O Supremo na baliza política e o Brasil entre o passado e o futuro
Com a anulação dos processos da Lava Jato contra Lula, Supremo antecipa os velhos dilemas eleitorais rumo a 2022
No duplo twist carpado que se tornou a política brasileira, na segunda-feira, 8 de março de 2021, jornalistas, tuiteiros e o tio do zap entram em polvorosa com a posição do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que anulou todas as decisões tomadas pela 13ª Vara Federal de Curitiba em relação aos quatro processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na prática, significa que Fachin simplesmente tornou sem efeito as condenações da Operação Lava Jato em relação a Lula, que passa, então, a ser elegível para a disputa presidencial de 2022. Como se a animação fosse pouca, nesta terça o ministro Gilmar Mendes resolveu colocar a questão em pauta na 2ª turma do STF, na qual Fachin é relator dos mencionados processos.
Gilmar Mendes fez do seu voto sobre os processos que envolviam Lula na Lava Jato um verdadeiro memorial das arbitrariedades da Operação. Lá pelas tantas, entre comentários que se referiam até aos métodos “soviéticos” do ex-juiz e comandante da operação, Sérgio Moro, ele lembrou que a suspeição precede a competência. Assim, divergia da posição de Fachin e ia direto em um ponto já levantado por quem cobre o Supremo de perto: o de que Fachin, conhecido por sua defesa pública da Lava Lato, teria feito tal movimento como preço a pagar para salvar Moro. Explica-se: no escopo de sua decisão sobre a falta de competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar Lula, o ministro julgou prejudicados os Habeas Corpus que questionam a imparcialidade de Moro. Contudo, parece que a manobra não funcionou. O julgamento da 2ª turma foi interrompido pelo pedido de vistas de Nunes Marques (com o placar de 2 a 2 contra Fachin), mas a sensação é de que os processos contra Lula tanto começam a pesar para os ministros como seu andamento pode ser um importante instrumento de sinalização política do Tribunal. Os ministros divergem sobre a Lava Jato, mas com Moro completamente diminuto em poder e influência, as decisões sobre a Operação jogam a última pá de cal nas aspirações da República de Curitiba e levantam o debate sobre as eleições de 2022.
Fato é que poderíamos gastar dias olhando para o xadrez da movimentação dos instrumentos jurídicos. Contudo, aqui levanto o olhar e tento fazer uma análise em um panorama médio. Como circulou em um tuíte, em uma semana Lula será elegível e vacinado. A marotice da frase é a síntese perfeita de que Lula volta à cena como potencial candidato do PT para disputar as eleições presidenciais, que, diga-se, está logo ali. A expectativa de ver o ex-presidente de novo no jogo gerou festejos entre seus apoiadores e simpatizantes, mas também ânimo em uma parcela bolsonaristas que pretendem ver o atual ocupante do Planalto disputando a eleição com Lula. Há uma divisão nessa análise, nem todos acreditam nela, mas para um grupo há a aposta na conhecida polarização que reanimaria o antipetismo. Com isso, apesar do caos instalado no país, os insatisfeitos continuariam a insistir na opção Bolsonaro. Essa questão está posta e não pode ser esquecida. A esta altura do campeonato, faltando pouco mais de um ano para as eleições, o movimento é de escolha dos candidatos e também dos seus opositores.
Apesar de óbvia, essa noção de que uma eleição se dá no comparativo entre dois indivíduos, e não sobre seus atributos isoladamente, é a tônica que não pode ser esquecida. A preço de hoje, vamos repetir nossa lista de personagens: Lula como possível candidato, Bolsonaro no páreo para a reeleição e um questionamento sobre como um juiz (responsável pela prisão de Lula e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro) pode ou não ser parcial em conduzir diversos julgamentos. Todos esses itens acabam passando pelo Supremo Tribunal Federal, em relação ao qual, diante dos seus julgamentos, menos se olha para os fundamentos técnicos e mais se analisam as intenções políticas. Vem logo à mente a recordação da já clássica expressão “com o Supremo, com tudo”. Assim, até poderíamos perguntar: “2018, é você sumido?”
Ironias à parte, todos os elementos expostos neste artigo servem para mostrar a dicotomia de estarmos presos numa espécie de hiato, como em um confinamento que se atualiza piorado. Em pleno 2021 ainda permanecem, de forma ululante, as fraturas expostas da crise política que se instalou no Brasil desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. E lá se vão distantes cinco anos desde o início do seu afastamento, em abril de 2016. Mesmo assim, o grau de ruptura, a descrença na velha política (ou pelo menos o seu uso discursivo) e o distópico advento de uma pandemia nos paralisam entre o passado como esperança de futuro e um futuro com ares de passado.
Neste ponto, coloca-se uma questão crucial: seríamos capazes de sair da armadilha em que nos aprisionamos usando a mesma estratégia de ter decisões jurídicas, para este ou aquele lado, balizando a política? Caso se assuma que sim, que não há outro jeito, o Supremo hoje tem em suas mãos, mais uma vez, a possibilidade de exercer um poder de veto sobre quem terá ou não condições de ser candidato. E, ao que parece, sabe disso muito bem. Aqui falo não só de Lula, mas do próprio Moro, que, a despeito de ser ou não viável no jogo político, poderá carregar oficialmente a pecha de um juiz parcial, o que arranharia o brio dos lavajatistas remanescentes. Além disso, como já dito, o próprio Bolsonaro faz hoje suas escolhas pensando em quem poderá ou não enfrentá-lo. Em síntese, o que se está dizendo é que as condições jurídicas são também políticas. Em cada decisão tomada pelo Supremo se mede, inclusive no debate público, qual candidato pode ser mais viável.
Há muitas armadilhas neste cenário, mas, uma vez que ele está dado, além de nos perguntarmos se haverá novamente um limite possível entre política e Justiça, cabe pensar por dentro dessa equação. Diferentemente do que ocorreu em 2018, as decisões do Supremo não se voltam mais para um processo sendo gestado. Bolsonaro já se tornou presidente da República, a Lava Jato desintegrou-se, há um aparato militar em quase todo o staff federal.
Há um futuro dizendo “olá” com acenos bem antigos. As decisões tomadas agora tocam outras estruturas. Ou seja, mesmo que o Supremo tome para si esse lugar de balizador da política não há mais especulações sobre este ou aquele risco ou sobre a intenção deste ou daquele tuíte. As cartas para 2022 já estão na mesa, ainda que se viva, de outra forma, um velho dilema sobre democracia, política e os fantasmas não exorcizados. A pressão sobre a Justiça Eleitoral em 2018 não nos deixa esquecer que as decisões de agora, além do impacto nas candidaturas, também serão absorvidas pelo próprio Judiciário quando ele virar árbitro do jogo que ajudou a montar e escolher os jogadores.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, pesquisa Sistema de Justiça, em especial sua interface com a mídia, e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo.