O que o 11 de setembro precisa dizer ao mundo
O terrorismo causou, entre 1990 e 2016, quase 200 mil mortes em todo o mundo. Mais de dez milhões de pessoas perderam suas vidas em guerras civis em mais de 30 países; até 2016, 65,3 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocarem de seus países. Os territórios que mais sofrem são o Oriente Médio e a África
Não há cenário de terror tal como os Estados Unidos sofreram em seu solo de forma tão hedionda em 11 de setembro de 2001. Os Estados Unidos estavam no auge de seu poderio unipolar, com sua vitória na Guerra Fria, sua prosperidade econômica e sua supremacia tecnológica, após o início da revolução digital. A potência americana parecia solidamente instalada no topo do mundo. Os ataques quase simultâneos perpetrados naquela manhã por terroristas da Al Qaeda, em Nova York, e no Pentágono, em Washington, que ceifaram a vida de quase 3 mil pessoas, mudaram não apenas os Estados Unidos, mas o mundo, e o o terrorismo global mostrou quão frágil é nossa ambição de viver num mundo globalizado em que a paz seja a regra. Vinte anos depois, um dos maiores desafios da humanidade para o presente e as próximas décadas são os novos atores totalitários que entram em cena almejando redefinir as fronteiras e os ideais universalistas surgidos após a segunda guerra.
Vale destacar que hoje a globalização continua inacabada como projeto político e como promessa humana. Muitos dos sete bilhões de pessoas na Terra continuam a viver em extrema pobreza, sem acesso à saúde, habitação e educação. Muitos seres humanos permanecem sem um emprego decente que pode fornecer-lhes os meios materiais para levar uma vida digna e fornecer o mesmo para outros membros da família. Muitos cidadãos deste mundo continuam oprimidos por causa de seu credo, opinião ou identidade. Muitas pessoas permanecem presas ou são torturadas por causa de opiniões divergentes ou lutas pelo poder. Muitos seres humanos estão fugindo do sofrimento e da humilhação. E muitas pessoas são, hoje, mais do que nunca, alvos do maior flagelo na nossa história presente que é o terrorismo totalitário. Não existe um mecanismo de governança global válido, legitimo e que funcione solidamente.
Após duas décadas é nítida a constatação de que o nosso mundo mudou, sim, mas vale questionar em que termos ocorreram essas mutações.
Uma nova visão do terrorismo
Na data em que se recordam os vinte anos do 11 de setembro e suas consequências, bem como a guerra infinita ao terror, surge a necessidade de fazer uma análise ponderada e cautelosa do fenómeno que constitui a maior ameaça ao mundo global em que vivemos, bem como àquilo que o filosofo austríaco Karl Popper escreveu há 80 anos, The Open Society and its Enemies. Segundo Popper, ainda que cheia de incertezas, a sociedade aberta é o único caminho para superar o tribalismo e atingir o humanitarismo.
Paradoxalmente, e no momento em que postulados como o choque das civilizações encontram um terreno fértil para criar ainda mais confusões que impedem a coabitação, o terrorismo transparece como a muralha que divide e fecha as nossas sociedades. Por qual razão? E como superar esse flagelo?
Para teremos uma ideia, o terrorismo causou, entre 1990 e 2016, quase 200 mil mortes em todo o mundo. Mais de dez milhões de pessoas perderam suas vidas em guerras civis em mais de 30 países; até 2016, 65,3 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocarem de seus países. A ascensão do extremismo violento e suas consequências destrutivas estão agora entre os principais obstáculos para a paz mundial. Além do sofrimento humano, o extremismo violento teve um custo econômico que teria atingido cerca de 89,6 bilhões de dólares em todo o mundo, só em 2015. Os territórios que mais sofrem são o Oriente Médio e a África.
Os principais grupos ativos na África são a al-Qaeda, no Magrebe Islâmico (AQMI), que controla a região do Sahel; Jama’at Tawhid Wal Jihad fi Garbi Afriqqiya -Movimento para unificação e jihad na África Ocidental (MUJAO); Boko Haram (que significa “educação ocidental é um pecado”) na Nigéria e Camarões; além do grupo al-Shabab na Somália, Estado Islâmico em Moçambique; enquanto no Oriente Médio há o o Daesh (Estado Islâmico do Iraque e Levante) e a Al-Qaeda.
O maior desafio hoje é a natureza transnacional do jihadismo global da Al-Qaeda e suas filiais, que se estendem desde o Atlântico até o Índico. O recente ataque terrorista no aeroporto de Cabul reivindicado pelo Estado Islâmico de Khurasan é sinal de que o pior ainda está por vir.
