O racismo também mora na Cracolândia
A defesa das ações policiais que impedem alcançar resultados com medidas de saúde e assistência social não é um mero erro de cálculo. Esse pensamento responde à mesma lógica que fez a população negra ser jogada na rua após a abolição
Em 11 de agosto, moradores e comerciantes da região central de São Paulo foram às portas da Câmara Municipal em um protesto contra a Cracolândia. Esses residentes reivindicam a remoção de sua vista da multidão que reúne pessoas em situação de rua e que consomem drogas de forma abusiva. Reclamam do barulho durante todo o dia, da sujeira e, principalmente, dos roubos.
No entanto, gritar “Fora Cracolândia” não faz sentido se as pessoas não tiverem para onde ir. A população que vive e frequenta o fluxo é essencialmente preta e pobre. Garantir direitos como moradia, acesso à saúde, educação e renda seria o caminho mais fácil para toda a cidade ter noites de sono mais tranquilas. Seria gasto, inclusive, muito menos dinheiro do que o desperdiçado pela Guarda Civil Metropolitana, com viaturas e bombas, para empurrar a multidão pelos bairros da região central.
É nesse ponto que um veneno antigo nutrido em muitos corações passa por cima da racionalidade e da lógica dos números, que deveria comandar a gestão pública. Para esses grupos de moradores e comerciantes, que se organizam nos Conselhos Comunitários de Segurança da Santa Cecília, Santa Ifigênia e Campos Elíseos, não é admissível que essas pessoas simplesmente recebam casas. Digo na cabeça dessa militância organizada e articulada com parlamentares da extrema direita que sequestrou para si o lugar de fala de “moradores do centro”. Nunca podemos esquecer que os bairros da região central têm uma população tão plural como a cidade de São Paulo.
A defesa das ações policiais que, justamente, impedem alcançar resultados com as medidas de saúde e assistência social, além de concorrer pelos mesmos recursos públicos que poderiam ser usados em medidas efetivas, não é um mero erro de cálculo. Esse pensamento responde à mesma lógica racista que fez com que após a abolição da escravatura a população negra fosse jogada na rua, sem direito a indenização ou terras. Isso enquanto os trabalhadores imigrantes europeus receberam incentivos e terrenos para se estabelecerem no Brasil.
Matar, pela violência, e deixar morrer, sem garantias mínimas de existência, formam a hélice afiada do genocídio.
Na Cracolândia, também tivemos uma versão do movimento iniciado no século XIX. O governo estadual subsidiou a construção de milhares de apartamentos em condomínios para a classe média. Famílias com inserção no mercado de trabalho que pagam as prestações em dia. Parte das unidades habitacionais foi reservada especificamente para funcionários do chamado sistema de segurança pública e para funcionários públicos. Foi o jeito que o Estado encontrou para, ao mesmo tempo, continuar negando direitos à população desprotegida socialmente e aumentar o clima de tensão na região.
A falsa simetria entre a situação de pessoas que foram atacadas de diversas formas pelo Estado – sendo obrigadas a viver em favelas, passando anos no cárcere e agredidas pelas polícias desde sempre – e dos moradores com privada em casa é encantadora. A empatia das classes médias, mesmo das autointituladas de esquerda ou progressistas, flui muito mais fácil em direção ao grupo mais semelhante.
Essa identificação alimenta os discursos de políticos e ditos especialistas que buscam o impossível ponto de equilíbrio entre os que pedem violência e a construção de um caminho que reduza as desigualdades.
Aqui se soma parte do discurso base da ideologia da guerra às drogas, de que existem substâncias capazes de anular completamente a consciência. Elaboração que desconsidera os contextos de vida angustiantes da atualidade, que tornam palavras como burnout vocabulário cotidiano até para pessoas aparentemente inseridas nos mercados de consumo e trabalho.
A crença na existência desse tipo de droga é o que sustenta a guerra, que move interesses por todo o mundo, em especial no microcosmo da Cracolândia. Tornaram-se públicas neste ano denúncias de que guardas e policiais cobram de condomínios e comerciantes para garantir a segurança que, supostamente, deveria ser pública. Que interesse agentes que lucram duas vezes com a situação atual teriam em qualquer mudança?
Por isso, precisamos exigir o fim imediato da violência e garantia de direitos – uma reparação muito tardia às populações que vagam em farrapos pelo centro da cidade.
Daniel Mello é jornalista, poeta e documentarista. Atua como repórter em São Paulo desde 2009, cobrindo temas relacionados a políticas públicas e direitos humanos. É militante contra a violência policial na região da Cracolândia desde 2017, onde atua com coletivo A Craco Resiste e a Associação Birico. Em 2019, lançou o livro Gargalhando vitória: poemas da Cracolândia pela Editora Elefante.
Falar sobre o assunto é fácil. O mais importante é contribuir com a mudança. E deve começar na base formar famílias de responsabilidade.