O Reichstag de Bolsonaro somos nós
Num grave contexto de crise, pandemia da covid-19 e crise econômica, o presidente Bolsonaro coloca em prática uma clara estratégia de concentração de poder
Em 1932 o presidente da Alemanha Paul von Hindenburg ofereceu a Adolf Hitler a chancelaria, o comando do Estado. Logo que chegou ao poder, Hitler buscou eliminar a forte oposição que havia se formado contra ele. Para facilitar a perseguição aos seus opositores ele organizou uma farsa: provocou um incêndio que destruiu o prédio do Parlamento alemão, o Reichstag, acusando os comunistas de terem um golpe em andamento. A ideia era justamente essa: organizar uma farsa, jogar a culpa em seus opositores e ganhar o apoio popular para tomar o poder completamente. Após a farsa, os deputados e líderes das esquerdas foram presos e assassinados e Hitler começou a instalar a sua ditadura totalitária.
Hitler jamais teria tomado e realizado seu projeto totalitarista se não tivesse ao seu lado Joseph Goebbels. Ele foi o porta-voz do nazismo e utilizou-se do rádio, do cinema, do teatro e da literatura para divulgar a ideologia nazista. Sempre num tom heroico e simplista, a propaganda foi a responsável por introduzir no pensamento das pessoas a forma nazista de ver o mundo. Uma narrativa mitificadora de Hitler, construtora de mentiras e distorções da realidade. Sem Goebbels, Hitler não seria a personificação da ideologia nazista. Era preciso um Goebbels para a construção de um mito salvador, que iria comandar a Alemanha para seu futuro glorioso.
Nesse sentido, os slogans nazistas eram publicamente invocados e sempre aplaudidos por uma massa popular cada vez mais incapaz, tal como definiu Hannah Arendt, de exercer seu juízo crítico. Se a mensagem vinha de Hitler, então ela estava correta. Ou seja, não era importante o conteúdo em si, mas apenas a sua reprodução massiva, pois o mito jamais poderia estar errado. Alguns slogans foram muito comuns como, por exemplo, “Acredita! Obedece! Luta!”; “Nada jamais foi ganho na história sem derramamento de sangue”; “É melhor um dia de leão do que cem anos de carneiro”, dentre outros.

Propaganda nazista
A linguagem da propaganda nazista era simplificada para que pudesse atingir o máximo possível de pessoas. Era rasa e superficial. Escrita em tom de declamação para que todos que tivessem acesso a ela pudessem não somente prontamente com ela concordar, mas também rapidamente disseminá-la. Vale dizer, a linguagem nazista empobreceu propositalmente a língua alemã. Viktor Klemperer analisou brilhantemente a nazificação do alemão ao estudar o que denominou de linguagem do Terceiro Reich.
É importante ressaltar que nada disso seria possível se Hitler não tivesse como contexto a grave crise econômica pela qual a Alemanha passava. Devastada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial e da grave crise de 1929, a Alemanha vivia mergulhada num profundo desemprego e com uma assustadora hiperinflação. Era o contexto para que um líder carismático, um mito, surgisse.
Mas, por qual motivo retomar essas doloridas lições da história?
Talvez por conta de alguns paralelos sombrios no Brasil de 2020.
Num grave contexto de crise, pandemia da covid-19 e crise econômica, o presidente Bolsonaro coloca em prática uma clara estratégia de concentração de poder. Aproveitando-se da crise e do confinamento obrigatório, Bolsonaro tenta, por meio de uma farsa, culpar seus adversários políticos pelo aprofundamento da crise econômica, para que, por meio dessa fantasia grotesca, convença a população que ele não tem absolutamente nada a ver com a crise que virá, e que se há alguém a culpar, não será ele.
A farsa de Bolsonaro é evidente e vem sendo preparada há muito tempo.
Coloca-se como um político diferente, como alguém novo, que virá salvar o Brasil. Tenta fazer esquecer que foi um político inexpressivo durante anos, com uma atuação medíocre e que só se destacava, negativamente, por seus arroubos autoritários em momentos que destilava toda sua virulência. Tenta se isolar das demais instituições do Estado brasileiro, num jogo onde se coloca como imaculado. Ou seja, tenta transformar o presidencialismo brasileiro em praticamente um czarismo, pois o que o impede de governar é, segundo sua narrativa, um Congresso e um Supremo Tribunal Federal corruptos. Ignora e atropela todo o histórico familiar de rachadinhas e denúncias de corrupção entre seus ministérios.
Concentração de poder
Com isso, Bolsonaro tenta concentrar poder, buscando colocar a população contra as instituições democráticas do Estado brasileiro. A mensagem que ele quer passar é simples e clara: “só eu estou por vocês brasileiros, o Congresso e o Poder Judiciário, representado aqui pelo Supremo Tribunal Federal, são calhordas que não pensam em vocês. Vamos nos colocar contra eles! Estejam do meu lado, porque eu estou do lado de vocês!”