Entretanto e apesar de haver mais estudos conceituais do que empíricos, as conclusões destes destacam as causas híbridas do terrorismo global e que estão ligadas ao contexto de subdesenvolvimento e marginalização, debilidade dos sistemas educaionais, perda dos valores cívicos, pobreza, vulnerabilidade, maior distanciamento da ideia de Estado nacional, ruptura de relações entre o Estado e seus cidadãos. Desse modo, os meios de prevenção não residem nas apostas puramente securitárias, mas sim no reforço da legitimidade do Estado e da sua relação com os seus cidadãos, por meio da democracia e do Estado do direito, reforço da identidade nacional e da coesão social, elementos esses que se encontram quase ausentes no continente africano, onde colonização, despotismo, corrupção, conflitos eternos, golpes militares, neocolonialismo das grandes potências, contrastando com o discurso de cooperação internacional e favorecendo o crescimento e a expansão de ideologias totalitárias e excludentes.
No caso do Oriente Médio, a implosão causada pela Primavera Àrabe gerou uma combinação mais radical de fracasso do Estado, conflito de identidade, guerra civil e violência agressiva, combinados com novas interpretações totalitárias do significado da vida e da morte. O desmantelamento das estruturas pós-coloniais levou a uma “guerra dentro do Islã”, cujas dimensões mais radicais são os movimentos totalitários do Daesh, da Al-Qaeda e do Boko Haram.
Ascensão da islamofobia e a dura realidade dos muçulmanos
Outra consequência dos ateques de 11 de setembro é o aumento da islamofobia. Ainda hoje, a comunidade muçulmana nos Estados Unidos sofre as consequências da funesta terça-feira. Na Europa, que tem 26 milhões de muçulmanos, a abordagem securitária e preventiva reforçou o preconceito contra muçulmanos e árabes.
Nesse sentido, o 11 de setembro conduziu a uma mudança nas sociedades democráticas, em direção a uma opção preventiva. Essa abordagem, que é baseada na suspeita permanente, é especialmente perigosa pelas divisões que cria na população. O principal perigo representado pelo terrorismo e pelo antiterrorismo em uma sociedade é a divisão interna. É considerar que o vizinho é uma potencial ameaça, e que seus possíveis atos criminosos são inspirados por uma confissão ou crença, fato que acaba por minar a confiança entre os cidadãos.
Novo paradigma securitário
Nos Estados Unidos, a data do 11 de setembro deu margem a uma deriva securitária nunca vista em um país que era considerado até então o eldorado da liberdade e da transparência. As medidas legislativas aprovadas após os ataques de 11 de setembro trouxeram mais poder para o executivo dos EUA, aos serviços secretos e militares, além de um aumento do orçamento do Pentágono e do poder da ala militarista. Ao redor do mundo, houve uma razia de captura e prisão de muçulmanos suspeitos de serem terroristas, internados em campos espalhados por todo o planeta, o que provocou fortes reações da opinião pública por causa do uso da tortura na base militar de Guantânamo.
Eis o balanço dos vinte anos da guerra ao terror, no momento que coincide com a retirada da Otan e dos Estados Unidos, com imagens do caos e desespero no aeroporto de Cabul, plenas da simbologia do fracasso da operação Enduring Freedom (Liberdade Duradoura) e declaração de Joe Biden de que a missão dos Estados Unidos não se constituía como uma nation building (construção de nações), mas sim como counterterrorism (contra-terrorismo). Desse modo, ele fez uma convergência com a doutrina de George W. Bush, que há vinte anos declarou que a missão da guerra infinita era trazer paz e segurança ao mundo. Evidencia-se hoje que esse objetivo ficou muito longe de ser alcançado. A derrota no Afeganistão, tal como a derrota no Iraque, as consequências das guerras na Líbia e na Síria, apenas demonstraram o quão imprudentes foram algumas políticas militares que visavam a mudança de regimes, sem que houvesse um plano para o dia seguinte. O vazio deixado em países como a Líbia, Iraque e agora Afeganistão, teve e terá, ainda, seguramente e infelizmente, impactos nefastos para a segurança mundial.
