O Sudão e a Argélia reacenderam a chama da Primavera Árabe?
Os movimentos populares que se opõem aos regimes argelino e sudanês contrastam com a regressão contrarrevolucionária que atravessa o mundo árabe desde o início da década. Em ambos os casos, os poderes constituídos sob bases militares não podem conduzir eles próprios uma transição destinada a eliminar sua influência no Estado e em seus recursos
Nos últimos meses, as notícias vindas do mundo árabe voltaram a ser dominadas por imagens de mobilizações populares que lembram a onda de choque revolucionário que sacudiu a região em 2011. Revoltas se iniciaram no Sudão, em 19 de dezembro 2018, e na Argélia, com as grandes marchas da sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019. Em uma ilustração impressionante da teoria do dominó, elas reviveram a memória da primeira fase, maciça e pacífica, das convulsões vividas, há oito anos, por seis outros países da região: Tunísia, Egito, Bahrein, Iêmen, Líbia e Síria.
Desta vez, porém, os comentaristas têm sido mais cautelosos, a maioria deles formulando seus julgamentos de um modo interrogativo, como o título deste artigo. O motivo de tal comportamento é a amarga desilusão que sucedeu à euforia da Primavera Árabe de 2011. A repressão da revolta no Bahrein algumas semanas após seu início, com a participação de outras monarquias petrolíferas do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), poderia ter sido uma exceção, dada a natureza bastante especial desse clube de Estados. No entanto, dois anos depois, toda a região entrava em uma fase de refluxo contrarrevolucionário, com uma nova reação em cadeia… em sentido contrário.
Após a ofensiva lançada na Síria, na primavera de 2013, por Bashar al-Assad com a ajuda do Irã e seus auxiliares regionais, veio a instauração, no Egito, de uma ordem estruturada sob a égide dos militares e, na Tunísia, o retorno de parte dos homens do antigo governo. Nesses dois últimos países, o ímpeto revolucionário inicial foi confiscado pelas forças ligadas à Irmandade Muçulmana. Na Líbia e no Iêmen, os remanescentes do antigo regime recobraram a ousadia e fizeram alianças oportunistas com grupos que tinham tomado o trem da revolução em marcha e que, como eles, eram hostis à Irmandade Muçulmana, a fim de tentar tomar o poder pela força, mergulhando ambos os países na guerra civil. O entusiasmo deu então lugar à melancolia do que passou a ser descrito como “Inverno Árabe”, em um cenário de avanço regional do empreendimento terrorista totalitário denominado Organização do Estado Islâmico. Embora esse último avatar da Al-Qaeda tenha sido destruído no Iraque e na Síria – enquanto grupos da mesma franquia continuam castigando a Líbia, o Sinai egípcio e áreas para além do mundo árabe –, outros atores da contrarrevolução se mantêm na ofensiva.
O clã Al-Assad ainda controla a maior parte do território sírio, com a ajuda da Rússia e do Irã. No Egito, desprezando o potencial impacto das rebeliões no vizinho Sudão e na Argélia, o regime cada vez mais despótico do marechal Abdel Fattah al-Sissi brindou-se com uma mudança constitucional destinada a permitir que o presidente fique no poder até 2030.1 Seu colega líbio, o general Khalifa Hafter – com o apoio do Egito, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Rússia e França, aos quais os Estados Unidos acabaram também se juntando –, empenha-se desde abril em uma ofensiva militar no oeste do país para completar a conquista do território. A operação atinge o compromisso assumido entre o governo da Líbia e as Nações Unidas, Irmandade Muçulmana, Catar e Turquia, tornando obsoleta a mediação da ONU para uma nova solução consensual. No Iêmen, a guerra civil continua, com consequências fortemente agravadas pela intervenção criminosa da coalizão liderada pela Arábia Saudita e os Emirados. Nada permite cultivar esperanças de uma paz duradoura nem de reunificação desse país pobre em um futuro próximo.
