O que Zumbi e outrxs quilombistas têm a nos dizer?
O conceito quilombismo tornou-se uma ideia força para o povo negro brasileiro, pois esses territórios são a maior referência de agência política, manutenção e valoração à vida, à ancestralidade e à liberdade
Leitoras e leitores, será que vocês já levantaram o seguinte problema: “Como a população negra brasileira sobrevive a tantas formas estatais de fazer morrer[1]?”. Pois bem, caso não (o que eu infelizmente acredito), hoje eu venho lhes apresentar o problema que tem balizado minhas investigações nos últimos tempos, já que nunca esqueci que a filosofia é feita a partir de seus problemas.
Nesse mês em que teço essa escrita, o movimento negro brasileiro comemora o Dia da Consciência Negra, data que marca o assassinato do líder quilombola Zumbi dos Palmares, no dia 20 de novembro de 1695. Há 325 anos voltava para o ọ̀run uma das personalidades que mais demarcou a agência política do povo negro no Brasil. E, amparada no problema em que inicio esse texto, eu vos convoco a refletir: como Zumbi, Aqualtune, Rei Ambrósio, dentre outros líderes quilombolas, poderiam nos auxiliar a respondermos o problema desta reflexão?
Com toda certeza eu vos digo que toda nossa ancestralidade quilombola nos responderia: nos mantemos vivas e vivos pois sabemos fazer política, sabemos ser política! Mas, que política é essa? Questionaríamos. Eu, me atrevo, mesmo que brevemente, a refletir sobre alguns aspectos que, certamente, constituem essa política.
Enquanto um corpo preto que escreve essa reflexão filosófica, compreendo que temos conseguido nos mantermos vivas e vivos, mesmo com todo o projeto de genocídio existente contra a população negra desse pais, porque o povo preto e indígena possui uma filosofia política, que aqui conceituo como Filosofia Política Afroperspectivista, que está enraizada sobre a fortaleza de valores que não coadunam com a lógica necropolítica ocidental.
Sobretudo, essa filosofia política está pautada na valorização/exercício da memória e da energia vital (força) que constitui tudo que há no universo. Mas, como é uma filosofia política pautada na memória e na energia vital? Vocês devem estar se perguntando. Pois bem…
Previamente, afirmo que esse fazer político é um fazer baseado na territorialidade. Um fazer que tem como referência territórios de liberdade, territórios de abundância e de solidariedade. Que não estão amparados sobre o individualismo, a propriedade, ao amor pela mercadoria e a avareza. Muito menos na desconexão com a terra e a lógica ocidental de “roubar, matar e destruir”!
Sendo assim, podemos afirmar que esse fazer político é também um saber fazer a liberdade, dado que esse fazer advém da maior referência de produção de liberdade e solidariedade que o povo negro possui: os quilombos e sua práxis quilombolista. Por este fato, a política que emerge desses corpos/territórios é uma política que, necessariamente, segue outras referências, conexões e percepções de mundo, por sua vez, seguem outros valores.
Ou seja, parte e atribui respeito aos valores a seguir, de modo que os mesmos tomem uma importância singular na construção do Ser humano e consequentemente no fazer e relacionar com os outros/comunidade. Portanto, valores como: comunidade, corporeidade, oralidade, cooperativismo, ludicidade, circularidade, musicalidade, religiosidade, ancestralidade, energia vital e memória são alguns dos elementos fundantes do Ser, para essa filosofia política e, consequentemente, são categorias fundamentais para o fazer e ser política.
Logo, a política desde esses corpos-territórios pode ser compreendida como uma política feita com respeito à totalidade do Ser. Uma política que é alimentada/nutrida por valores civilizatórios apreendidos com a ancestralidade africana e os donos da terra, os povos pindorâmicos, que reafirmam, sopram em nossos ouvidos, diuturnamente, que a vida, a natureza/território que nos gera e nutri e o Ser só são em comunidade e não estão à venda.
Como também, que o Corpo é morada/templo de toda a nossa ancestralidade!
Nele está inscrito o nosso acordo, nosso elo/compromisso com a ancestralidade/comunidade/humanidade, assim como, nele (corpo/território) está contido todas as habilidades que precisamos desenvolver para bem-vivermos e construirmos uma boa sociedade. Sendo assim, ele é e deve ser compreendido e respeitado em sua plenitude, pois traz nele a memória (arsenal simbólico) e a energia de toda a nossa potência/agência política e criativa ancestral.
Dessa forma, para a política advinda desses territórios de liberdade não há possibilidade de pensarmos/projetarmos a melhor forma de vivermos, sem nos organizarmos social/politicamente, ou seja, de projetarmos uma boa sociedade e possibilitarmos a vitalidade dos seres sem considerarmos que Corpo, Mente, Natureza e Espírito estão interconectados.
Por isso, fazer viver esse corpo é primordial para mantermos na terra (àiyé) o elo que nos conecta com os nossas e nossos ancestrais e permite que lembremos sempre o que somos e o que temos! Pois, somos o todo, não há desconexão, e temos como compromisso a manutenção de um mundo integrado, diverso e coletivo onde reine a liberdade. Por isso, precisamos para bem viver, além de fazer política, ser política. Digo, ser comunidade! Ser com o todo. Estar em comunhão com a natureza, espírito, corpo e mente, tudo que habita o cosmos e sobretudo, mantê-las vivas e vivos.
Portanto, quando nossas e nossos ancestrais quilombistas nos dizem que nos mantemos vivas e vivos por sabermos fazer e ser política, compreendo que querem nos dizer que nós, comunidade negra, por termos como ponto de partida outras perspectivas de relações e modos de vínculo com o mundo e tudo que o habita – que não parte da desconexão, usurpação, individualismo ou violência – entendemos, na busca pela liberdade, que uma boa sociedade/comunidade está atrelada a como os seus membros compreendem o todo. Portanto, uma pessoa só será passível de morte se a concepção de mundo que orienta suas ações compreender o corpo apenas como moeda, máquina, mercadoria.
O que não faz parte da cosmossensação dos nossas e nossos ancestrais quilombistas. Consequentemente, não faz parte da cosmossensação que orienta o povo negro na diáspora. Logo, tenho compreendido que nos mantemos vivas e vivos, pois a práxis quilombista é um fazer político que habita em nós e está pautado em uma concepção de mundo que compreende o poder e importância que uma pessoa possui para a comunidade.
A energia vital que habita em nós, e em tudo que existe, é o que mantém o elo, a memória da potência/agência política, criadora e revolucionária que há em nós. Seres que fazem e constituem o todo. Seres ancestrais no hoje! Por esse motivo, hoje reflito que o processo de organização e manutenção da vida da nossa comunidade negra na diáspora, passou e passa pelo rememorar/executar de práticas e saberes (valores) dos que nos precederam.
No entanto, esse rememorar não fora compreendido/executado por Aqualtune, Zumbi, Ambrósio, dentre outras referências quilombistas que a história não registrou, como um simples olhar para trás e reproduzir as ações e estratégias políticas dos antepassados no presente. Como afirma Abdias Nascimento, em sua obra O Quilombismo (2019), a práxis quilombista está em todos os lugares, em constante reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico. Por esse fato, o rememorar/executar dessa política quilombista ocorre das formas mais variáveis possíveis em todas as diásporas.
Para a Filosofia Política Afroperspectivista a memória da potência política ancestral refletida nas diversificadas formas de ser quilombista são uns dos principais fatores que tornou e torna possível a manutenção da vida, o fazer e ser político do povo afrobrasileiro, em todos esses tempos de destruição, pois a memória é o que mantém/atualiza o elo do corpo com o arsenal simbólico da práxis política adquirida pela ancestralidade durante os percursos do tempo.
Em função disso, o conceito quilombismo tornou-se uma ideia força para o povo negro brasileiro, pois esses territórios são a maior referência de agência política, manutenção e valoração à vida, à ancestralidade e à liberdade. Há nele, e na política advinda desde esses territórios, uma energia que nos sustenta. Um poder! Uma rota de fuga sempre traçada. Um som que ecoa em nossos ouvidos nos recordando que: é pra frente e só pra frente que iremos, pois somos o êxito da nossa linhagem. A maior demonstração que sabemos fazer política, pois só assim pudemos nos mantermos vivas e vivos!
Por ser assim, Aqualtune, Zumbi, Rei Ambrósio e todas e todos quilombistas têm a nos dizer que: não há destruição da comunidade negra, mesmo com tantas formas estatais de nos fazer morrer, pois a filosofia política que advém desses territórios, demarca que nosso princípio político é gerar e manter a vida (a força vital). O assassinato de Zumbi e outras e outros quilombistas fortaleceu ainda mais a nossa comunidade, pois para a filosofia africana quando um membro da sua comunidade morre (fisicamente), a energia vital desse ser volta para a comunidade.
Ela transmuta para a esfera social, nos fortalece e nos auxilia a reinventar, desde o já feito, outras possibilidades de fazer viver a nossa comunidade. Por fim, creio que as e os quilombistas tem a nos dizer que: por todos os meios necessário iremos viver, pois sabemos fazer e ser política! Cultivar a memória e a força vital (ancestral) que tudo habita. Daí, que apesar dos históricos entraves necropolíticos, a rota, o projeto político do povo preto e indígena aponta, somente, para a geração da vida e o bem viver, pois temos referências ancestrais.
Nossa memória não começa no século XV!
Lorena Silva Oliveira, doutoranda em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Pesquisadora associada ao NEAB-UFU.
[1] Faço referência ao processo histórico de genocídio do povo negro sistematizado em meu livro “Racismo de Estado e suas vias para fazer morrer” publicado pela editora Apeku, 2020.