O Brasil como reflexo inevitável da América Latina
O objetivo desta série que se inicia com este artigo-manifesto é justamente trazer as vozes latino-americanas que falam por si mesmas e os pensamentos críticos acerca do neoliberalismo que nos corrói a possibilidade de integração
Sol de Alto Perú, rostro Bolivia, estaño y soledad
Un verde Brasil, besa mi Chile, cobre y mineral
Subo desde el Sur hacia la entraña América y total
Pura raíz de un grito destinado a crecer y a estallar
Mercedes Sosa, Canción con todos
Alguns dizem que é pela língua, outros pelo tamanho continental. O fato é que o Brasil talvez seja o país mais distante de uma identidade latino-americana em toda a região. Uma pesquisa de 2015, realizada pela Universidade de São Paulo (USP) e publicada pela BBC, revelou que apenas 4% dos brasileiros se identificavam como “latino-americanos”, ainda que 66% acreditassem que fôssemos nós os mais indicados para representar a América Latina no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Além de demonstrar um descolamento perigoso para um país com tamanha relevância regional nas áreas cultural, geográfica e econômica, o desconhecimento sobre nossos vizinhos nos torna mais vulneráveis, como cidadãos, ao não percebermos que somos parte de um cenário semelhante e que muitas vezes estamos submetidos a papéis muito parecidos no contexto do capitalismo global.
Porque se é certo que este desconhecimento faz com que não nos consideremos pertencentes à mesma realidade regional, o mesmo não pode ser dito do olhar do Norte sobre nós. Desde os adjetivos preconceituosos até os golpes militares do século passado, todos nós desempenhamos funções de exportadores de commodities, no plano econômico, e padecemos de elites locais que cultuam, e mantêm, uma ideologia neoliberal quase perpétua.
Já não existe um Plano Condor, como ocorrido na década de 1960/1970, quando a inteligência dos Estados Unidos fez da América Latina um centro de tortura através do consórcio das elites dirigentes nacionais com contraditórios exércitos que juravam as bandeiras de seus países à luz do dia, e vendiam suas soberanias na calada da noite.
No século XXI, os generais foram atualizados em promotores e juízes, e o funcionamento do aparato de controle dos projetos emancipatórios latino-americanos já não atende a misteriosos “telefones vermelhos” diretamente dos Estados Unidos. A sofisticação reside na pulverização e na introjeção da ideologia neoliberal nas próprias instituições públicas – notadamente o Judiciário – desfazendo-se os rastros da subjugação a vontades externas e transformando a perseguição em legítimos anseios nacionais de um senso comum que luta “contra a corrupção”.
Claro que a ideologia de subserviência ao mando do capital financeiro internacional, e consequente perseguição a políticos progressistas, ainda está arraigada à mentalidade de muitas instituições militares e, certamente, ter as Forças Armadas como patrocinadoras deste status quo neoliberal é indispensável. Há algumas semanas, por exemplo, o general Villas Bôas revelou em um livro que a alta cúpula do Exército se reuniu por horas com o objetivo de pressionar o Supremo Tribunal Federal do Brasil a não aceitar o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula em 2018, o que foi feito através de uma postagem no Twitter pelo próprio militar.
No entanto, como a própria história relatada pelo general também sublinha, é o Judiciário que possui as principais rédeas do processo histórico atual. Assim, vamos fazer um pequeno passeio pelo continente para analisar o que se passa na região.
Um pequeno recorrido político
Não foi só no Brasil que a direita rasgou o pacto constitucional reiteradamente desde o golpe de 2016. No mesmo período, na Argentina, a ex-presidenta (2007-2015) e atual vice-presidenta da República, Cristina Kirchner, enfrenta ações espetaculosas que vão desde acusá-la de ocultamento de patrimônio até de envolvimento em um assassinato de um procurador federal.
A primeira acusação fez com que tratores, a mando da justiça, escavassem ao redor de uma propriedade rural de um empresário, buscando por “contêineres repletos de dinheiro” que, segundo as denúncias, formariam o que se chamou de “a rota do dinheiro K”, em referência a uma suposta ilegalidade dos Kirchner, através de propinas secretas e milionárias. Isso tudo sob as câmeras de emissoras de TV locais que sempre fizeram oposição carnal ao seu governo e ao do seu ex-marido, Néstor Kirchner.
Nada encontraram.
Em outra ação, o juiz Claudio Bonadio – análogo argentino de Sergio Moro – julgava com clara intenção de incriminar a atual vice-presidenta. A acusação? Que Cristina teria acobertado os terroristas que explodiram a sede da Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, por um suposto acordo por baixo dos panos entre Argentina e Iran.
A denúncia, feita pelo então procurador federal Alberto Nisman, ganhou ares cinematográficos quando, em 2015, o mesmo procurador apareceu morto com um tiro na testa em sua própria residência. A grande mídia local e a justiça passaram não só a relacionar a ex-presidenta no encobrimento de um atentado terrorista, como agora chegava ao ponto de tratá-la como mandante de um assassinato.
Nunca existiram provas de nenhuma dessas acusações, ao contrário: no caso do procurador, todas as perícias indicaram tratar-se de um suicídio, mas Cristina Kirchner só não foi presa, entre todas as ações que enfrentou (e enfrenta), porque tinha imunidade como senadora. O caso rendeu uma minissérie documentário na plataforma Netflix chamada “Nisman: O Promotor, a Presidente e o Espião”.
No Equador, o ex-presidente Rafael Correa (2007-2017) foi condenado a 8 anos de prisão por supostas propinas recebidas da empresa brasileira Odebrecht. Sim, denúncia análoga à que baseou a prisão de Lula no Brasil. A evidência? Um depósito de 6 mil dólares que Correa e seus advogados demonstraram ser do fundo partidário. Por fim, Correa vive refugiado na Bélgica e tem a pena vitalícia de não poder candidatar-se a nenhum cargo político em seu país. E caso retorne ao Equador, será imediatamente preso.
Seu aliado e ex-vice-presidente do governo atual de Lenín Moreno, Jorge Glas (2013-2018), encontra-se em custódia neste momento pelo mesmo motivo: condenado por denúncias de corrupção envolvendo a Odebrecht.
No Peru, o ex-presidente Ollanta Humala (2011-2016) foi preso por um ano e meio, também por acusações sobre supostas propinas recebidas da Odebrecht, em um desdobramento da Lava Jato naquele país. Chama atenção que os principais contratos assinados com a empresa brasileira tenham sido realizados ainda durante as gestões de Alan García (1985-1990/2006-2011) e Alberto Fujimori (1990-2000).
A Bolívia seguiu um roteiro mais explícito de ruptura institucional, inclusive com participação direta das forças militares no processo. Em 2019, milícias da extrema-direita boliviana, juntamente com policiais amotinados, instauraram um cenário de caos em La Paz e em outras cidades. A reação das Forças Armadas, em nome de seu comandante Williams Kaliman, não foi a de conter os protestos anti-democráticos, mas, ao contrário, de “sugerir” que Evo Morales, então presidente do país (2006-2019), deixasse o posto juntamente com seus correligionários.
Morales primeiro foi exilado no México e, meses depois, o recém-eleito presidente da Argentina, Alberto Fernández, o convidou para permanecer mais próximo de sua terra natal, cumprindo seu exílio em solo argentino. Tal atitude rendeu a Alberto a recente indicação ao Prêmio Nobel da Paz, inclusive.
Os processos de criminalização de governos progressistas da região seguiram caminhos desconfortavelmente parecidos, quando não praticamente idênticos – como nos exemplos de Brasil, Equador e Peru. Mais do que isso: em todos os casos, a sequência dos fatos foi a instauração de governos extremamente alinhados à ideologia neoliberal.
No Brasil, após o golpe jurídico-parlamentar de 2016 que destituiu Dilma Rousseff da presidência (2010-2016), Michel Temer – e, logo, Jair Bolsonaro – foram responsáveis por uma agenda degradante de reformas que levou a condição de vida dos trabalhadores brasileiros a patamares mais baixos do que o que existia antes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943.
Casos semelhantes aconteceram na Argentina com Maurício Macri (2015-2019); no Equador, com Lenín Moreno (2017-2021); no Peru, com Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018); na Bolívia, com Jeanine Áñez (2019-2020). Todos, sem exceção, governaram sob o manto do neoliberalismo e com o consentimento das grandes mídias locais após a inviabilização de governos, destruição de reputações políticas e/ou cassação das principais candidaturas progressistas na região.
Importante destacar que as mesmas justiças que encarceraram políticos progressistas baseadas principalmente no instituto da “delação premiada”, sem a necessidade de provas materiais, deixaram livre uma enxurrada de processos contra políticos da direita e da extrema-direita latino-americana.