Um protesto condenado a se perpetuar
Dada essa permanência da degeneração contrarrevolucionária, as agitações no Sudão e na Argélia, em vez de aparecerem como uma nova Primavera Árabe, continuam até o momento isoladas em um contexto indefinido e contraditório. Elas podem tanto crescer e se espalhar como serem brutalmente interrompidas. E o destino da região depende muito do que acontecerá com os movimentos populares nesses dois países.
O que é certo é o fato de a explosão de 2011 ter sido apenas a primeira fase de um processo revolucionário de longo prazo. Nessa perspectiva, o termo “Primavera Árabe” pode ser utilizado desde que não no sentido de uma fase de transição democrática de curta duração e relativamente pacífica, como muitos esperavam em 2011, mas como o primeiro momento de uma cadeia de “estações” destinadas a durar muitos anos, até muitas décadas.
O imperativo no mundo árabe, na verdade, não é a adaptação do sistema político a uma sociedade e a uma economia que chegaram à maturidade – como o que se viu nos países da América Latina ou do Leste Asiático, cuja modernização política veio completar a modernização socioeconômica. Aqui, trata-se antes de eliminar um sistema político que bloqueia o desenvolvimento econômico e social desde os anos 1980. O sintoma mais proeminente disso é o desemprego dos jovens, indicador no qual a região é há muito tempo líder entre os principais grupos geopolíticos do planeta.2
Nessa perspectiva, o ponto de ebulição alcançado em 2011 só poderia levar a um novo período de estabilidade duradoura por meio de uma mudança radical nas orientações econômicas. Mas essa ruptura era inconcebível sem uma mudança sociopolítica que pusesse fim aos sistemas estatais responsáveis pelo bloqueio. Sem isso, a contestação, em vez de ser reabsorvida, estaria condenada a se perpetuar e até mesmo a se intensificar, na medida em que a desestabilização criada pela Primavera Árabe só poderia agravar a fadigada economia geral. Os fatos confirmaram isso: apesar da ofensiva contrarrevolucionária, diversos países do mundo árabe têm passado por novos e fortes surtos de febre social desde 2011.
É o caso da Tunísia, muitas vezes apresentada como exemplo de sucesso da Primavera Árabe, porque soube preservar suas conquistas democráticas. Mas, mesmo que isso seja geralmente ignorado em benefício de considerações extasiadas a respeito de uma suposta diferença “cultural” – em razão sobretudo da persistência de um Estado tunisiano ao longo dos últimos três séculos –, a “exceção tunisiana” está ligada principalmente ao papel desempenhado pela União Geral dos Trabalhadores da Tunísia (UGTT), único movimento trabalhista organizado e ao mesmo tempo autônomo e poderoso do mundo árabe.3 O país continuou sendo abalado por erupções sociais, locais e nacionais, entre elas a de Kasserine, cidade no centro do país, em janeiro de 2016, e as grandes manifestações de janeiro de 2018. Entre os outros países da região onde surgiram movimentos sociais de grande amplitude desde 2011, figuram o Marrocos, particularmente na região do Rif, desde outubro de 2016; a Jordânia, especialmente na primavera de 2018; e o Iraque, de maneira intermitente desde 2015. Quanto ao Sudão, ele passou por diversas ondas de protesto social desde 2011, incluindo a de 2013, severamente reprimida.
Em todos esses lugares, as questões do emprego e/ou do custo de vida estão no centro das reivindicações. Esses problemas foram muitas vezes agravados pela mão muito visível do FMI, a qual se mostrou de uma lealdade inabalável ao credo neoliberal que a anima. O órgão exibiu um dogmatismo totalmente contrário às lições da experiência, corroborando a acusação que lhe é dirigida de ter mais relações com a representação dos interesses do grande capital do que com uma racionalidade pragmática. Para o FMI, a implosão do mundo árabe é resultado da aplicação insuficiente de suas prescrições, embora seja claro que ela é uma decorrência direta de tais prescrições, totalmente inadequadas ao contexto regional.