Contudo, a estratégia populista bolsonarista até agora teve que enfrentar o forte arcabouço institucional da democracia brasileira. Apesar de todos os pesares, os efeitos da desconcentração de poder planejada na Constituição Federal de 1988 continuam vigentes e surtindo seus efeitos. O sonho dourado do projeto bolsonarista de remodelar a nação a partir dos ideais carcomidos do seu guru, que se disfarça de filósofo, Olavo de Carvalho, o ex-astrólogo que mora nos Estados Unidos, e do fanatismo anticientífico enfrentaram barreiras até agora intransponíveis.
Entretanto, a farsa bolsonarista parece não ter o menor limite ético. Bolsonaro quer colocar contra a parede os demais Poderes da Federação, aproveitando-se de maneira pérfida da pandemia que assola todo o planeta. Isso ele já vem tentando – e falhando – há tempos. Aliás, foi o mote das manifestações que estimulou no dia 15 de março de 2020.
Dessa maneira, sua nociva farsa tomou contornos mais sombrios ao usar a mais grave pandemia de gerações para tentar colocar toda a população brasileira contra governadores e prefeitos, culpando-os pelos efeitos futuros da grave crise econômica que virá, porque ela é inevitável. Há uma recessão global caminhando fortemente desde que a China, Europa e Estados Unidos pararam suas atividades para combater o coronavírus.
E o tímido crescimento do PIB brasileiro pré-coronavírus não foi e nem será suficiente para proteger milhões de desempregados da situação difícil em que já se encontravam.
Populista
Nesse sentido, em vez de atuar como chefe do Executivo e da União Federal, Bolsonaro age como o populista que tenta construir a narrativa para concentrar poder via opinião pública e deslocar a parcela de culpa na mão de outros, taxados em seu discurso como inimigos da nação.
Bolsonaro é quem tem nas mãos a obrigação e os instrumentos para repassar fundos, auxiliar os outros entes da federação e reduzir o sofrimento da população em um momento atípico, extraordinário, que o mundo e o Brasil vivem. Todavia, em vez de cumprir com sua obrigação, joga politicamente, iludindo a população, que desconhece quais são as reais obrigações do chefe do Executivo.
A demora do governo federal em socorrer a economia nesse período emergencial, estender a mão aos outros entes da federação e coordenar uma política comum de enfrentamento da pandemia agravará ainda mais o profundo abismo econômico e social. E isso é e será culpa do presidente Bolsonaro, que insiste em fazer politicagem eleitoral, na acepção mais vulgar do termo, no momento inadequado.
A farsa de Bolsonaro é impulsionada pelo seu exército nas redes sociais comandado pelo chamado “Gabinete do Ódio”, que opera do próprio Planalto. Seu filho Carlos Bolsonaro é o responsável por orquestrar e disparar mensagens falsas, por meio de perfis falsos, com slogans de comando contra os governadores e prefeitos do país, que escolheram estar do lado da ciência e das recomendações da Organização Mundial da Saúde no enfrentamento ao vírus.
Desse modo, Bolsonaro continua a construir, com método e objetivo, a sua grande farsa populista para cada vez mais concentrar poder. Sua intenção é clara, só não consegue enxergar quem já se deixou seduzir pelas mentiras da sua máquina de propaganda digital.
De costas para a Ciência
Bolsonaro, de maneira irresponsável, coloca-se de costas para a ciência e para tudo que tem sido feito no mundo para combater a pandemia que assola o planeta. Faz isso porque sabe que a crise econômica é inevitável, mas quer com ela faturar. Sabe que só assim poderá continuar vivo no seu projeto de poder. Não porque não há outra alternativa, mas porque só sabe oferecer ao país esse tipo de política nociva e autoritária.
O perigo de sua farsa é extremamente alto, porque Bolsonaro coloca no seu cálculo político as vidas de brasileiros, que seduzidos por seu discurso, concordam com sua falsa relação de que o confinamento destruirá a economia e produzirá desempregados. Isso já é uma realidade, e a falta de confinamento será pior, porque ajudará a transmitir o vírus, impactará no sistema de saúde, matará pessoas, obrigará a se destinar mais recursos para ele e fará com que a economia sofra ainda mais.
A narrativa de Bolsonaro é mentirosa. Colocar pessoas na rua agora irá aprofundar a crise econômica lá na frente. Mas, na farsa de Bolsonaro isso não importa; o que importa é ele ter o poder, ser chamado de mito, e ter mais e mais poder.
Infelizmente muitos não entenderam, mas o Reichstag de Bolsonaro somos nós.
Guilherme Antonio Fernandes é doutor em Direito pela USP, pesquisador do Gebrics-USP, professor e advogado; e Ivan Filipe de A. L. Fernandes é doutor em Ciência Política pela USP, professor da UFABC e pesquisador do Ceprap.