Mauricio Macri e sua família, por exemplo, aparecem no escândalo do Panama Papers com milhões de dólares em contas de paraísos fiscais na Europa, com denúncias de lavagem de dinheiro, mas o caso não recebe, nem de longe, a mesma atenção da justiça argentina, nem muito menos da grande imprensa.
Contra Aécio Neves (PSDB-MG), até há pouco tempo a grande aposta da direita liberal brasileira, existem provas, inclusive de vídeo, mas seu paradeiro foi esquecido e ele continua deputado federal e convenientemente no ostracismo midiático.
Esses casos fizeram com que um termo jurídico, até então pouco conhecido, fosse difundido por aqui: lawfare. Trata-se da junção das palavras em inglês “law” (lei) e “warfare” (guerra) e significa usar a lei como arma, desvirtuando da função jurídica do devido processo legal e do contraditório.
Juízes que deveriam respeitar o princípio básico da imparcialidade combinando sentenças com procuradores que nunca poderiam tratar o acusado como um inimigo a ser abatido. O que a “vaza jato” mostrou – e ainda mostra – é talvez a maior degradação do Direito desde os Atos Institucionais outorgados pela ditadura militar (1964-1985).
A coincidência de relatos de políticos e empresários que delataram figuras importantes no contexto de processos judiciais para salvar suas peles é assombrosa. No Brasil, as delações do ex-ministro Antonio Palocci contra Lula assemelham-se muito com as de Leonardo Fariña, contra Cristina Kirchner: ambas careciam de provas concretas, mas foram, mesmo assim, usadas para incriminar os ex-presidentes, ainda que renomados juristas, como o penalista Eugenio Raúl Zaffaroni, advertiram sobre a ilegalidade do procedimento.
Aliás, não é só o lawfare, o neoliberalismo radical e a concentração midiática que nos une na precária condição latino-americana de democracia. Os golpes revelaram as vísceras de uma misoginia, de um elitismo e de um racismo por parte das elites dirigentes desses países durante todo o processo.
Lula era chamado de “nine” (nove, em inglês) em referência aos nove dedos que o ex-presidente tem nas mãos, além de diversas insinuações preconceituosas em relação aos seus “hábitos de pobre”, pelos próceres da Lava Jato, como mostraram as mensagens divulgadas pelo hacker Walter Delgatti. Dilma Rousseff foi agredida na sua condição de mulher, em sua sexualidade e na sua inteligência. Cristina Kirchner foi – e é – chamada de “égua” e de “burra” pela direita macrista. Añez referia-se a Evo Morales e aos indígenas da Bolívia (que é a maioria da população) com desprezo, exatamente o mesmo tipo de ofensas que Pedro Pablo Kuczynski cometia à população originária do Peru.
Algo simples e simbólico que representa o quão próximos estamos no espaço-tempo latino: a direita argentina chama os trabalhadores, que se manifestam em favor do peronismo, pejorativamente de choripaneros. “Choripan” é literalmente pão com linguiça, alimento de clara pertença popular. Os choripaneros, ou melhor, choriplaneros, – porque eles seriam parte de um “plano” – representariam o mesmo que os “pão-com-mortadela” no Brasil: escancarando o desdém da elite pelos movimentos sociais e pelos sindicatos. Em suma: pelo povo.
No subterrâneo da palavra
O neoliberalismo sobrevive na invisibilidade que permeia o senso comum. Ele politiza despolitizando. Sabendo-se perdedor da batalha eleitoral na América Latina durante toda a década de 2000, o capital financeiro mudou de estratégia e passou a investir no campo jurídico. Justamente porque ele é a política invisível. Mais: é a política com o manto da imparcialidade.
Não são mais os bandeirosos tanques de guerra na praça, nem engomados políticos sem carisma e sem voto, mas magistrados decidindo, por meio da justiça “cega”, os destinos de uma nação. Junte-se a isso uma narrativa quase única nos grandes veículos de comunicação criminalizando a política. O resultado é o esvaziamento das discussões políticas e a infantilização de argumentos de grande parte da sociedade civil.
No vácuo de um ambiente que desincentiva o debate, mas favorece a polarização, intensifica-se uma disputa de narrativas que desmerece a discussão política. O risco é justamente o cenário que irrompe no Brasil: um sentimento “anti-político” espraiado na população, oferecendo as melhores condições sociais para o fortalecimento do fascismo.
