse novo instrumentoSilvio Caccia Bava
Le Monde Diplomatique Brasil – A questão da Comissão da Verdade é um tema muito delicado, que já gerou muito atrito no âmbito da relação da Secretaria de Direitos Humanos com outros atores. Há países vizinhos nossos que souberam levar isso muito bem e conseguiram, de alguma maneira, passar a limpo esse passado. A Comissão da Verdade vai se instituir?
Maria do Rosário – Esse é um grande desafio para nós e poderá destravar as questões de direitos humanos no Brasil. Ainda hoje as violações de direitos humanos de sempre continuam impunes, continuam sem ser trazidas à luz do dia. Então, conseguindo instituir no Brasil a Comissão da Verdade, ainda que tardiamente, poderemos completar a transição democrática. Agora, nossos adversários no país são ainda fortes; eles permanecem operantes por fora e por dentro das instituições. O projeto de lei que tramita para a criação da Comissão da Verdade não prevê elementos de justiça para chegarmos aos tribunais, mas prevê algo que para o Brasil é essencial, que é oferecer a essa comissão condições de trabalhar, de averiguar em que circunstâncias ocorreram os desaparecimentos forçados, as torturas e as mortes no período da ditadura militar brasileira, e quem estava associado a ela − que civis e que empresas estavam ligados à ditadura. Essa é uma questão muito importante.
Diplomatique– Há uma tentativa de criar um acordo político no Congresso em torno do limite de apuração da Comissão da Verdade. Os torturadores seriam punidos por suas práticas? Recentemente a deputada Luiza Erundina propôs um projeto de lei que amplia a perspectiva de realmente haver uma punição para esses crimes. Qual é sua expectativa em relação ao resultado da Comissão da Verdade?
Maria do Rosário– O direito à verdade, à memória e à justiça é um tema que aparece ao longo desse período. Desde o Paulo Vannuchi como ministro, antes também com o Nilmário Miranda, aliás, desde o período do presidente Fernando Henrique, há um somatório de esforços feitos pelo titular da pasta de direitos humanos para que se consiga avançar nessas causas.
O que eu considero importante é que ao longo do último período conseguimos produzir alguma mobilização da sociedade para conquistar o direito humano à verdade e à memória. Como parlamentar e cidadã brasileira, tenho total concordância com o projeto de lei da deputada Luiza Erundina. Acho que ela produz uma reflexão importante que o Brasil tem que fazer. Mas do ponto de vista estritamente estabelecido pela minha condição, na responsabilidade que tenho sobre os direitos humanos, tenho também que dizer que a Comissão da Verdade não tem em si o caráter de justiça. Ela tem o caráter de buscar a memória e a verdade, a apresentação dos fatos − uma primeira etapa que nós, passados tantos anos do período da ditadura militar, ainda não cumprimos no Brasil.
Cada país viveu a Comissão da Verdade a seu tempo e do seu modo. Mesmo a Argentina, que fez uma caminhada muito importante, não teve de início no projeto de lei da Comissão da Verdade o caminho jurisdicional. No Brasil, já temos uma decisão por parte do Supremo Tribunal Federal, referendando a Lei da Anistia. A deputada Luiza Erundina faz bem de querer debater o tema pela via do Poder Legislativo, porque o que está em vigor hoje plenamente é a Lei da Anistia. Para os que defendem que tenhamos aqui o caminho da verdade e da memória como um ponto final e para os que defendem o caminho da justiça, o primeiro passo é o mesmo.
Diplomatique– Quando a senhora fala que o que está em pleno vigor é a Lei da Anistia, quer dizer que nenhuma das partes vai ser punida, ou seja, nem as vítimas nem os torturadores?
Maria do Rosário– A anistia não foi concedida. A anistia foi conquistada com a presença das pessoas nas ruas, com mobilizações. Não foi a anistia que se queria, mas ela possibilitou que Brizola retornasse ao Brasil, que se abrissem as cadeias, que os exilados voltassem ao nosso convívio. Temos novamente entre nós ativistas, lutadores, democratas − as pessoas que fizeram o que estava a seu alcance para salvar seus irmãos, amigos, uma geração dos porões da ditadura. O que devemos buscar com a Comissão da Verdade é a responsabilidade do Estado brasileiro. A anistia foi a chave para o tipo de democracia que temos hoje. Eu jamais trabalho com a ideia de dois lados, considerando o período da ditadura militar. Eu acredito que essa é uma falsa questão. Então, acho muito equivocado colocar numa mesma balança os dois pesos: de um lado a violência do Estado institucionalizado e de outro os ativistas e lutadores que enfrentaram essa ditadura. A Comissão da Verdade é sobre a garantia de Estado.
Diplomatique– A Secretaria de Direitos Humanos está buscando reunir informações sobre isso?