Defendendo o afastamento do Estado e postulando um jamais atestado papel de liderança do setor privado no desenvolvimento, o FMI contribuiu enormemente para produzir a paralisia econômica regional. Desde 2011, a entidade aumentou a pressão sobre os governos para que estes cumpram estritamente seus planos de austeridade. As consequências não demoraram: aos casos citados, pode-se ainda acrescentar a agitação social no Irã, onde causas idênticas deram mais de uma vez resultados similares desde dezembro de 2017, apesar da especificidade do sistema político iraniano em relação a seus vizinhos árabes. Em janeiro de 2018, protestos provocados pelas imposições do FMI agitaram simultaneamente três países da região: Irã, Sudão e Tunísia.
Não é por acaso, aliás, que o único governo que conseguiu impor em bloco as medidas de austeridade exigidas pelo FMI foi o regime autoritário do marechal Al-Sissi. Dessa “terapia de choque” iniciada em novembro de 2016, a população egípcia até agora só experimentou o choque. No entanto, ao contrário dos outros povos da região, ela não se rebelou. Essa letargia decorre tanto do clima repressivo mantido pelo governo como da resignação motivada pela constatação de que os três anos de turbulência, entre 2011 e 2013, serviram apenas para criar um regime que faz ter saudade de Hosni Mubarak.4 E essa resignação agrava ainda mais a ausência de qualquer solução alternativa crível.
A experiência egípcia, no entanto, não foi em vão. Os povos dos países vizinhos aprenderam a lição: eles estão vacinados contra o tipo de ilusão que acometeu os egípcios quando estes forçaram a renúncia de Mubarak, em 11 de fevereiro de 2011, e depois quando derrubaram seu sucessor eleito, membro da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi, em julho de 2013. Ficou claro para todos que, quando os militares constituem a ossatura do poder político, o presidente e seu círculo imediato são apenas a ponta do iceberg. A massa submersa é essencialmente constituída pelo complexo militar-securitário – que parece então conveniente chamar de “Estado profundo”, o que combina bem com a metáfora do iceberg.
Os sistemas políticos do mundo árabe são todos dominados por castas que controlam e exploram os Estados e seus recursos. Esses sistemas dividem-se em duas categorias: famílias que reinam em um contexto monárquico ou pretensamente republicano de apropriação privada do Estado (djoumloukiya, ou “republimonarquia”) e castas militar-securitárias e burocráticas cujos membros gozam do usufruto do Estado em um cenário neopatrimonial. É a diferença entre essas duas categorias que determinou o destino contrastante das insurreições de 2011, não as decisões tomadas por governos cuja fragilidade já foi comprovada.
Presidentes sacrificados pelo exército
Em 2011, nos Estados neopatrimoniais da Tunísia e do Egito, o aparelho estatal foi rápido em se livrar do grupo dirigente, que começou a atrapalhar. Nos Estados patrimoniais, porém, as famílias reinantes não hesitaram em recorrer a seus guardas pretorianos para afogar as insurreições em sangue, precipitando seus países nas guerras civis da Líbia e da Síria, enquanto no Bahrein a intervenção das monarquias do CCG dissuadiu o movimento popular de pegar em armas. O Iêmen estava em uma categoria intermediária: a revolta de 2011 terminou com uma divisão oscilante do poder, que acabaria fatalmente em conflito armado.
O Sudão e a Argélia pertencem, como o Egito, à categoria dos regimes de estrutura militar-securitária. E, como no Egito, os militares acabaram tentando apaziguar a população rebelde sacrificando o presidente. Abdelaziz Bouteflika foi obrigado pelo comando militar argelino a renunciar, no dia 2 de abril; Omar al-Bashir foi deposto pela junta militar sudanesa e preso no dia 11 de abril.