É perceptível em nossa região as campanhas de extrema-direita ganhando corpo e densidade, não raro usando as mesmas terminologias que estamos acostumados a ver e a ouvir por aqui. A pandemia causada pela Covid-19 deixou ainda mais evidente essas semelhanças, principalmente com a reação de expressivos setores da sociedade que marcharam contra a quarentena e/ou que taxaram o isolamento de “ditadura”, como é o caso do termo “infectadura”, cunhado pela extrema-direita argentina, referindo-se às medidas do governo federal para conter o vírus.
A estratégia do capital financeiro de minar o campo político para embarcar em qualquer alternativa que patrocinasse o neoliberalismo extremo é o retrato do que significa a América Latina hoje em dia: uma terra arrasada, em maior ou menor grau, empobrecida e com um retrocesso civilizacional que tardará muitos anos para se equilibrar minimamente.
Por uma resistência comum
Importante frisar, no entanto, que há indícios de uma interrupção na onda conservadora/neoliberal na região. A Argentina elegeu o peronista progressista Alberto Fernández, com Cristina Kirchner como vice-presidenta, em 2019; na Bolívia, Luis Arce, partidário do Movimiento al Socialismo (MAS), o mesmo de Evo Morales, foi eleito presidente em 2020; o Chile está em ebulição social contra a constituição neoliberal que remonta à época de Augusto Pinochet (1974-1990) desde 2019; e, neste momento, o Equador está indo às urnas no segundo turno da disputa presidencial com Andres Arauz, candidato de Rafael Correa, em primeiro lugar.
É nítido também que o interesse pelas questões latino-americanas vem crescendo entre os brasileiros, vide o caso do golpe de Estado na Bolívia em 2019, as eleições na Argentina no mesmo ano e, claro, a conturbada e polêmica questão venezuelana. Todos esses eventos foram acompanhados mais de perto por uma parcela muito maior da população brasileira do que vinha ocorrendo no passado.
Assim, quando se fala em “latino-americanidade”, já está subentendido um projeto progressista. Isso porque nossa história é a história de luta de uma região que busca se integrar e se fortalecer pela cooperação do espaço. Desde Simón Bolívar e San Martín, a causa panamericana é a busca pela unidade.
Ao mesmo tempo, a relação da Europa e dos EUA com a nossa região sempre foi a de nos apartar: seja pela ação direta de seus exércitos, ou pela motivação interna de nossas elites que, em nome de uma modernidade encomendada, sempre serviu como polo ideológico entreguista.
Essa representa, de certa forma, a continuidade de um projeto que se iniciou com as invasões coloniais, passou pelo rentável e genocida tráfico negreiro, até a exportação de matérias-primas que hoje conhecemos como commodities.
A luta pela latino-americanidade é também uma disputa pela narrativa da verdade, e nisso se inclui o que chamamos de ciência. É necessário, para a manutenção do domínio do Norte, que cultuemos os saberes e valores europeus/estadunidenses de forma inconteste. Basta ver que há bem pouco tempo aprendíamos nas escolas que o Brasil fora “descoberto” e que os “índios” perderam a batalha da civilização porque suas culturas eram “inferiores”.
Por isso, quanto mais nos inteiramos sobre a realidade logo além de nossas fronteiras, mais nos lembramos da lição do antropólogo Gilberto Velho: é preciso estranhar o familiar e familiarizar o estranho.[1]
No caso do Brasil, quando nos deparamos com os atuais desafios da América Latina, o que é “estranho” torna-se sensivelmente familiar, seja nas adversidades (lawfare, neoliberalismo, conservadorismo etc.), seja na capacidade de reação a partir de parâmetros em comum (movimentos sociais organizados, luta por ampliação de direitos de minorias, defesa dos trabalhadores etc.)
Portanto, o objetivo desta série que se inicia com este artigo-manifesto é justamente trazer as vozes latino-americanas que falam por si mesmas e os pensamentos críticos acerca do neoliberalismo que nos corrói a possibilidade de integração.
Por aqui, leremos pesquisadoras/es, ativistas e professoras/es de todo o mundo –principalmente da América Latina – que se debruçam sobre a região. O propósito desta seção é servir como uma lente de aumento, que aproxima e afasta, particularizando e homogenizando nossas culturas. É uma contribuição com base não só num sentimento de coletividade, mas em um sentido estratégico: reconhecermo-nos como latino-americanos é sobretudo uma tática de defesa.
Victor Moreto é historiador pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutorando em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Pesquisa a difusão de discursos na grande mídia e a produção de subjetividades no contexto das eleições de Mauricio Macri e Jair Bolsonaro.
[1] “Observando o familiar”. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.