O quebra-cabeças de Fernando Lugo
Eleito por seu compromisso com mudanças, o novo presidente paraguaio precisa colocar o Estado a serviço das maiorias — o que inclui reforma agrária e tributária. Mas enfrentará enorme resistência das elites e sua base parlamentar é dividida e frágil. Saberá mobilizar a sociedade, para romper impasses?Carlos Iaquinandi Castro
Em 15 de agosto, o ex-bispo Fernando Lugo assumiu a presidência do Paraguai, interrompendo mais de 60 anos de governo do Partido Colorado, o que inclui a longa ditadura do general Alfredo Stroessner. Durante seu período como bispo da região de São Pedo, Lugo manteve forte vínculo com os movimentos sociais, e em particular com o campesinato paraguaio. Dali nasceu seu movimento Tekojoja, do qual surgiu a proposta de apresentar o religioso como candidato presidencial. Lugo renunciou então a sua função eclesiástica sem esperar o consentimento do Vaticano – que tardava – e aceitou participar da disputa. Formou-se a Aliança Patriótica pela Mundança, uma coalização de mais de vinte correntes, que inclui liberais, a Democracia Cristã e o Partido Comunista Paraguaio. Neste conglomerado, destaca-se o Partido Liberal (PLRA), individualmente o mais estruturado e que obteve maior representação parlamentar. Mas esta coalizão tão diversa e o personalismo particular de Lugo entorpeceram a gestação do novo governo e geraram dúvidas sobre seu futuro imediato.
Nas eleições de 20 de abril, Lugo obteve aproximadamente 42% dos votos. Mas seus rivais imediatos — Blanca Ovelar, do Partido Colorado, e o ex-General Lino Oviedo (que também tem origem nas filas coloradas) — somaram, com suas candidaturas, mais da metade (32% e 22%, respectivamente) dos votos depositados pelos cidadãos paraguaios. No Parlamento, o isolamento das forças de Lugo é muito grande. Os colorados têm quase 38% das cadeiras de deputados; os liberais pró-Lugo (PLRA) controlam pouco menos de 34% e 19% estão em poder da Unace, o partido do ex-general Oviedo. No Senado, os colorados têm um terço das cadeiras e as demais forças, um percentual semelhante ao de deputados. Para aprovar qualquer lei, Lugo terá de contar com o respaldo da principal força política de sua coalizão — os liberais —, o que nem sempre é fácil. E, além disso, negociar com pelo menos mais uma das forças com peso no parlamento. Até agora, os contatos e aproximações foram com a Unace do ex-golpista e direitista Lino Oviedo.
O novo presidente terá de perseguir diversos objetivos importantes, nos primeiros meses de gestão. Lugo sabe que a sua anunciada “batalha contra a pobreza” requer recursos, e por isso antecipou que deverá desenhar uma nova política tributária, que supere a atual — fraca e ineficiente. “Só assim”, afirmou há alguns dias, “poderá começar a ser quitada a dívida social que se acumulou durante décadas de indiferença e corrupção”. Atualmente, 1,1 milhão, dos 6 milhões de habitantes do país, encontram-se em pobreza extrema, com renda inferior a um dólar por dia.
Outra questão fundamental será renegociar com o Brasil os termos do acordo sobre a usina hidrelétrica de Itaipu, que estabelece o direito a uma divisão igual sobre energia gerada. Mas o Paraguai, com seu escasso desenvolvimento, só utiliza 17% dos 50% dos que lhe correspondem. O resto, vende ao Brasil — um gigante que necessita dessa energia — mas por um preço considerado insuficiente. Algo similar ao que ocorria com o gás que a Bolívia fornecia ao Brasil e à Argentina, renegociado a preços mais justos, depois que Evo Morales assumiu o poder.
Num país tradicionalmente rural, a reforma agrária é o grande tema. Cerca de 500 famílias controlam 90% das terras e o avanço da soja transgênica está expulsando centenas de milhares de agricultores
Mas não há dúvidas de que o tema de maior transcendência é o da distribuição de terra. Além de ser um problema antigo, Lugo prometeu, durante sua campanha eleitoral, levar adiante uma Reforma Agrária Integral, que modifique a situação presente, em que 12 milhões de hectares, os melhores recursos naturais do país, estão nas mãos de umas poucas famílias e consórcios. As estatísticas assinalam que o Paraguai tem a distribuição de terra mais desigual da América Latina. Centenas de milhares de agricultores lutam há décadas para melhorar as condições de vida. Os proprietários sempre contaram com a cumplicidade policial e governamental para reprimir os movimentos rurais. Mais de uma centena de dirigentes e líderes camponeses foram assassinados nos últimos vinte anos. A quase totalidade desses crimes continua impune, sem responsáveis e condenações.
