O trabalho e a saúde dos idosos
A redução da carga de trabalho dos idosos vai desafogar o sistema de saúde e, principalmente, melhorar a qualidade de vida das pessoas mais velhas, homens e mulheres, fomentar a sua sociabilidade, diminuir a depressão, as doenças somatizadas e o consumo de medicamentos
No primeiro canto de Ruslan e Ludmila, Pushkin narra a história do pastor que se declara para Naína, que lhe responde “Пастух, я не люблю тебя!” (Pastor, eu não te amo!). O pastor rejeitado partiu, conquistou o mundo e voltou a se declarar para Naína, que lhe disse “Herói, eu não te amo!” Nosso incansável herói partiu então para uma nova jornada e, depois de aprender a arte da magia, invocou a sua amada. Prontamente lhe apareceu uma velha de cabelos brancos, corcunda e toda trêmula. “Naína, pode ser você, onde está toda a sua beleza?” Quarenta anos haviam se passado e Naína, contorcendo a sua boca pavorosa em um sorriso, tossindo e com uma voz de além-túmulo, murmurou seu amor pelo sedutor, que, ingrato, fugiu correndo. Em seu clássico A velhice, Simone de Beauvoir afirma que o envelhecimento é mais temido que a própria morte.
Estou me programando para partir em 2035, aos 84 anos de idade (não acredito em horóscopos, mas 84 é o mínimo múltiplo comum entre os ciclos de 7 anos do zodíaco e de 12 anos do horóscopo chinês). Quando, aos 70 anos, contei isso para a minha amiga de infância, a Peninha da Faculdade de Medicina da USP, cujo pai partiu beirando os 100 anos, ela ralhou comigo. Mas um dos meus filhos adolescentes, boquiaberto, disse: ‘Tudo isso, pai!?
Também já fiz meu testamento vital, porque meu amigo Einstein e eu achamos de mau gosto prolongar a vida artificialmente. Só fiz o testamento vital para proteger meus filhos de serem acusados pelos médicos de estarem querendo apressar minha morte, para ficar com a herança (e não sobrar nada para amortizar os custos dos equipamentos hospitalares).

Entre os povos nômades ancestrais, nos quais a reprodução dependia de mais braços e menos bocas, os idosos eram sumariamente sacrificados ou abandonados à própria sorte. Na mitologia grega, Cronus destrona Uranus e é destronado por Zeus. Nas sociedades civilizadas, embora ainda com a sombra dos sacrifícios arquetípicos, os idosos passaram a ter um lugar de destaque, por questões humanitárias e por respeito à experiência acumulada ao longo dos anos.
A idade cronológica é um conceito relativamente moderno e ninguém envelhece da noite para o dia. Você consegue distinguir um sexagenário de um jovem, mas não necessariamente de uma pessoa na casa dos 50 ou na casa dos 70 anos de idade. Aos 65 anos, encontrei uma amiga de infância e perguntei o que ela estava fazendo. Ela disse que estava trabalhando com a terceira idade. Respondi, “terceira idade somos nós”, ao que ela contrapôs, “então é com a quarta”. Mas, de qualquer forma, o ser humano, em qualquer altura de seu percurso vital, não pode ser íntegro sem encarar a velhice de frente e sem rodeios. Viver é uma arte, saber envelhecer também. Viver uma vida bem vivida é viver plenamente cada uma das fases da vida. Só quem desperdiçou a vida é que sente ânsias e se debate em vão para viver eternamente jovem.
A velhice já encontrou espaço digno na literatura, com os idosos não sendo mais retratados necessariamente como sábios, mas como seres humanos. Matheus Lopes Quirino, em Retratos das velhices na literatura, cita os romances de Juliana Leite, Lídia Jorge, Martha Batalha, Oscar Nakasato, Rosângela Vieira Rocha e Salomé Esper.
Simone de Beauvoir nos diz que na França do século XVII, a maioria dos adultos morria entre os 30 e 40 anos de idade (os abastados entre 48 e 56). O vertiginoso crescimento da população mundial é um fenômeno relativamente recente, data do início da Revolução Industrial. Ao mesmo tempo, assiste-se ao envelhecimento da sociedade. A partir da segunda metade do século XX, acentuou-se a ponto da pirâmide etária assumir a forma de um balão. A Organização Mundial da Saúde, tendo em vista o acelerado envelhecimento da população, adotou o referencial de envelhecimento ativo com o objetivo de melhorar a qualidade de vida das pessoas à medida que envelhecem e criou o programa das Cidades e Comunidades Amigas das Pessoas Idosas.
Em 1970, apenas 5% da população brasileira tinha 60 anos ou mais (5 milhões de pessoas); essa participação atingiu 16% em 2023 (32 milhões). É importante considerar que a faixa etária acima de 60 anos é bastante ampla, abrangendo diversas subfaixas. Estamos testemunhando um acelerado envelhecimento da população brasileira, resultado do aumento da longevidade e do declínio da taxa de fertilidade. A expectativa de vida ao nascer, que era de 52 anos em 1970, aumentou para 76 anos em 2023 (80 anos para as mulheres e 73 anos para os homens). Paralelamente, a taxa de fertilidade, que era de 5,8 filhos por mulher em 1970, caiu para 1,6 em 2023, um nível inferior ao de reposição da população, que é de 2,1.