Trata-se de dois golpes de Estado conservadores, semelhantes àquele orquestrado pelos militares no Egito em fevereiro de 2011, quando anunciaram a “renúncia” de Mubarak: golpes por meio dos quais o Exército se livrou da ponta do iceberg para preservar a massa submersa. Do mesmo modo, os militares argelinos e sudaneses entregaram aos manifestantes o círculo próximo ao presidente deposto e os personagens e instituições mais diretamente envolvidos nos abusos e irregularidades do regime. Mas, tanto na Argélia como no Sudão, o movimento popular, que aprendeu com a experiência egípcia (e também com experiências locais anteriores das gerações sudanesas precedentes), não caiu na armadilha. Ele continuou exigindo, com notável tenacidade, o fim do controle do poder político pelos militares e o advento de um governo verdadeiramente civil e democrático.
Esses novos levantes têm em comum a extraordinária amplitude da mobilização e suas modalidades cheias de entusiasmo, na tradição de alegria das grandes revoltas emancipatórias que colocam “a imaginação no poder”.5 Elas também têm em comum a consciência muito clara de que se chocam contra um regime cuja ossatura é constituída pelos militares, portanto não seria seu alto-comando a enterrar tal regime. Tanto na Argélia como no Sudão, a mais alta instância militar se pretende a ponta de lança da mudança revolucionária aspirada pela população, ao modo do Movimento dos Oficiais Livres liderado por Gamal Abdel Nasser em 1952, no Egito, ou do Movimento das Forças Armadas de Portugal, de 1974 – dois casos de rebeliões de jovens oficiais contra sua hierarquia. Mas isso não engana muita gente. Já no Egito, em 2013-2014, a propaganda estatal teve sucesso em apresentar Al-Sissi como uma nova encarnação de Nasser.
Para além dessa semelhança entre as duas revoltas de 2019, há uma grande diferença que as separa, relacionada à natureza de suas lideranças. Esta é uma questão crucial: o óbvio fracasso da maioria das revoltas de 2011, assim como o sucesso parcial da única entre elas cujas conquistas democráticas foram preservadas, tem relação com esse mesmo problema. A Primavera Árabe foi descrita como “pós-moderna” por causa da ilusão de óptica que a fazia parecer um movimento sem liderança. Mas nenhum movimento popular consegue se estabelecer longamente sob tais condições: mesmo aqueles cuja gênese é espontânea devem ter uma liderança caso queiram perseverar.
Compromisso da oposição
Na experiência da Tunísia, os sindicalistas da UGTT tiveram um papel fundamental para a extensão do levante em escala nacional e para a derrubada da ditadura em janeiro de 2011. No Egito, um conglomerado de organizações políticas da oposição iniciou a revolta e assumiu sua liderança até a saída de Mubarak. No Bahrein, membros da oposição política e sindicalistas estiveram na linha de frente. No Iêmen, parte das forças do regime se uniram a forças de oposição para lucrar com o movimento, em detrimento dos jovens revolucionários que tiveram um papel fundamental em seu desencadeamento. Na Líbia, a rápida evolução para um conflito armado deu origem a uma liderança na qual se misturavam antigos e novos oponentes, incluindo dissidentes do regime. A Síria passou pela mais longa experiência de liderança horizontal – o que evidentemente não é o mesmo que ausência de liderança – com a constituição de “comitês de coordenação” que funcionavam por meio das redes sociais, até que o Conselho Nacional da Síria, criado em Istambul sob a égide da Turquia e do Catar, assumiu o papel de líder.