Estima-se que um pouco mais de 500 famílias possuem 90% das terras, enquanto outras 350 mil famílias carecem delas. Tal situação incidiu na diminuição da população rural nos últimos 20 anos (de 67% para 30%). A migração interna significou um deslocamento da pobreza e da miséria para os bairros de Assunção e outras cidades. Martín Almada, militante social, ganhador do Prêmio Nobel Alternativo da Paz, e descobridor dos “Arquivos do Terror” do Plano Condor, afirma que o problema da concentração de terras em seu país começou realmente quando a Argentina, Brasil e Uruguai prestaram-se aos interesses do império da vez, a Inglaterra, e deram início à chamada guerra da Tríplice Aliança (1865-1870). “Porque no Paraguai, repartia-se a riqueza, não a pobreza, um mau exemplo para a região”. Como conseqüência daquela guerra, e de outra provocada pelos EUA anos mais tarde, (Paraguai contra Bolívia, em 1935), a estratificação social desenhou-se com 5% de ricos (proprietários das terras férteis), 10% de classe média e entre 75 a 80% de pobres.
A investigadora paraguaia Mirta Barreto acrescenta que logo veio a privatização maciça na década de 1950, com a ditadura de Stroessner. E continua: “durante mais de um século, vorazes fatores externos confluiram para expulsar de suas terras os camponeses e os donos originais”. A tudo isso acrescenta-se, mais recentemente, o modelo de monocultura de soja, que agravou o conflito, lançando milhares de famílias na pobreza, provocando desemprego, e imigração. Segundo fontes oficiais, estima-se que 600 mil agricultores foram expulsos de suas terras pelo agressivo cultivo de soja, nos últimos sete anos. Mais de 180 mil paraguaios imigraram para a Argentina.
O Movimento Camponês Paraguaio crê, e tem razões para isso, que chegou finalmente o tempo de justiça. Foi parte fundamental da base que permitiu a vitória da Aliança Patriótica pela Mudança. Na semana da posse de Lugo, cerca de três mil agricultores ligados à Coordenação da Luta pela Terra e Soberania ocuparam uma fazenda arrendada por um cidadão brasileiro em São Pedro, região onde atuou o bispo Fernando Lugo. O dirigente dos sem-terra paraguaios, Elvio Benítez, afirmou que a ocupação “era uma mensagem clara para os que terão a responsabilidade de governar nosso país em benefício de todos”. Os agricultores também pressionam para que o Estado elabore um cadastro nacional sobre a distribuição de terras, para contar com dados fidedignos sobre quem são os proprietários e quantos hectares possui cada um. O sociólogo Tomás Palau avalia que no Paraguai cada pecuarista conta com uma média de 2,7 hectares por cabeça de gado, e que os cultivos de soja transgênica ocupam mais de 2,5 milhões de hectares, cujo semeadura mecanizada e cultivo não requerem muitos trabalhadores rurais. Porém, estas medidas encontraram forte resistência por parte dos latifundiários. Cláudia Russer, da Associação de Produtores de Soja, já pediu que o novo governo defina-se frente à “insegurança”, e exigiu garantias para a propriedade privada.
Martin Almada, ganhador do Nobel alternativo, alerta: Lugo “enfrentará a força da legislação burguesa, um parlamento retrógrado, uma justiça corrupta e forças armadas cuja mentalidade vê o povo como inimigo”
Há, ainda, sinais eloqüentes de crise produtiva no setor industrial. O novo governo vai se reunir com a empresa Petropar, que controla a distribuição de combustíveis e está em falência virtual, com uma dívida de mais de 300 milhões de dólares. A empresa INC (Indústria Nacional de Cimento) quebrou e são freqüentes as interrupções, por falhas técnicas, de suas fábricas principais. As ferrovias, algumas das quais abandonadas, representam mais memória que realidade.
Às dificuldades enumeradas somam-se outras, não menos importantes. É fácil prever que a convivência de Lugo com seu vice, Julio Cesar Franco, do Partido Liberal não será fácil. A maioria deste partido opõe-se às nomeações de ministros e ocupantes de postos-chaves escolhidos por Fernando Lugo. Alguns dirigentes do partido acreditam que Franco está marginalizado ou não ter o destaque que, segundo eles, corresponderia ao seu cargo de vice-presidente.
Martin Almada, o vencedor do Nobel alternativo, manifestou dúvidas de que Lugo poderá cumprir seu compromisso de promover a reforma agrária. Afirmou que o novo presidente “enfrentará a força da legislação burguesa, um parlamento retrógrado, uma justiça corrupta e forças armadas cuja mentalidade, formada pela Doutrina da Segurança Nacional, vê o povo como inimigo”. Além disso, ele acredita que, nas condições objetivas de hoje, Lugo terá de se limitar a gerir a pobreza, administrando a herança de mais de 60 anos de governo colorado. A menos que se disponha a organizar e mobilizar a maioria silenciosa, composta pelos socialmente excluídos.
Mas também há dúvidas a respeito desta possibilidade. Há poucos dias, Belarmino Balbuena, um dos líderes do movimento camponês e aliado de Lugo nas eleições de 20 de abril, expressou sua oposição à forma utilizada pelo presidente para mobilizar seus apoiadores. Ele acusou especificamente o chefe de gabinete de Lugo, Miguel Lopez Perito,de organizar concentrações populares ao estilo do Partido Colorado, já que os recursos para promovê-las não partem das organizações sociais. Balbuena, que também pertence à Frente Popular e Social, acha que são “maus sinais” do novo governo.
Para enfrentar oligarquia, será preciso falar aos excluídos, enfrentar a corrupção, dispor de quadros. Nas próximas semanas, começaremos a saber se Lugo terá condições — e está disposto — para tanto
A este panorama complexo, é preciso acrescentar que o resultado das eleições não altera o equilíbrio de poder dos poderosos interesses econômicos e políticos, que tentam manter seus privilégios, regalias e usufruto de concessões obtidas por mecanismos viciados. Vai ser difícil anular estes métodos, já que o tráfico de influências e a corrupção são parte da “normalidade” administrativa. A concentração de poder econômico permite comprar funcionários, ganhar licitações e subornar juízes e procuradores. Para reverter este cenário, será necessário agir com firmeza e dispor dos quadros necessários para gerenciar e supervisionar a transparência e a honestidade. Grande parte da atividade privada está associada de forma inescrupulosa aos orçamentos públicos, em especial às grandes obras. Segundo críticos, todas foram realizadas com superfaturamento e, em alguns casos, descumprimento dos compromissos da licitação.
Entre as batalhas para impor um governo que funcione normalmente e em consonância com a legislação, está a do contrabando. Ninguém arrisca números, mas muitos crêem que esta atividade ilícita, firmemente enraizada no país, movimente muitos milhões de dólares. Também é conhecido o poder dos grupos que controlam o contrabando. Embora não se possa quantificar sua amplitude, é possível imaginá-la a partir de uma informação: o próprio presidente admitiu ninguém quer aceitar o cargo de diretor da alfândega. O engenheiro João Max Rejalaga, candidato, desistiu devido à “falta de garantias para a sua vida.” Horas antes, havia recebido ameaças de morte da máfia que controla o contrabando. A mensagem é clara: querem que tudo continue como está. E esse será um dos grandes obstáculos para as aspirações de mudança, não só na alfândega.
Embora durante a campanha eleitoral o ex-bispo tenha se aproximado dos governos do continente que se distanciam (em graus variáveis), da influência norte-americana, há quem duvide que seu governo assuma esta postura. Na própria Aliança, há críticas à presença de ex-funcionários da ditadura Stroessner no círculo mais próximo ao futuro presidente. Além disso, há quem lhe atribua contatos com James Cason, embaixador americano em La Paz, uma delegação diplomática que teve influência decisiva sobre o governo paraguaio nos últimos 60 anos. Há mesmo quem receie o fato de o papa Ratzinger ter concedido a Lugo, em 30 de julho, em decisão surpreendente, a licença há muito solicitada. Os adeptos do presidente rejeitam esta crítica, argumentando que Lugo terá minorita entre os deputados e senadores — e por isso deve agir pragmaticamente, se quiser governar. Lembram também que ele terá de enfrentar uma estrutura administrativa hostil a qualquer transformação.
Tudo isto é verdade — mas também é certo que grande parte do povo paraguaio, a maioria que votou em Lugo, confia de que deixe para trás as formas autoritárias de governo, o clientelismo, as injustiças e o favorecimento aos grandes grupos económicos, entre eles os latifundiários. Para isso, o presidente terá de fazer todos os esforços para romper uma imagem criada por Martin Almada, parafraseando o intelectual brasileiro Josué Castro: “n