Nas sociedades tradicionais pré-capitalistas, as famílias eram extensivas, moravam em um mesmo lar várias gerações, idosos e agregados. Mas com a industrialização e a urbanização das sociedades, esses grupos familiares passaram a ser nucleares. O envelhecimento da população requer, cada vez mais, dedicação intensiva para com o crescente número de idosos com perda de autonomia. O emprego de cuidadores profissionais nos países desenvolvidos já é bastante significativo, mas no Brasil os cuidados ainda permanecem essencialmente restritos às mulheres da família e às empregadas domésticas.
O mundo do trabalho
Num mundo onde as pessoas se relacionam mediadas pela mercadoria e empregadas pelo capital, os trabalhadores conquistaram direitos de organização sindical, contratos de trabalho, regulamentação e redução da jornada, férias, assistência médica, auxílio desemprego e aposentadoria. Contudo, desde as últimas décadas do século XX, temos assistido à precarização e ao crescimento do mercado informal de trabalho, a terceirização do trabalho e o emprego de “trabalhadores autônomos”, por conta própria e empreendedores, de forma a “contornar”, isto é, burlar, os direitos trabalhistas.
Estou acompanhando com entusiasmo a atual campanha pelo fim da jornada de trabalho 6×1 e a forma com que o movimento VAT está sendo organizado por jovens trabalhadores. O nome Vida Além do Trabalho, em si, já é um manifesto. Parte dos trabalhadores já faz jornada 5×2, então, na sequência, já se pode pensar na redução das 44 horas e, por que não? Escala de 4×3. Do ponto de vista da economia, isto resultaria em queda da taxa de desemprego, ou seja, melhor distribuição do emprego. Se pensarmos na produtividade e nos salários, a miséria a que os trabalhadores estão sujeitos tem sido a constante, faça sol, faça chuva.
As pessoas são o que fazem e, quando deixam de fazer, deixam de ser. Isso vale para a maioria dos indivíduos, principalmente para os idosos desempregados ou aposentados, especialmente para os homens, porque as mulheres, geralmente, têm um leque maior de interesses e ocupações com afazeres domésticos, filhos, netos e idosos com perda de autonomia.
A mídia tem divulgado a perda de postos de trabalho para pessoas a partir dos 50 anos, mesmo para não aposentados, mesmo durante o ‘boom’ de empregos no Brasil em 2024. Quando se aposentam e deixam de trabalhar, as pessoas dificilmente conseguem se reinventar, ficam mais sedentárias, solitárias e propensas a desenvolver problemas de saúde mental e física (além de que a idade também não ajuda muito). Os homens, particularmente, ficam em casa atravancando o caminho, atrapalhando o expediente, ranzinzas, irritados com os netos pulando em cima do sofá etc.
Ociosos, os idosos vivem o contrassenso de, ao mesmo tempo, querer matar o tempo e prolongar a vida. Há idosos que fazem das visitas a médicos e ao sistema de saúde uma forma de socialização e do consumo de medicamentos uma forma de autovalorização.
A questão do envelhecimento da população brasileira, ainda que de forma tímida, tem ganhado visibilidade nos meios acadêmicos, institutos de pesquisa e por iniciativas de profissionais da área da gerontologia, a exemplo do canal @oquerolanageronto, que em março de 2024, entrevistou Alexandre Silva, Secretário Nacional dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa.
Os idosos são naturalmente, e de longe, os usuários preferenciais do sistema de saúde, consultas, exames e internações hospitalares. Na atual estrutura produtiva, o ritmo de trabalho é rígido, é tudo ou nada, ou se trabalha de sol a sol, ou então não se tem lugar no mercado de trabalho. Os idosos gostariam de se manter ativos, mas enfraquecidos fisicamente e mentalmente pela idade, necessitariam da redução da carga de trabalho, não apenas das horas, mas também do ritmo de trabalho.
Trabalho voluntário, embora seja uma opção meritória, não resolve, porque a questão é preservar a autoestima dos idosos, que precisam se sentir úteis e, na nossa sociedade, a utilidade do trabalho é ditada pela remuneração. Tempos virão em que todos serão amadores, trabalharão todos por amor.
A Fundação Dom Cabral tem se dedicado a estudar o impacto do aumento da longevidade e a necessária adequação da carga de trabalho para incluir os idosos no mercado. Algumas poucas empresas têm aberto programas temporários de contratação de idosos. Contudo, seria necessário uma iniciativa institucional e políticas públicas para garantir empregos com horas e ritmos de trabalho adaptados para o crescente número de idosos no país.
Ah, mas isso vai causar muitos transtornos para as empresas! Pois é, vai causar mesmo. Mas, por outro lado, vai desafogar o sistema de saúde e, principalmente, melhorar a qualidade de vida das pessoas idosas, homens e mulheres, fomentar a sua sociabilidade, diminuir a depressão, as doenças somatizadas e o consumo de medicamentos.
Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Organizador e autor, entre outros livros, de Economia Social no Brasil.