O conjunto formado pela Turquia e pelo Catar conseguiu colocar sob sua tutela todas as revoltas de 2011, com exceção do caso particular do Bahrein. E conseguiu isso graças ao fomento que deu para a Irmandade Muçulmana que, embora não estivesse na origem da revolta em lugar nenhum, logo se juntou a ela e começou a ganhar a liderança. A Irmandade Muçulmana e seus partidários já tinham organizações grandes e bem estabelecidas no Egito e no Iêmen. Apesar de estarem na clandestinidade na Líbia, na Tunísia e na Síria, elas contavam nesses países com uma importante rede que recebia apoio vindo de seus ramos legais ou semilegais de outros países, além de apoio material e televisivo (por meio do canal Al Jazeera) do Catar.
No cenário de fragilidade geral, no espaço árabe, das organizações da oposição liberal (no sentido político do termo) e da esquerda, desprovidas de apoio estatal externo e exauridas pela repressão, a rede da Irmandade Muçulmana e seus simpatizantes chegou ao auge da influência regional em 2011-2012. Ela se beneficiou muito com a realização de eleições de curto prazo na Tunísia e no Egito, chegando ao poder em ambos os países. Já no Marrocos, a monarquia assumiu a liderança e tentou evitar a amplificação do protesto popular iniciado em 22 de fevereiro de 2011, cooptando no governo o ramo marroquino da Irmandade.
Houve apenas uma surpresa: o fracasso da Irmandade Muçulmana nas eleições parlamentares de julho de 2012 na Líbia, onde foi amplamente vencida pela Aliança das Forças Nacionais, coalizão de grupos políticos e ONGs de orientação liberal que ganhou quase metade dos votos (com uma taxa de participação de 61,6%), com perto de cinco vezes mais votos que a Irmandade Muçulmana. Esse resultado veio após o primeiro turno das eleições presidenciais no Egito, em maio de 2012, quando o total de votos dispersos dos dois candidatos dos partidos liberais e de esquerda excedeu o resultado combinado dos dois principais candidatos (o da Irmandade Muçulmana e o do antigo regime), totalizando mais que o dobro da pontuação de Morsi. Isso deu mais uma mostra de que, ao contrário da ideia preconcebida de inspiração orientalista – no sentido de Edward Said6 –, as populações da região não estão “culturalmente” assimiladas àquilo que alguns chamam de “islã político”.
Mais que cultural, o problema é classicamente de ordem político-organizacional. Em primeiro lugar, está em questão a incapacidade de organizar-se em coalizão apresentada pelas forças democráticas – dos liberais (laicos e muçulmanos) à esquerda radical –, que em toda parte traduzem as aspirações majoritárias dos movimentos populares; em segundo lugar, está em questão sua incapacidade de apresentar-se em conjunto como uma alternativa aos dois polos reacionários formados pelos antigos regimes e por seus rivais muçulmanos fundamentalistas. Infelizmente, em todos os países que estiveram na vanguarda da Primavera Árabe de 2011, os grupos de oposição liberal e de esquerda cometeram o erro de ceder a um dos dois polos reacionários para lutar contra o outro, às vezes até passando de um a outro, de acordo com a identificação feita por cada grupo do principal perigo do momento. Isso resultou na marginalização desses grupos no cenário político.
Em grande medida, as revoltas em curso no Sudão e na Argélia estão imunizadas contra sua apropriação pelos fundamentalistas muçulmanos, o que reforça também sua oposição às intrigas militares: a Irmandade Muçulmana foi uma preciosa aliada dos militares no Egito durante os primeiros meses de 2011. Na Argélia, a provação da “década negra” – o confronto sangrento entre o complexo militar-securitário e os fundamentalistas após o golpe de Estado de janeiro de 1992 – fez nascer uma forte desconfiança em relação a esses dois atores. A grande maioria daqueles que se mobilizam nas ruas argelinas desde fevereiro se oporia a qualquer pretensão das forças fundamentalistas de liderar o movimento com tanta ou mais energia do que aquela com que rejeitam a pretensão do alto-comando de tornar-se portador de suas aspirações.
