O Toma Lá, Dá Cá das contradições sociais e políticas das classes médias
Sitcom brasileiro dos anos 2000 foi importante na exposição das complexidades e contradições da sociedade, com relações atravessadas entre a produção imobiliária, a segregação social, a corrupção e o avanço das milícias.
Faz 15 anos que um dos sitcoms mais engraçados da Rede Globo foi encerrado, mas suas críticas sociais e políticas continuam atemporais a respeito das classes médias brasileiras, que foram colocadas no centro das representações e caricaturas do país naquele período, em especial pelos escândalos da política nacional. A temática da corrupção e o desempenho dos políticos brasileiros sempre foi caro ao julgamento das classes médias, essencialmente em momentos de ascensão econômica e social. Com três temporadas entre os anos de 2007 e 2009, foi ambientado no bairro da Barra da Tijuca, região ocupada por grandes condomínios voltados aos estratos sociais médios e altos na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o território que mais cresceu na cidade nas últimas décadas em virtude do saturamento das Zonas Norte e Sul.
Conta com um elenco celebrado: Miguel Falabella, Marisa Orth, Adriana Esteves, Diogo Vilela, Arlete Salles, Stella Miranda, Ítalo Rossi, Miguel Magno, Norma Bengell, Fernanda Souza, George Sauma, Daniel Torres e Alessandra Maestrini.
Pode parecer que sitcoms como Sai de Baixo e Toma Lá Dá Cá são puramente para fazer o público rir com piadas cifradas, sobretudo pelo horário que era transmitido. Contudo, a dramaturgia em geral, seja ela um drama ou uma comédia, é uma arte, com o propósito de provocar inquietações e nos fazer pensar a respeito da cultura, da política e da sociedade. Ao protagonizar sujeitos de classes médias, ora mais cultos, ora com menos instrução, evidenciaram os conflitos das classes baixas e altas, principalmente pelo ódio aos mais pobres e subserviência aos mais ricos. Mesmo que a Barra da Tijuca tenha sido um projeto inicialmente idealizado pelo renomado urbanista Lúcio Costa, o mesmo responsável pelo Plano Piloto de Brasília, e que a região tenha protagonizado a principal expansão urbana da metrópole carioca nas últimas décadas, onde figuras como o fundador da construtora Carvalho Hosken, Carlos Carvalho, mais conhecido como “dono da Barra da Tijuca” e falecido em 2024, as piadas no seriado como “lugar muito baixo” e “longe de tudo” foram recorrentes. Era uma forma de atribuir adjetivos pejorativos aos modos de vida dos grupos sociais desse lado da cidade que misturou membros da elite da Zona Sul que se cansaram da estagnação dessa região, com os estratos sociais ascendentes vindos dos subúrbios das Zonas Norte e Oeste. Não foi por acaso que os personagens Mário Jorge e Rita, interpretados por Miguel Falabella e Marisa Orth, eram corretores de imóveis.
Piadas feitas pelos personagens com base nas agressões entre Seu Ladir e Dona Álvara não são uma mera excentricidade, mas servem para mostrar como a sociedade costuma relativizar e passar pano para a violência contra a mulher. Afinal, o que a mulher teria feito para que o homem chegasse a tal ponto? São esses diálogos que aproximam a crítica do público, em especial pelas contradições que atravessam a sociedade e ainda mais as classes médias, entre seus pudores, ideias conservadoras e o desejo por mais liberdade e diversidade. Naquele momento, a atriz Luana Piovani denunciava a agressão do ex-companheiro, Dado Dolabella. Recentemente, se abriu em relação ao período em questão e enfatizou que o mais dolorido não foi a violência física, mas o julgamento por parte da sociedade que a condenou, seja pelo público em geral, seja por parte da sua empregadora na época, a Rede Globo.
O final dos anos 2000 foi marcado por uma efervescência política e cultural, com uma nova ascensão de estratos de trabalhadores (agora, vindos das periferias contemporâneas), o novo posicionamento do Brasil perante o mundo sob os governos petistas e a crise de 2008 nos Estados Unidos. O seriado foi certeiro ao demonstrar a submissão dos brasileiros aos interesses imperialistas do Norte Global, ao destacar os sonhos que colocam lugares como Paris e Califórnia em posição superior nos desejos de consumo e aprovação social, na mesma medida em que retratou a opressão dos Estados Unidos sobre nós por meio de sua cultura e da língua inglesa. Aliás, a opressão do país norte-americano contra nós foi a definição dada pelo arquiteto Oscar Niemeyer para a Barra da Tijuca no documentário A vida é um sopro. Formada por enormes condomínios fechados de casas e prédios, o bairro tem até sua própria Estátua da Liberdade, instalada no Shopping New York City Center.
Dona Álvara, a síndica do condomínio Jambalaya, foi a pura representação das contradições do sistema capitalista e do Estado, destacando-se por suas posições autoritárias à frente da administração, ao mesmo tempo em que fazia referências aos estudiosos da globalização, como Milton Santos, ao afirmar que esse processo demandou o fortalecimento das comunidades locais. Nesse sentido, o cenário de contradições está posto: os personagens e o condomínio refletem a influência globalizante dos Estados Unidos, principalmente de Miami, enquanto a brasilidade é exposta pelas narrativas construídas em torno dos personagens, com destaque para Bozena, empregada doméstica natural de Pato Branco, no sudoeste paranaense.