Costuma-se dizer que a natureza detesta o vazio: é notável a mobilização da China, que já está no Afeganistão explorando recursos minerais raros como o lítio, cobre, ferro e ouro, assim como a Rússia, que se aproveitou da derrota da coalizão (Otan e Estados Unidos) para preencher o vazio deixado na Ásia Central. A Rússia tem projeções de se constituir como um poder neo-imperial, que objetiva a revisão das equações regionais de poder, na medida em que está tentando revisar os parâmetros da ordem internacional pós-Guerra Fria, sempre que possível, estendendo sua esfera de influência. A redução da presença dos Estados Unidos (que por sua vez, sob o presidente Trump, embarcou em uma jornada oscilante sem precedentes entre isolacionismo, unilateralismo, nacionalismo econômico e uma rebeldia contra alinhamentos políticos comprovados), desestabilizou a própria União Europeia a partir de dentro e promoveu uma forma de regionalismo hegemônico da Rússia. A aspiração russa de promover seu desenvolvimento global e seu status de poder por meio de uma revisão da ordem internacional atual constitui um desafio ao sistema internacional e aos Estados Unidos, muito mais do que as aspirações chinesas de moldar a ordem global a partir de dentro. Em última análise, é a ordem internacional criada no final da Segunda Guerra Mundial que está em jogo.
Outras consequências: a guerra infinita
Se de um lado o slogan we are all americans se espalhou pelo mundo como símbolo de solidariedade com os Estados Unidos, um outro mundo estava se desenhando. Outra consequência do 11 de setembro foi a declaração “solene” de uma guerra infinita contra o terrorismo em qualquer parte do mundo. Não havia margem para dúvidas: ou se estava contra o terrorismo ou a favor do terrorismo. Num discurso, George W. Bush declarou, no mesmo dia, que os ataques terroristas tinham “abalado as fundações dos edifícios mais altos da América, mas não podiam abalar as fundações da América. Se os ataques quebraram o aço, elas não podem cortar o aço da determinação estadunidense […] América, seus amigos e aliados se unem a todos os que desejam paz e segurança no mundo e estamos unidos para vencer a guerra contra o terrorismo”.
Desse modo, deu-se início a duas décadas de guerra contra o terror. A recusa de extradição de Osama Bin Laden pelos Talibãs levou não só à invasão do Afeganistão, mas também a mais longa guerra dos Estados Unidos fora de suas fronteiras. O mundo se lembra dos bombardeios às montanhas de Tora Bora contra os Talibãs e a caça dos membros da Al-Qaeda e o inimigo número um, Osama Bin Laden. Se o objetivo imediato de expulsar os Talibãs do poder foi atingido, o objectivo de capturar a mente instigadora do 11 de setembro foi conquistado apenas uma década mais tarde, com a captura e assassinato de Bin Laden, em 2011, no Paquistão.
A invasão justificada por infundadas acusações de que o Iraque possuía armas de destruição em massa e de que mantinha relações com o terrorismo da Al-Qaeda é outra consequência direta dos ataques de 11 de setembro. A guerra provocou, segundo o instituto britânico de pesquisas Opinion Research Business, a morte de mais de um milhão de iraquianos entre março de 2003 e agosto de 2007, milhões de refugiados iraquianos, pilhagem do patrimônio cultural milenar do país, desmonte do exército iraquiano, erradicação do partido laico Baath e a instiruição de um regime controlado pelos xiitas ideologicamente ligados ao Irã, o que na prática significou entregar o Iraque ao Irã. No mundo, essa guerra instrumentalizada apenas desacreditou o sistema e o direito internacional, bem como a ONU.
Olhando de longe e recorrendo ao rigor histórico, é difícil ignorar o quanto tudo isso apenas contribui para a balcanização dos Estados no Grande Oriente Médio, aumentou as lutas hegemónicas na região, principalmente, entre Arábia Saudita e Irã com as respetivas proxy wars, fato que criou um ambiente fértil para o aparecimento dos movimentos extremistas e totalitárias, como o caso paradigmático do Daesh, que ameaça não apenas a estabilidade na região, mas a mundial.
Que futuro para nós
Há trinta anos, o mundo abraçou a globalização e o planeta se tornou uma espécie de aldeia global, em que tudo está conectado e onde o conhecimento disponível na palma de mão revolucionou as mentes de milhões de seres humanos. Não obstante, o mundo continua a lutar contra os dogmas e as ideologias mais primárias e excludentes do outro, se distanciando de práticas como o direito à diferença, à coabitação e à tolerância. Eis os contrastes da nossa modernidade tardia.
Algo precisa ser feito. Não parece que a opção securitária e bélica esteja conseguindo criar condições para um novo humanismo. Pelo contrário, tem contribuído para o extremismo e a violência. Quiçá um novo mundo, alicerçado no multilateralismo e em uma real cooperação, possa trazer soluções para uma liberdade duradoura.
Mohammed Nadir, graduado em História pela Universidade de Rabat no Marrocos, Mestre e Doutor em História pela Universidade de Coimbra, pós-doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Professor visitante de Relações Internacionais e Oriente Médio na UFABC, pesquisador e coordenador do OPEB.