O terrorismo nacional e os Direitos Humanos de ocasião
A contradição começa com o fato de que Jair Bolsonaro, líder dos que promoveram a barbárie, afirmava que os direitos humanos seriam o “esterco da vagabundagem”. Diante disso, cabe a pergunta: seus apoiadores integram essa “vagabundagem”?
No dia 08 de janeiro, a população brasileira presenciou a destruição do patrimônio nacional como nunca vista. Acreditando que o quebra-quebra foi democrático, os patriotas vêm alegando fraude nas eleições de 2022 e que “supremo é povo”. Apesar dos estragos ainda não contabilizados pela União federal e pela lista com o nome de 763 presos divulgada pela SEAPE do DF, no dia 10, fica a questão: como lidar com uma situação dessa magnitude, pós-promulgação da Constituição de 1988?
A destruição de 08 de janeiro deixou muitos questionamentos e nenhuma conclusão. Contudo, é preciso destacar um ponto: os detidos vêm pedindo a aplicação dos direitos humanos, conforme noticiado pelo jornal Zero Hora.
Em um vídeo que tem circulado pelas redes sociais, um dos presos no ginásio da Academia Nacional da Polícia Federal reclama que a comida não é boa, porque era “nugget com macarrão” e que “nem cachorro” comeria tal refeição. Alguns outros, ainda dispondo do telefone celular, falaram que não conseguiam carregá-los. Em resposta, o Ministro Alexandre de Moraes diz que “a prisão não é uma colônia de férias”.
A contradição começa com o fato de que Jair Bolsonaro, líder dos que promoveram a barbárie, afirmava que os direitos humanos seriam o “esterco da vagabundagem”. Diante disso, cabe a pergunta: seus apoiadores integram essa “vagabundagem”?
Após o cenário dantesco da invasão em Brasília, é possível destacar uma série de violações de direitos humanos ocorridas durante o governo Bolsonaro, ainda que sejam colocados de lado os problemas relativos à pandemia do Covid-19. Em setembro de 2021, a Anistia Internacional brasileira lançou o relatório 1.000 Dias sem direitos. O documento apresenta 32 violações aos direitos humanos cometidas por Bolsonaro desde sua posse, em primeiro de janeiro de 2019, até o final dos primeiros 1.000 dias de governo.
Exemplos de tais transgressões podem ser apontadas: as queimadas na Amazônia, em agosto de 2019; as investigações sigilosas contra críticos do governo, em julho de 2020; e o aplauso realizado pelo General Braga Netto à ditadura civil-militar, em março de 2021.
Não obstante a incongruência, os apoiadores de Bolsonaro defendem os “direitos humanos de ocasião”, implementados somente quando seus pares sofrem algum tipo de sanção (civil, criminal, administrativa, etc.). Esse foi o caso do ex-Deputado Federal Daniel Silveira, que defendia abertamente o fim da aplicação dos direitos humanos, simbolizado pela quebra da placa com o nome parlamentar carioca, brutalmente assassinada, Marielle Franco.
Por outro lado, exigiu a aplicação dos mesmos direitos e garantias ao seu caso quando foi preso, sob determinação do STF. O criminoso disse que iria buscar proteção na Corte Interamericana de Direitos Humanos, ainda que o colegiado só possa ser acessado por Estados ou via Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Diversos autores na seara dos direitos humanos debatem a aplicabilidade dos mais diversos institutos da área em questão. Consequentemente, isso tem de passar por temas como terrorismo e ataques a grupos sociais específicos.
Contudo, antes que alguém possa buscar eventuais limites ou restrições de implementação a direitos, deve-se entender o que significa ser terrorista ou cometer um ato terrorista, para além da visão tradicional. Será que o brasileiro, branco, cisgênero, heterossexual, armamentista, pró-família e cristão também pode ser chamado de terrorista? Ou somente é terrorista o estereótipo do homem árabe? É outra pergunta que fica em aberto.
A depredação do patrimônio público nacional, em nome de valores antidemocráticos, também seria um ato de terrorismo? Ou só os comete quem joga bombas em cidades europeias? Também não há como definir.
Não é possível encarar a realidade da mesma maneira que os apoiadores de Bolsonaro. Negar a aplicação dos direitos humanos é pensar com o próprio viés bolsonarista, mesmo que a defesa dessa ideia não seja fácil, ao considerar-se a destruição dos principais prédios de Brasília.
O direito à ampla defesa, ao contraditório e ao processo penal justo, nos moldes definidos pela Constituição de 1988, faz com o Brasil não se transforme em um Estado livre de garantias individuais. Reafirmar o compromisso com os valores democráticos e institucionais é ir de encontro ao que pessoas como Zé Trovão, Léo Índio, Luciano Hang, Allan dos Santos e muitos outros defendem.
Apesar disso, não será fácil esquecer os ataques aos defensores de direitos humanos, especialmente os realizados pelo próprio Bolsonaro. Em entrevista ao Leia Já, em 31/05/17, afirmou que “Direitos Humanos dão espaço aos bandidos”. Não por acaso, tornou-se bordão entre seus apoiadores, nos almoços familiares ou nas ceias de Natal: “Os direitos humanos são para humanos direitos”.
O contraste surge quando seus eleitores exigem a aplicação dessas normas quando presos em flagrante por atos atentatórios ao regime democrático. Os apoiadores de Bolsonaro se definem como mais humanos do que o preto, pobre e favelado, que é detido com drogas para consumo pessoal e acaba enquadrado como traficante. Esses últimos, não podem ter acesso aos direitos humanos.
Na Revolução dos Bichos, George Orwell afirmou que: “Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros”. Assim, é possível perceber como os acusados de realizarem a destruição do dia 08 são seletivos até mesmo quando cometem crimes, considerando que acreditam possuir mais direitos que parcela pouco privilegiada da população brasileira.
Não é possível concordar com a conclusão de que os direitos humanos são o esterco da vagabundagem. Acreditar nisso é pensar o Brasil pela lente antidemocrática e pouco alinhada com o cenário internacional. Contudo, não será nenhuma surpresa se alguém afirmar que os detidos não são bandidos e que, por isso, deveriam gozar da proteção dos mesmos direitos que negam aplicação. Isso já vem sendo endossado por Hamilton Mourão, ex-vice-Presidente e atual Senador, pelo Rio Grande do Sul.
Acima disso, quem defende a aplicação dos direitos humanos de forma democrática não pode deixar de exigir sua implementação aos detidos em Brasília. Direito ao contraditório, à ampla defesa e ao processo penal, na forma da lei, são valores invioláveis em qualquer país minimamente sério.
Pensar de forma contrária é concordar com a ideia da implementação dos “direitos humanos de ocasião”. Da mesma maneira que o preto, pobre e favelado possui o direito de defender-se de acusações infundadas, os apoiadores de Bolsonaro também dispõem disso.
Ademais, a chance de defesa deve afastar qualquer possibilidade de anistia, ao considerar que ônus de provar que não cometeu qualquer ato de vandalismo recai sobre quem faz tal afirmação em defesa própria, dado que compete ao MP provar a autoria e a existência do crime. Assim, os destruidores devem ser processados, julgados e condenados, na forma da lei.
Ao cabo, admite-se que os direitos humanos não podem ser aplicados de forma ocasional, sob pena de serem ineficazes. Além disso, acredita-se que os eleitores de Bolsonaro, finalmente, irão descobrir a finalidade dessas garantias. É claro que não será da melhor maneira possível, mas há momentos em que é preciso que a cobra prove do próprio veneno para que seja sintetizado o mais efetivo dos antídotos.