Outro ponto de denúncia está na maneira abusiva com que os patrões tratam Bozena (Alessandra Maestrini), o que, nos anos seguintes, culminou na PEC das Domésticas. Esse foi provavelmente um dos pontos mais altos do seriado, já que não faltaram referências e críticas a uma classe média que sonhava em ter uma empregada em casa, principalmente se estivesse uniformizada, aos moldes do que já era comum às elites. Contudo, o brilhante programa não fugiu das gafes cometidas pela maioria de nós naquele tempo, como no racismo estrutural e visceral. Um dos episódios caminhou na corda bamba ao comparar as relações sociais contemporâneas com a escravidão (até aí, não é novidade), mas infelizmente praticaram blackface ao pintar Bozena de tinta preta para encenar uma escravizada. Para os desavisados, essa é uma atitude de tremenda violência racial que busca ridicularizar pessoas negras, ao mesmo tempo que serve de entretenimento para pessoas brancas.
É fato que Miguel Falabella e tantos outros por trás da produção tem um enorme reconhecimento por suas críticas das mais contundentes à sociedade brasileira, mas é de bom tom que façamos essa nota de crítica à prática racista como forma de historicizar e avançar nos debates. Em 2023, Marisa Orth foi entrevistada pela escritora e roteirista Tati Bernardi, onde falou de maneira muito consciente a respeito dos caminhos conservadores que o país tomou nos últimos anos. Entretanto, fez um apelo importante e consciente ao salientar que, ainda que tenhamos que lutar pelo ingresso de mais pessoas negras no teatro e na televisão, precisamos ter cuidado para o “politicamente correto” (que também foi tema de alguns episódios do sitcom) não fechar mais portas do que abrir – portas no âmbito da interpretação e dos questionamentos pelos quais a arte é responsável e tão necessária. Toma Lá Dá Cá é pouco lembrado quando comparado a Sai de Baixo, mas é necessário salientar que existe uma diferença geracional entre os públicos jovens. Minha geração era criança no fim dos anos 90, mas adolescente no final dos anos 2000. Atores da velha guarda como Arlete Salles, Stella Miranda, Miguel Magno, Norma Bengell e Ítalo Rossi fizeram um enorme sucesso na produção por seus personagens tão disruptivos e contraditórios que, diferente dos mais jovens, eram justamente os que demonstravam frações da sociedade que lutam por liberdade e diversidade sexual. Adônis (Daniel Torres), neto de Copélia (Arlete Salles), apresentava traços dos mais conservadores perante a avó, que o obrigava a se referir a ela como parenta. Sua mãe, Célia Regina (Adriana Esteves), era a típica dona de casa que encarnava o que, quase uma década depois, iríamos chamar de Bela, Recatada e do Lar, título da Revista Veja a respeito dos atributos conservadores de Marcela Temer, esposa do ex-presidente Michel Temer.
No caso dos momentos mais conservadores de Adonis, é possível traçarmos paralelos com a ascensão da extrema direita por homens jovens que se sentem ameaçados pelo avanço do feminismo e das lutas LGBTQIA+. Além disso, uma personagem como Dona Álvara, vivida por Stella Miranda, provocava as sensações mais contraditórias no público, já que era uma maneira de demonstrar as contradições vividas por nichos conservadores do Brasil por meio do corpo de uma mulher branca, de meia idade, em franca ascensão social e posição de poder no condomínio. Meus companheiros de geração com certeza devem lembrar daquela suspeita de que quem se preocupa demais com a sexualidade alheia, é porque não é bem resolvido com sua própria sexualidade. O programa foi sagaz na crítica e centralizou profundas discussões de gênero e orientação sexual nos personagens de Copélia, Seu Ladir e Dona Deise, onde a ridicularização era direcionada aos preconceitos dos protagonistas que representavam membros das classes médias brancas e heteronormativas. Por exemplo, não foram poucas as vezes que os desejos libertários de Dona Álvara foram expostos e assumidos ou sentir inveja da personalidade despudorada de Copélia.
O programa também explorou com perspicácia o avanço das organizações criminosas no Rio de Janeiro, com destaque para as milícias e seu profundo atravessamento na produção imobiliária dos grandes condomínios e no processo de favelização. A personagem Isadora (Fernanda Souza), filha dos corretores Rita e Mário Jorge, chegou a ser eleita vereadora do município e se envolveu em uma série de falcatruas e esquemas de corrupção, dentre eles, a construção de um prédio irregular em área de mata atlântica, dentro da favela fictícia do “Porco Fumado”. Na vida real, Rio das Pedras, uma das maiores favelas do Brasil e muito próxima à Barra da Tijuca, é considerada o berço da milícia no Rio de Janeiro. É mara desnudar as catedrais construídas por grupos hegemônicos a respeito da sociedade e das cidades, onde poderíamos passar dias falando de episódios ainda mais polêmicos retratados no programa. A atriz Adriana Esteves é uma das protagonistas da série Os Outros, disponível no Globoplay, onde mais uma vez a Barra da Tijuca é o cenário de setores conservadores que vivem em condomínios fechados e, na segunda temporada, vivenciam as investidas milicianas no cotidiano. Inclusive, não é permitido esquecer da vereadora Marielle Franco e de onde teria partido o comando da sua execução. Mas prefiro não comentar.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).