O fantasma de Auschwitz e a recusa em desviar o olhar
Sob demagogos como Trump, Bolsonaro, Erdoğan, Narendra Modi e Viktor Orbán, vivemos em um momento no qual a violência estatal, a repressão generalizada e uma onda de ilegalidade e crueldade contra aqueles considerados descartáveis se tornaram a marca registrada de uma política fascista atualizada
Em janeiro, mais de duzentos sobreviventes de Auschwitz, o notório campo de concentração nazista na Polônia, se reuniram para comemorar o 75º aniversário da libertação. Eles testemunharam as brutalidades da máquina de matar sancionada pelo Estado nazista, às quais, naquela época, o resto do mundo parecia indiferente. Mais de 1,1 milhão de judeus – junto com milhares de romanichéis, dissidentes e outros considerados “inimigos do Estado” foram assassinados em Auschwitz enquanto a comunidade internacional desviava o olhar. As chamadas para nunca mais deixar esses crimes acontecerem foram misturadas com indignação apaixonada e um “alerta contra a cumplicidade, apatia e demagogia que abriram o caminho para o massacre de 11 milhões de pessoas. Vários dos sobreviventes falaram não apenas sobre o pesadelo criminoso aterrorizante e a limpeza étnica sistêmica realizada em Auschwitz, mas também sobre as condições que tornam possível alertar que as lições não foram aprendidas pelas gerações existentes.
Diversos sobreviventes expressaram alarme com nosso atual momento da história em que o autoritarismo está em ascensão novamente. Eles argumentaram que a indiferença e o fracasso em responsabilizar o poder fornecem o abismo moral e a base política que torna possível o assassinato em massa. Muitos, como Elza Baker, de 91 anos, que advertiu que “se você não prestar atenção para fora um dia você acorda e será tarde demais”. A sombra tóxica de Auschwitz e a repulsa coletiva contra a intolerância, a discriminação, o racismo e a pureza racial parecem ter sido esquecidas, à medida que as forças fascistas mantidas à distância nas margens da sociedade se deslocam para o centro do poder.
Sob demagogos como Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil, Recep Erdoğan na Turquia, Narendra Modi na Índia e Viktor Orbán na Hungria, vivemos em um abismo moral no qual a violência estatal, a repressão generalizada e uma onda de ilegalidade e crueldade contra aqueles considerados descartáveis – como imigrantes sem documentos, muçulmanos, refugiados e negros – se tornaram a marca registrada de um política fascista atualizada. À medida que a cultura cívica entra em colapso, os bens públicos são privatizados e o ensino público e superior se torna objeto de escárnio, a memória histórica desaparece e os fantasmas de uma política fascista normalizam-se e reaparecem de formas diferentes e atualizadas.
![Auschwitz, Polônia - Jean Carlo Emer/Unplash](https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2020/04/jean-carlo-emer-IrrBZoTLFno-unsplash-e1586451042376-300x253.jpg)
Demagogos
Os horrores que estamos testemunhando sob demagogos em todo o mundo devem estar ligados a um passado que nos lembra o sofrimento, a miséria e a violência endêmicos de uma política fascista e como, em suas formas atualizadas, pode ser desafiado individual e coletivamente. Como alguns dos sobreviventes de Auschwitz deixam claro, a memória neste caso nos permite reconsiderar todo o projeto da política com a urgência necessária para nos permitir pensar em um caminho para um futuro em que possamos ver a história e o mundo através de uma lente democrática e moral da redenção, justiça e esperança.
Numa era da política fascista, a história deve ser interrogada como fonte de possibilidade, crítica e resistência. Os horrores que estamos testemunhando em todo o mundo devem estar ligados a um passado que nos lembra o sofrimento, a miséria e a violência endêmicas de uma política fascista e como, em suas formas atualizadas, pode ser desafiado individualmente e coletivamente. A política, na ausência de lembranças perigosas, permite que o fascismo neoliberal colonize nossos sonhos, desligue o poder da imaginação e feche as críticas aos regimes carcerais do consumismo, atomização social, privatização e disciplina do neoliberalismo.
Vivemos em uma era que agora combina os elementos de um capitalismo selvagem e de um autoritarismo político. A crueldade tem um lugar especial nos regimes que comercializam brutalidade, barbárie e violência. Por exemplo, nos Estados Unidos, como explicar a sugestão de Trump de dar um tiro nas pernas dos migrantes para abrandá-los e fortalecer uma “parede de fronteira com uma vala cheia de água, abastecida de cobras ou jacarés…. Eletrificada, com espinhos? no topo que poderia perfurar a carne humana”?
A esfera social – vista como um compromisso com o bem comum, a justiça econômica, o público de qualidade e o ensino superior, o Estado social e uma próspera cultura cívica – estão sendo ridicularizados se não destruídos. A extrema violência no coração da vida cotidiana nos Estados Unidos constitui um ataque à própria natureza da imaginação social, da democracia e das instituições que a tornam possível. Esse é um mundo que se afasta dos crimes produzidos por governos autoritários, se torna indiferente à história do fascismo e à cultura de crueldade, e não se deixa abalar com os apelos por parte dos sobreviventes de Auschwitz, que argumentam que “não querem que seu passado seja o futuro dos filhos ou o futuro dos netos”.
Henry A. Giroux é professor da McMaster University, Canada. Traduzido por Gustavo O. Figueiredo.