Maria do Rosário– Sim. A Secretaria conta, desde 1996, com um instrumento fundamental: uma lei votada em 1995 que criou a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos. Essa comissão, desde então, é ativa, atuante. Ela fez um relatório efetivo das condições em que foram mortos e desaparecidos os ativistas políticos que lutaram contra a ditadura militar. Além disso, o Ministério da Justiça conta com uma comissão também, a chamada Comissão sobre a Anistia. Só que essas duas comissões não tiveram instrumentos para entrar plenamente nos arquivos, para chamar para depor pessoas que colaboraram com a ditadura.
Diplomatique– Por quê?
Maria do Rosário– Porque a legislação não lhes permitia ou foi interpretado assim ao longo de todos esses anos. A Comissão da Verdade terá em seu escopo condições plenas de buscar todas as informações que estiverem sob a responsabilidade do Estado ou de particulares.
Diplomatique–
Mas a senhora não acha que quinze anos foram mais do que suficientes para reunir as informações?
Maria do Rosário– Quanto ao levantamento daqueles que foram mortos ou desaparecidos, a comissão cumpriu plenamente seu papel, inclusive com o avanço na própria legislação, porque de início ela não previa que os casos que levaram ao suicídio fossem considerados responsabilidade do Estado brasileiro do período da ditadura. A comissão cumpriu seu papel, mas nunca teve instrumentos legais para respaldar sua ação. Quando solicitava ao Exército, à Aeronáutica, à Marinha, ao Itamaraty, ou quem quer que fosse, informações sobre aquele período, ela não tinha resposta. Ela teve que fazer pesquisa com informações dos familiares de mortos e desaparecidos, de instrumentos locais. Essa outra parte não foi feita.
Diplomatique– Mas quando a senhora cita o Exército, o Itamaraty, está falando de órgãos do Estado. Quer dizer que há um nível de resistência…
Maria do Rosário–Sempre houve. Sempre houve e permanece. É por isso que a Comissão da Verdade terá plenos poderes para buscar essas informações. Não haverá mais arquivos distantes da comissão. Seu corpo técnico terá acesso a tudo para contar ao Brasil o que ocorreu naquele período e nos ajudar a descobrir a localização daqueles que foram mortos e desaparecidos.
Diplomatique– Não estou querendo ser pessimista, mas parece que a comissão vai se constituir para superar os limites que a investigação encontrou ao longo de quinze anos. É isso?
Maria do Rosário–Sim. E para oferecer novos limites, novas possibilidades para além dos limites legais que foram instituídos tanto com a Lei n. 9.140, de 1995, quanto com as legislações posteriores. Nunca tivemos efetivamente uma comissão da verdade com os poderes que comissões da verdade tiveram nos outros países.
Diplomatique– Qual seria sua aspiração maior? Vamos dizer que essa comissão consiga, de fato, cumprir seu papel. O que podemos esperar dela?
Maria do Rosário– Minha aspiração maior é que, ao responder para essa geração e para a atual o que ocorreu com aqueles que foram mortos e desaparecidos, quais foram as situações de tortura, os colaboradores, ao trazermos tudo isso à luz do dia, tenhamos um Brasil mais democrático. Minha aspiração é que as pessoas percebam que a ditadura deixou suas marcas culturais na sociedade brasileira, na tortura e no extermínio que ocorrem hoje, e que, ao depararem com a realidade dos anos de 1964 a 1985, lutem mais e mais para o Brasil superar suas violações de direitos humanos também no cotidiano.
Diplomatique– Depois de terminado o trabalho dessa comissão, o que vai acontecer? Esse material todo vai ser enviado para a justiça? Qual é o caminho?
Maria do Rosário– O que está previsto é que essa comissão deve produzir um relatório público, transparente para toda a sociedade brasileira.
Diplomatique– Sim, mas não trata da questão da punição?
Maria do Rosário– Não. A legislação, como está proposta no Brasil, encontra-se dentro dos marcos da Constituição Federal. Por decisão recente do Supremo Tribunal Federal, foi renovado o vigor da própria Lei da Anistia.
Como a sociedade brasileira vai agir a partir do relatório final diz respeito a ela também, à sua capacidade de organização, de mobilização, e não somos nós que podemos prever a tendência. Os rumos que a sociedade brasileira vai tomar poderão ser os que a deputada Luiza Erundina propõe, votando uma nova lei.
Diplomatique– Mas, de qualquer maneira, o Estado tem esse papel de regular, efetivar o cumprimento das leis.
Maria do Rosário– É. Por isso que ele atua nesse limite da lei, hoje reconhecendo o pleno vigor da Lei da Anistia. Mas eu, sinceramente, penso que os movimentos sociais, quando se trata de direitos humanos ou de causas como a dos direitos humanos, podem e devem motivar o Estado a avançar. Não há palavra final quando se fala de direitos humanos.