No Sudão, a oposição popular aos dois polos reacionários é ainda mais radical pelo fato de que eles governaram juntos desde o golpe de Estado perpetrado em 1989 por Al-Bashir. Chefe de uma ditadura militar aliada à Irmandade Muçulmana (com altos e baixos), este último era uma combinação de Morsi e Al-Sissi.7 Um dos aspectos mais fortes da insurreição sudanesa – de uma radicalidade política superior à de todas as revoltas ocorridas no mundo árabe desde 2011 – é sua oposição declarada tanto ao poder dos militar quanto ao de seus compadres islâmicos, e a proclamação inequívoca da aspiração a um governo civil e laico, democrático e até feminista.
Tal radicalidade é estreitamente ligada a outra vantagem que contribui para a superioridade do movimento sudanês: sua liderança política excepcional. O movimento argelino é limitado pela própria pluralidade e horizontalidade de suas instâncias organizadoras, nas quais cooperam, por meio das redes sociais, estudantes de ambos os gêneros organizados em seus locais de estudo, grupos da oposição política liberal e de esquerda, coletivos de trabalhadores e profissionais liberais, sem que nenhuma instância possa reivindicar a liderança. Já no Sudão, ninguém contesta o protagonismo das Forças de Declaração de Liberdade e Mudança (FDLC).
Nessa coalizão formada em torno da declaração que lhe dá nome, adotada em 1º de janeiro de 2019, a Associação de Profissionais Sudaneses ocupa um lugar central. Ela foi criada em outubro de 2016, na clandestinidade, por médicos, jornalistas e advogados, aos quais se uniram outros coletivos – professores, engenheiros, farmacêuticos, artistas e, mais recentemente, operários, ferroviários etc. A FDLC também inclui uma ampla gama de forças políticas da oposição, que vai do Partido Nacional Umma – dirigido por Sadiq al-Mahdi, duas vezes primeiro-ministro nos anos 1960 e 1980, liberal e chefe de uma ordem religiosa muçulmana sufi – ao Partido Comunista do Sudão, o maior dos partidos comunistas ainda ativos no mundo árabe (embora consideravelmente enfraquecido desde os anos 1960), passando por movimentos regionais de luta armada contra o regime de Al-Bashir. Dela também participam dois grupos feministas, a iniciativa Não à Opressão das Mulheres e os Grupos Feministas Civis e Políticos, cuja influência é clara no programa da coalizão. Esta pode ser vista, por exemplo, na reivindicação de uma cota de 40% para mulheres na Assembleia Legislativa, defendida pela coalizão. A Associação de Mulheres Democratas também teve um papel significativo no protesto e no processo constituinte da Tunísia, mas ali a reivindicação feminista foi menos central.
David Pilling, jornalista do Financial Times, fez um comentário que, se estivesse em um jornal de extrema esquerda, não passaria impune: “Embora o levante se deva muito à tecnologia do século XXI, com a força organizadora dos smartphones e das hashtags, um movimento que apresenta aspectos ao mesmo tempo laicos e sindicais parece algo retrorrevolucionário. Não podemos saber com certeza como era a Rússia em 1917, quando o czar foi derrubado, ou a França durante os dias de entusiasmo e idealismo da efêmera Comuna de Paris, em 1871. Mas devia haver algo parecido no ar, em Cartum, em abril de 2019”.8
A FDLC disputa com o alto-comando militar duas questões cruciais: quem deve exercer o poder durante o período de transição e quanto tempo esse período deve durar? A coalizão exige que se forme um “conselho de soberania” com sua predominância e participação militar minoritária, enquanto as Forças Armadas insistem em manter o controle do poder soberano. Pode parecer paradoxal que a coalizão exija um período de transição de quatro anos até a realização das eleições, enquanto os militares querem limitá-lo a dois. Mas ela aprendeu com as eleições constitucionais, legislativas e presidenciais organizadas a curto prazo na Tunísia e no Egito, que favoreceram a polarização reacionária em detrimento dos progressistas. A coalizão quer ter tempo para construir novas instituições para um poder civil, democrático e laico, progressista no plano socioeconômico e na questão da mulher – dimensões refletidas em seu projeto de Constituição de transição. Ela também quer tempo para construir uma força política progressista capaz de consolidar sua liderança em uma estrutura partidária, hoje inexistente.
