O resultado das prévias argentinas e um alerta para o Brasil
A lição que tiramos da Argentina é que o projeto de longo prazo deve necessariamente passar por mobilizar as massas e mexer com o inconsciente coletivo para retomar não uma maioria de ocasião, mas disputar corações e mentes que, queiramos ou não, seguem fortes com o bolsonarismo
As eleições prévias legislativas, realizadas no dia 12 de setembro, fizeram soar um alerta amarelo no governo de Alberto Fernández, na Argentina. Foi uma derrota flagrante em todo o país, mesmo em províncias que são redutos tradicionais do peronismo, como La Pampa e Chaco. O cenário só não é tão devastador – pelo menos por enquanto – porque ainda é uma prévia: as eleições definitivas ocorrem em novembro. Essas são o que eles chamam de Primarias, Abiertas, Simultáneas y Obligatorias (Paso). Voltemos um pouco no tempo para contextualizarmos a situação, tanto na Argentina, como para traçar um paralelo com o Brasil.
De 2015 a 2019, a Argentina conheceu um dos cenários políticos mais neoliberais desde a Era Menem. O governo de Mauricio Macri endividou o país em absurdos 97,7% de seu PIB comprometendo todo o orçamento público por muitos anos. A dívida foi resultado, principalmente, de um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), muito atacado pela então oposição peronista, assim como a coalizão de centro-direita, Juntos por el Cambio, a qual integra Macri, responsável pela operação. Trata-se de uma dívida insolúvel a olhos vistos. Como tiveram a coragem de pedir esta quantia? E como o FMI teve a indecência de concedê-la? São perguntas que deixamos para os operadores de mercado responderem.
No campo social, o país era uma terra arrasada: quase 40% da população na condição de pobreza, 60% de inflação ao ano e um aumento vertiginoso de indigência, em patamares superiores ao da famosa crise de 2001, quando cinco presidentes governaram a Argentina em um intervalo de doze dias.
Na política, o campo peronista progressista estava dividido desde o fim do governo de Cristina Kirchner, quando o atual presidente da nação, Alberto Fernández, e o atual presidente da Câmara de Deputados, Sérgio Massa, estavam em rota de colisão pública com o que se chama de kirchnerismo.
No entanto, em 2019, setores peronistas conseguiram sentar-se à mesa, colocando suas diferenças de lado e percebem que só uma frente ampla poderia derrotar o macrismo: nasce a Frente de Todos. O gesto simbólico foi concretizado no chamado de Cristina Kirchner para que Alberto liderasse a chapa presidencial e, ela ficasse com a vice-presidência.
Vítima de um processo de lawfare e de uma difamação midiática neoliberal que muito se assemelha a outros casos de líderes latino-americanos contemporâneos, Cristina soube mexer no tabuleiro e inverteu as expectativas da direita. Por outro lado, mostrou-se disposta a ceder, tanto para o campo peronista, mas também moderando o discurso para conservadores.
A ação também foi acompanhada por Alberto Fernández, que fez seu mea-culpa e conciliou-se em público com Cristina, elogiando-a pela sua capacidade de liderança. A esse movimento, seguiu-se Sérgio Massa, que rivalizava – parecia – de forma irreversível com Cristina anos antes.
Todos aceitaram o tamanho de seus capitais políticos e a responsabilidade de seus cargos: Alberto, que não teria a densidade popular para ser presidente sem o aval de Cristina; Sérgio, que também seguiria como uma 3ª via, aceitando ser o primeiro da lista de deputados e, logo, presidente da Câmara; e Cristina colocando-se por trás das câmeras. Foi um acordo que contou com a maturidade de todos os lados. A tarefa, no entanto, não era fácil: como reconstruir um país destroçado por anos de uma gestão que promoveu uma fuga de dólares recorde e aumentou as desigualdades sociais?
Durante esta campanha, um personagem em especial chamou a atenção: José Luis Espert. Seus discursos, que mesclavam uma boa dose de violência, arrogância e bastante liberalismo econômico. Mesmo que tenha terminado com um percentual muito baixo (1,47%), Espert começava a explorar no cenário argentino uma ideologia que, evidentemente não era nova naquele país, mas seguramente estava em ascensão na região e no mundo: um neoliberalismo ainda mais radical. Isso significa uma mistura de anarcocapitalismo com traços de um conservadorismo muito entranhado em boa parte da sociedade argentina: o ódio de classe, ao popular, ao peronismo e a tudo que não espelha o – que esse setor acha – ser a cultura “vitoriosa” dos Estados Unidos.
Não foram poucos os analistas políticos que minimizaram sua expressão, principalmente, depois que a divisão dos votos consolidou a já tradicional rivalidade do país: uma coalizão progressista peronista (Frente de Todos), capitaneada pelo Partido Justicialista (PJ), com 48% do eleitorado válido, versus uma coalizão de centro-direita (Juntos por el Cambio), liderada pela Propuesta Republicana (Pro), com 40%.
