O Rio e a lição de Porto Alegre
Ao unir todas as regiões da cidade, o movimento pelo atraso no pagamento do IPTU é uma resposta poderosa à arrogância do prefeito César Maia. Mas precisa evoluir, para não ser cooptado por oportunistas. Uma boa alternativa pode estar no Orçamento ParticipativoElizabeth Carvalho
Alguma coisa de novo acontece entre a população do Rio de Janeiro, para além das inúteis passeatas de gente vestida de branco, clamando por uma paz inalcançável nesta cidade há tanto tempo partida, há tanto tempo dissociada da união exemplar de suas multidões em momentos decisivos de um passado não muito remoto da história brasileira.
Pouco a pouco, parece ganhar corpo um movimento promissor de protesto contra o pântano por onde escorrega o cotidiano de mais de 6 milhões de habitantes, que se movimentam no cáos das ruas escuras e cheias de buracos, das praias sujas e mal-cheirosas, dos parques e jardins abandonados, dos hospitais de uma rede de saúde deteriorada, das escolas onde alunos se espremem em salas de aula superlotadas por não mais que três horas diárias, da ocupação desenfreada de seus morros e encostas, da violência diária, da precariedade de serviços públicos. O Rio de Janeiro, o cartão postal do Brasil, a segunda maior cidade do país e a terceira da América do Sul, é hoje uma cidade encardida, degradada. Uma cidade onde os cariocas vão perdendo boa parte de suas melhores referências. Onde a população não se reconhece mais.
A mobilização que parece esboçar algum fôlego para recuperar este tecido urbano doente está reunindo associações de moradores das zonas norte e sul, leste e oeste, em torno da campanha “IPTU, não pago, e daí?”, uma paródia ao comportamento contumaz de arrogância e desinteresse de um prefeito que — é bom lembrar — mal se sentou na cadeira de seu gabinete, em 2005, com o voto de confiança de mais da metade dos cariocas, e já estava declarando, sem nenhum pudor, a ambição (frustrada) de renunciar ao cargo para se candidatar à presidência da República.
Se a campanha sair vitoriosa, o povo do Rio terá realizado um ato não apenas de rebeldia, mas também de prevenção: a idéia de convencer os contribuintes a adiarem o pagamento do Imposto Territorial Urbano para o final de 2008 não apenas reafirma um protesto contra o uso indevido de uma arrecadação que, no ano passado, somou quase um bilhão e meio de reais, como também um obstáculo para impedir que esse dinheiro em caixa possa eventualmente servir à campanha eleitoral de um sucessor no apagar das luzes da atual administração.
A vitalidade política que marcou o Rio nos bons tempos, e ecoava para o resto do país
Essa retomada do velho e bom princípio de que a união faz a força pode devolver ao Rio a vitalidade política que, nos bons tempos, costumava ecoar para o resto do país. Pode representar um poderoso antídoto contra o desânimo e a letargia de um povo que navega hoje à deriva, num mar de trevas político, a apenas nove meses das próximas eleições municipais. Mas pode também cair no vazio e sucumbir no velho oportunismo eleitoreiro que já começa a rondar a campanha, se não tiver fôlego para produzir algumas mudanças nas regras da relação entre o Estado e a sociedade civil, de construção de uma nova consciência política na vida administrativa da cidade.
Porto Alegre, não faz muito tempo, conseguiu. No final dos anos 80, um saudável casamento de mobilização popular com um novo governo progressista foi capaz de produzir um modelo inédito de democracia participativa que, em duas administrações, conseguiu estender a água potável à totalidade da população, dobrou seu sistema de esgotos, triplicou o número de matrículas nas escolas, reduziu sensivelmente o número de favelas e se tornou a capital brasileira com melhor qualidade de vida e a segunda que atrai mais investimentos. Seu moderno modelo de Orçamento Participativo (OP), nascido na primeira administração do PT de Olívio Dutra, já foi adaptado para mais de 200 municípios
brasileiros. Chegou a Montevideu, Cordoba e Caracas na América Latina, e tem sido experimentado em mais de 50 cidades européias (entre elas Barcelona, Cordoba e Rubi na Espanha; Saint-Denis, Morsang-sur Orge e Bobigny, na França, Palmela, em Portugal, Mons, na Bélgica, Pieve Emanuele, na Itália). É surpreendente que os cariocas, teoricamente um povo bem informado, não tenham até hoje a menor idéia de como funciona na prática esse mecanismo.
Em linhas gerais, o OP significa a participação mais direta dos cidadãos na decisão de como os recursos da cidade devem ser distribuídos. Seu ciclo anual vai de março a dezembro. Começa com reuniões de moradores nas 16 regiões em que a cidade foi dividida para este fim. Analisam o relatório de prestação de contas da administração municipal, definem as prioridades de investimentos e elegem seus delegados para o Conselho do Orçamento Participativo, que vão fiscalizar as deliberações aprovadas. Depois, começam os fóruns temáticos, reunindo grupos de acordo com a preferência e a familiaridade do participante com o a área de atuação (saúde e assistência social, educação, cultura e lazer, desenvolvimento econômico e tributação, organização da cidade, desenvolvimento urbano e meio ambiente, segurança transporte e circulação), para melhor aproveitar o potencial dos técnicos no processo de planejamento da cidade.
Em julho acontece a assembléia geral da cidade, onde são apresentadas as prioridades de cada região. Em setembro, a proposta orçamentária é aperfeiçoada e entregue à Câmara dos Vereadores para votação. Chega-se a dezembro com o processo concluído e pronto para ser aplicado no ano seguinte e seguido de perto pelos técnicos da prefeitura e do Conselho da OP, que vão acompanhar passo a passo a efetiva aplicação dos recursos de acordo com os critérios e prioridades definidas pela população.
Nas duas últimas décadas, o OP de Porto Alegre atravessou altos e baixos. Mas é uma conquista irreversível
Pela via política tradicional, o prefeito apresenta a proposta orçamentária a Câmara Muncipal e ela decide sobre a aprovação ou possíveis alterações. Com o OP, é a população que prioriza os investimentos. Os vereadores votam, mas sob a pressão da vontade popular, sob um maior controle social. O resultado é autonomia para desenvolver e modificar regras durante o próprio processo; objetividade, porque cada pessoa envolvida conhece o assunto que trata; transparência, porque os números do orçamento estão disponíveis para a população, e implementação efetiva das decisões tomadas.
Nas duas últimas décadas, o OP de Porto Alegre atravessou altos e baixos. Teve grandes momentos de impulso e realizações e outros menores, mais enfraquecidos. O momento atual parece exigir resistência às tentativas de esvaziamento que vem sofrendo por parte da administração Fogaça, como revelam os relatórios das assembléias regionais e temáticas de 2007. Mas é uma conquista irreversível. A semente de organização da sociedade civil e de seu maior engajamento político rendeu frutos que dificilmente poderão ser subtraídos dos cidadãos de Porto Alegre.
As lideranças comunitárias cariocas têm muito a aprender com essa experiência e deviam inclui-la na pauta das discussões das próximas eleições do Rio. Inclusive a possibilidade de criação de novos mecanismos de fiscalização, que garantam à população o direito de acompanhar a execução de despesas fixas do orçamento que não estão incluídas nela.
A médio prazo, mais eficaz do que coletar assinaturas para pedir ao Ministério Público e à Câmara dos Vereadores uma inv