Assim, fica mais fácil entender por que a revolta sudanesa provoca nas forças reacionárias da região uma ansiedade muito maior do que o movimento argelino. Os irmãos inimigos do CCG – a Arábia Saudita e emirados como o Catar – ofereceram ajuda a Al-Bashir antes de sua queda. O eixo que une sauditas e emirados redobrou seus esforços para apoiar os militares, agora liderados por oficiais que lutaram ao seu lado no Iêmen. Seu objetivo é destruir a coalizão progressista, voltando à sua fração “moderada”, especialmente o Partido Nacional Umma, enquanto o Exército é encorajado a recorrer à demagogia religiosa – ele acusa a FDLC de querer expurgar a lei sudanesa da xaria – com o apoio dos salafistas, ligados aos sauditas.
Para ficarmos com a comparação do jornalista do Financial Times, a situação levará a uma radicalização revolucionária, como na Rússia em 1917, ou a uma “semana sangrenta”, como a que pôs fim à Comuna de Paris? O principal trunfo dos revolucionários sudaneses é sua grande influência sobre soldados e oficiais subalternos, alguns dos quais usaram suas armas para defender os manifestantes. Foi isso que impediu o alto-comando de lançar as tropas contra o movimento quando Al-Bashir o incitou a fazê-lo. Esse fator determinará o destino da revolução sudanesa, como determinou os destinos opostos de suas predecessoras russa e parisiense.
Gilbert Achcar é professor da School of Oriental and African Studies (SOAS), da Universidade de Londres. Autor, entre outras obras, de Symptômes morbides. La rechute du soulèvement arabe [Sintomas mórbidos. A recaída das revoltas árabes], Actes Sud, Arles, 2017.
1 Cf. Bahey Eldin Hassan, “Égypte. Le coup d’État permanent” [Egito. O golpe de Estado permanente], Oriente XXI, 15 abr. 2019. Disponível em: <www.orientxxi.info>.
2 A análise e os números desse bloqueio podem ser consultados em Le Peuple veut. Une exploration radicale du soulèvement arabe [O povo quer. Uma exploração radical da revolta árabe], Sindbad/Actes Sud, Arles, 2013.
3 Sobre a UGTT, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2015, ler Héla Yousfi, “Un syndicat face à Ennahda” [Um sindicato diante do Ennahda]. In: “Le Défi tunisien” [O desafio da Tunísia], Manière de Voir, n.160, ago.-set. 2018.
4 Ler Pierre Daum, “Place Tahrir, sept ans après la ‘révolution’” [Praça Tahrir, sete anos após a “revolução”], Le Monde Diplomatique, mar. 2018.
5 “‘L’imagination au pouvoir’, une interview de Daniel Cohn-Bendit par Jean-Paul Sartre” [“A imaginação no poder”, uma entrevista de Daniel Cohn-Bendit para Jean-Paul Sartre], Le Nouvel Observateur, Paris, 20 maio 1968.
6 Edward W. Said, L’Orientalisme. L’Orient créé par l’Occident [Orientalismo. O Oriente criado pelo Ocidente], Seuil, Paris, 1980.
7 Cf. “The fall of Sudan’s “Morsisi” [A queda do “Morsisi” do Sudão”], Jacobin, 12 maio 2019. Disponível em: <www.jacobinmag.com>.
8 David Pilling, “Sudan’s protests feel like a trip back to revolutionary Russia” [Protestos do Sudão parecem uma viagem de volta à Rússia revolucionária], Financial Times, Londres, 24 abr. 2019.