A pandemia e o acirramento da “grieta”
Se a crise política, social e econômica já era enorme quando Alberto Fernández assumiu o país no fim de 2019, ela ganhou contornos dramáticos em 2020 com a crise sanitária da Covid-19. Um país que lutava – e ainda luta – para renegociar sua dívida gigantesca com o FMI sem afetar a condição de vida dos mais vulneráveis, viu a sua situação se deteriorar de forma catastrófica: mesmo precisando impulsionar a economia, apostou na saúde pública e manteve grande parte do país em quarentena. Destinou os já escassos recursos à assistência social dos mais pobres, juntamente com isenções fiscais a pequenos comerciantes e, com a maioria no Legislativo, instaurou um imposto sobre grandes fortunas extraordinário para financiar parte dessas medidas.
No início, Alberto obteve grande apoio popular, mas com o tempo a “grieta” – na expressão argentina para “divisão” ou “conflito” – voltou a aflorar. Explorada inicialmente pelo governador[1] da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, do mesmo partido de Mauricio Macri, o que era um consenso pela barreira sanitária contra o coronavírus, virou fonte de discórdia política. Manifestantes anti-quarentena passaram a ocupar as ruas da cidade clamando por “liberdade”, cartazes surgiam denunciando um suposto plano de encarceramento da população contra um “povo que queria trabalhar”, chegando ao ponto de se negar a ciência, chamando a realidade da Covid-19 de infectadura: uma espécie de ditadura disfarçada pela pandemia.
Puro negacionismo? Nem tanto! Há que se considerar as estratégias políticas vinculadas a esse cenário, já que é exatamente neste contexto que muitos aproveitaram para trazer de volta os ideais neoliberais anarcocapitalistas às ruas e aos telejornais, com economistas como José Luis Espert e Javier Milei.
Milei, que até então era apenas um economista televisivo, larga a carreira privada e lança sua candidatura liderando uma lista para deputado nacional. Admirador declarado de Trump e Bolsonaro, é figura ainda mais violenta que seu companheiro de coalização (La libertad avanza), José Espert. E também mais popular: no encerramento de campanha levou uma multidão ao Parque Lezama em San Telmo, improvisou trechos de uma famosa canção de rock argentina e, a plenos pulmões, fez um discurso bastante fleumático com a seguinte frase: “não vim aqui guiar cordeiros, vim despertar leões”.
Apuradas as urnas das Paso – as prévias -, o resultado é acachapante para a aliança progressista e animador, em todo o território nacional, para a coalizão de centro-direita. Javier Milei, de extrema-direita, que foi candidato a deputado pela cidade de Buenos Aires, superou todas as expectativas com quase 14% dos votos portenhos. Para se ter uma noção mais definida, ficou atrás somente da Frente de Todos, com 24,5%, e do Juntos por el Cambio, com 48%. Alguns dirão, com razão, que Milei é fenômeno de uma cidade elitizada como é Buenos Aires. Mas é bom lembrar também que o que acontece por lá muitas vezes ecoa para todo o país posteriormente. Macri é um exemplo.
Analisando o resultado das Paso
Levemos em consideração o seguinte: a frente ampla construída para se derrotar a centro-direita em 2019 teve – e continua a ter – os seus méritos. Foi por se entender entre si, que o campo peronista retomou parcialmente as rédeas de um país vendido completamente ao financeirismo e aos desmandos do capital internacional.
O que observamos hoje em dia, no entanto, é um grande descontentamento com os rumos do país que, além da herança de dívidas e miséria, enfrenta a pior calamidade sanitária dos últimos cem anos. Esse sentimento popular já era captado por setores do governo que se manifestavam publicamente em desacordo com os rumos econômicos e políticos adotados pelo presidente.
Assim, há basicamente dois polos em disputa dentro do governo argentino: o primeiro, liderado pelo presidente Alberto Fernández e que tem o ministro da economia Martín Guzmán como principal expoente, representa a ala governista que está mais preocupada em equilibrar a economia, conter a inflação e renegociar a dívida. Eles argumentam que é preciso primeiro reestruturar as contas do país e que, se isso não for feito, qualquer medida emergencial será em vão no futuro. O outro é liderado pela ala capitaneada pela vice-presidenta Cristina Kirchner, que faz um alerta: há um povo miserável que precisa urgentemente de atenção. E mais: com a experiência de ter sido duas vezes presidenta da nação, sabe que os tempos políticos são diferentes dos tempos econômicos.
A ala kirchnerista representa algo que transcende à figura de Cristina, é bom que entendamos. Cristina, na verdade, encarna o emblema de um peronismo de enfrentamento do capital, que reestatizou as Aerolíneas Argentina, a YPF (empresa de petróleo) e a previdência nacional. Não é pouco. Esse peronismo evoca a mística das massas, o encantamento social e a imaginação política como armas de uma corrente histórica contra um capital despolitizante.
Não é surpresa, portanto, que a postura conciliatória de Alberto seja encarada por esta ala como algo que a faz perder justamente o seu grande trunfo enquanto movimento social: o enfrentamento. No entanto, há que se considerar que a estratégia adotada e acordada pela própria ala kirchnerista foi a de escolher alguém que pudesse conter a divisão de um país e mediar a sociedade.