Diplomatique– Uma questão é a atuação de policiais, acusados pelos jornais de serem assassinos. Eles estão executando pobres, sem investigação, sem qualquer ato respaldado por lei. E nós continuamos assistindo a uma impunidade permanente dessa polícia, que é muito mais orientada a reprimir a população mais pobre do que garantir a segurança pública. Como a Secretaria vê isso e o que ela pode fazer?
Maria do Rosário– A Secretaria pode e deve criar políticas em conjunto com o Ministério da Justiça para a formação de uma outra cultura de polícia no Brasil. Várias delas já estão em curso. Essa cultura da polícia no Brasil é contrária aos interesses da democracia, dos direitos humanos, é uma cultura de classe, que interessa a poucos ou a ninguém. E as políticas que estão em curso já formaram e incorporaram em programas voltados à formação mais de 200 mil policiais. Já procuraram também instituir bolsas que ampliam o salário do policial, na medida em que ele adere à política de formação. É importante melhorar a renda desse profissional como uma forma de estímulo às políticas de formação de direitos humanos e noções de direito para mudarmos essa realidade.
Há uma condição no pacto federativo muito difícil que é a responsabilidade dos estados sobre a polícia; é a divisão, muitas vezes, entre polícia investigativa e polícia ostensiva, contradições no âmbito dessas polícias; entre as polícias militarizadas e as não militares, guarda civil e guardas municipais. Temos procurado oferecer aos estados o apoio necessário para a formação de seus policiais. A União tem responsabilidade sobre as polícias federais, e as estaduais estão sob a responsabilidade dos estados da federação. Essa pulverização também nos leva a ter inúmeras dificuldades na formação dos policiais.
Diplomatique– Mas o problema maior é a questão da impunidade. Enquanto o julgamento desses processos que envolvem policiais militares e civis tiverem um foro próprio, um foro da corporação, essa impunidade se reforçará. A Secretaria defende que o julgamento desses processos tenha um foro comum?
Maria do Rosário– Essa é uma diretriz muito trabalhada pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, um programa importante que se relaciona com a própria democracia. Sem dúvida, essa é uma agenda para a Secretaria de Direitos Humanos. E a área de direitos humanos quer fazer que o governo dialogue sobre essas questões e as faça avançar. O que precisamos ter é o compromisso, no âmbito das corregedorias de polícia dos governos dos estados, de que elas sejam claramente capazes de identificar responsabilidades de seus integrantes, de ouvidorias que escutem o que diz a população, e uma intolerância clara com a presença da ação criminosa nas forças policiais.
A Secretaria de Direitos Humanos é a articuladora, há muitos anos, dos Programas Nacionais de Direitos Humanos. Estamos no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3. Uma de suas diretrizes é superar essa perspectiva de tribunais em separado para os agentes de polícia, militares, os tribunais militares de modo geral. Queremos foros comuns para julgamento e responsabilização de policiais envolvidos em crimes comuns e em grupos de extermínio. Esse é um dos graves problemas no Brasil dos dias de hoje.
Diplomatique– Qual é a ação concreta que isso envolve?
Maria do Rosário– A separação está prevista no âmbito constitucional. Mas o que temos feito são medidas voltadas à formação dos policiais e de uma rede privilegiando e fortalecendo auditores de polícia do Brasil. Isso é muito insuficiente, sem dúvida. Precisamos renovar e fortalecer nossa parceria com os estados.
O governo federal é responsável pelo apoio a uma série de políticas nos estados, apoio financeiro inclusive, e queremos, num próximo período, com o ministro José Eduardo Cardoso, com base no apoio institucional e financeiro que o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos oferecem aos estados, condicionar esse apoio a índices, a indicadores sobre violência policial no país.
Diplomatique– Há algum governo estadual que se destaca, que está agindo com propriedade sobre essas questões?
Maria do Rosário– Olha, com a preocupação de errar e de ser injusta, eu não citaria agora nenhum. Mas diria que, com o Ministério da Justiça e os governos estaduais, devemos ter um plano comum que inclui o apoio às unidades da polícia federal, da força nacional de segurança.
A força nacional de segurança é um excelente exemplo de como a União e os estados podem agir juntos para criar uma nova cultura no âmbito das polícias. Ela é uma força nacional federativa de segurança porque é composta de policiais civis e militares de todas as unidades da federação, que ao estarem servindo à força nacional participam de formação e treinamento. Quando esses policiais voltam para atuar em suas forças estaduais, trazem a experiência de um trabalho importante pautado fortemente pela legalidade e pelos direitos humanos.
Não tenho nenhuma dúvida de que existem problemas nas forças federais. Mas acredito que ao longo desses últimos anos plantou-se uma relação de tanta responsabilidade nas unidades federais, que hoje é impensável termos a impunidade nos quadros federais de polícia. E isso deve se desdobrar para cada uma das unidades da federação. Ser policial significa não estar associado ao crime e às ações criminosas.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.