Passadas as prévias, foi a própria Cristina Kirchner, ao lançar uma nota pública endereçada ao presidente, que fez incendiar a república. Na carta, expõe o que já havia dito anteriormente: suas críticas a parte da política econômica, aos ajustes fiscais e ao porta-voz da presidência (que renunciou em seguida). Desta forma, Cristina trouxe simbolicamente a insatisfação para dentro do campo peronista, fazendo com que Milei, Macri e Larreta ficassem em segundo plano nas discussões nacionais. Com isso, também buscou recuperar a militância carente do enfrentamento, que estava submersa sob o manto de um legalismo frio e sem aderência popular.
A reação foi imediata: seis ministros foram trocados, incluindo o Chefe de Gabinete[2] e o Porta-voz da Presidência, já circulam informações de que o governo fará um aumento escalonado de 45% no salário mínimo e o início de 25 obras públicas em 15 províncias do país.
Como esse cenário se relaciona com o Brasil?
Brasil e Argentina vivem conjunturas parecidas, numa escala temporal de médio prazo, mas com situações que despontam em momentos diferentes de cada país. Em 2018, quando Bolsonaro foi eleito, a Argentina estava sob o governo Macri que, numa análise generalizante, poderia ser comparado a uma clássica administração do PSDB: liberal, mas com algum verniz democrático. Naquele momento, talvez ainda não estivesse tão forte essa característica fascista ultraliberal que, no Brasil, já estava clara na junção de Bolsonaro e Paulo Guedes.
Por outro lado, a frente ampla contra o neoliberalismo que a Argentina construiu muito se assemelha ao que ainda se tenta realizar por aqui para derrotar o bolsonarismo. O que se percebe, passado quase a metade do governo de Alberto, no entanto, é que há uma diferença entre vencer, governar e garantir apoio popular por longo prazo.
Se fizermos um exercício comparativo abstraindo algumas variáveis que obviamente separam os dois países, poderíamos apontar alguns cenários possíveis para o futuro, se lograrmos vencer as eleições com uma configuração parecida aos nossos vizinhos.
A primeira, e mais importante, é achar que um governo de frente ampla, calcado unicamente na mediação entre mercado financeiro e necessidades populares, será suficiente para manter mobilizada uma população que, porventura, lhe garantirá a vitória nas urnas. É um erro achar que a estrutura eleitoral – e mesmo a governabilidade institucional no Congresso – basta para ter o apoio do povo durante o exercício do mandato.
Há uma crescente insatisfação por conta de um cenário caótico, talvez o pior momento de nossa histórica republicana pós-redemocratização, que favorece o campo progressista nas próximas eleições. Mas, isso faz parte de um cálculo que tem validade para janeiro de 2023. Da mesma forma que Alberto e Cristina, ao herdarem uma crise provocada pela sanha privatizante de Macri, assumiram com o tempo a sua paterniadade/maternidade, o mesmo ocorrerá com o/a presidente/a brasileiro/a empossado daqui a pouco mais de um ano.
A lição que tiramos da Argentina é que o projeto de longo prazo deve necessariamente passar por mobilizar as massas e mexer com o inconsciente coletivo para retomar não uma maioria de ocasião, mas disputar corações e mentes que, queiramos ou não, seguem fortes com o bolsonarismo.
A aposta por um governo que se baseie unicamente numa institucionalidade fria ou em cálculos estritamente eleitorais esgotará rapidamente como um plano de meta curta. A insistência de uma classe média ilustrada e a vontade de uma elite liberal que vier a embarcar no projeto não podem dar as cartas por muito tempo. É preciso recriar o envolvimento popular genuíno, independente das críticas que a mídia corporativa, e também liberal, seguramente fará ao que chama de “populismo”. Nós sabemos bem a qual projeto pertencem os que usam esse adjetivo como termo unicamente pejorativo.
São preocupantes as manifestações de setores da esquerda que insistem em levantar a bandeira da razão contra um delírio bolsonarista e que entendem o campo religioso como algo a ser superado. Delírio é pensar, como parte expressiva da ala progressista faz, que Lula já esteja eleito e que Bolsonaro seja carta fora do baralho. Foi este delírio da esquerda que ajudou Bolsonaro a vencer: negando a realidade bem diante dos nossos narizes. Agindo desta forma, abarcaremos somente parte da classe média e muito pouco do campo popular.
Passado o período eleitoral, o governo precisa manter o espírito de indignação ao seu lado. Não podemos cair na tentação da burocracia mais uma vez, ou em resumo: não devemos agir somente como a ala de Alberto Fernández, na Argentina. Para além de qualquer mediação ou frente ampla, é papel da militância evocar, e cultivar, a mística das ruas.
Victor Moreto, historiador pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutorando em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA).
[1] A cidade de Buenos Aires funciona como sede do governo federal e, desde 1996, possui status de “cidade autônoma”, funcionando como uma espécie de Distrito Federal. O nome do cargo de Larreta é oficialmente “jefe de gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires”.
[2] Equivalente ao cargo de Ministro Chefe da Casa Civil, no Brasil.