O último combate de Martin Luther King
Em 4 de abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado por um defensor da segregação racial. Cinquenta anos depois, a história oficial atém-se à imagem do pastor negro que lutava pelos direitos civis e à do patriota trabalhando pela reconciliação nacional. Essa visão, entretanto, ignora partes inteiras de uma vida consagrada à busca pela igualdade em todas as suas dimensões
De maneira inesperada, há poucas semanas os lares norte-americanos ouviram soar a voz de Martin Luther King e tiveram notícia de um discurso pouco conhecido: “O instinto do tambor-mor”,1 pronunciado cinquenta anos atrás. Esse encontro improvisado entre o líder revolucionário e os telespectadores se deu em um comercial das picapes RAM, divulgado durante o intervalo do Super Bowl, e foi quase tão comentado quanto o resultado da partida. A propaganda, que enaltece a força viril da picape com tração nas quatro rodas, a bandeira, o Exército e o heroísmo cotidiano de famílias anônimas ao som do sermão de King, fez alguns tremerem. E o pior, deixou a maioria impassível.
Que o solene espetáculo do consumo de massa televisionado se dê o direito de difusão de discursos do pastor já ilustra a ausência de limites da mercantilização, inclusive a das revoltas, das rebeliões e dos sacrifícios em prol da justiça. Mas a ironia é que essa usurpação se apropriou das palavras de King, que, nesse mesmo discurso, alguns parágrafos depois, lança uma carga virulenta contra o materialismo de seu país. Ele ridiculariza seus concidadãos seduzidos por publicitários cuja lábia os incita a comprar símbolos de superioridade, “um automóvel ou outro”, para se tornarem homens. Eles “passeiam de Cadillac” para serem alguém, exclama. Segundo King, essa indústria da inveja mata a América em fogo baixo.
Mais do que nunca, neste mês de comemoração do cinquentenário de sua morte, Martin Luther King é panteonizado. Lembrar que foi o presidente conservador Ronald Reagan quem, em 1983, decretou um feriado em homenagem ao revolucionário socialista permite entender a fraude que se generalizou depois, a estratégia desenvolvida de asseptização e de manipulação. Os usos políticos da memória foram extraordinários: para alimentar a narrativa de uma nação reconciliada, era preciso esquecer o dissidente. E criar um patriota, um pai fundador, o norte-americano excepcional que só um país excepcional poderia gerar. Um negro que sonhava com a igualdade racial e que teve êxito graças à confiança em seus compatriotas, que foi útil ao país ao realizar as virtualidades democráticas singulares das quais era portador. No pedestal da estátua inaugurada em 2011 por Barack Obama em Washington, não constam as palavras “racismo”, “raça” e “segregação”. Na alameda dos grandes homens da capital, o visitante se lembra mais do “sonho” manifestado durante a grande marcha de 1963 e de sua realização.
Marcha pela distribuição
Sabemos por Roland Barthes que a função da mitologia é nos prevenir da história. King está nos selos, no frontão dos colégios e liceus, no National Mall em Washington, nos livros ilustrados para crianças, nos escritos edificantes vendidos para o turista, no gabinete do presidente na Casa Branca, no anúncio de picapes. Seu pensamento crítico se encontra, assim, habilmente inserido na grande quantidade de homenagens oficiais e de intervalos comerciais.
Reescrever o sentido de seu combate e o de milhares de anônimos que fizeram a revolução negra nos anos 1950 e 1960 inicialmente consistiu em reduzi-lo a uma demanda pela igualdade formal: o direito de voto nos estados do sul que o impediam por meio de manobras e do terror, e o fim da discriminação legal. O aplainamento e as elisões da palavra de King são assim convenientes às tapeações oferecidas aos negros em 1965: o fim das discriminações legais constituía a igualdade. King ficou desolado com essa prestidigitação e, em 1967, em seu último livro, escreveu: “O problema é que, quando se fala de igualdade, não entendemos a mesma coisa; brancos e negros têm uma definição diferente. Os negros partem do princípio de que ‘igualdade’ é entendida no sentido literal e pensavam que os brancos concordavam com isso e manteriam sua palavra, ao prometê-la […]. Mas a maior parte dos brancos, inclusive os de boa vontade, entende ‘igualdade’ apenas como um vago sinônimo de ‘melhoria’. A América branca não está disposta psicologicamente a reduzir as desigualdades; ela procura cuidar de si e, na realidade, nada mudar”.2
Os direitos civis jamais foram o horizonte dos negros norte-americanos, tampouco de King. O pastor queria que a igualdade fosse também social, que as riquezas fossem redistribuídas, que os negros não fossem mais cidadãos de segunda ordem, condenados ao desemprego, ao gueto, à perseguição policial, aos salários indignos, às escolas decadentes e – estas palavras não o amedrontavam – à exploração e ao imperialismo. Assim, sua ética de emancipação jamais se limitou à questão da igualdade racial. Embora os negros fossem os deserdados absolutos, os oprimidos por excelência e a vanguarda da revolução em marcha, todos os vulneráveis deveriam se libertar: brancos pobres, mulheres que dependiam da assistência social, índios espoliados, latino-americanos. Sua capacidade de participar da deliberação democrática, de conquistar o poder, permitiria estimar o valor do país.
Seu último combate foi, assim, uma “campanha dos pobres” que, na primavera de 1968, levou miseráveis de todos os estados e de todas as cores de pele para a capital com o objetivo de tentar conseguir uma revolução constitucional: a adoção de uma lei de direitos econômicos para os “desfavorecidos”, sua inscrição na lei de garantia do salário mínimo, a participação de comitês de pobres no processo legislativo, uma redistribuição maciça das riquezas e um plano sem precedentes de criação de empregos públicos e habitações sociais. Em fevereiro de 1968, King ironizou aqueles que falavam de “assistencialismo” quando os pobres negros se beneficiavam do auxílio público e de “subvenções” quando ele era destinado aos brancos privilegiados. Em suma, “temos um sistema socialista para os ricos e um capitalismo selvagem para os pobres”.3
Em uma dialética sutil, ele propôs superar a oposição entre uma leitura estritamente “classista” da opressão (o postulado de que esta última desapareceria sob todas as suas formas com o fim do capitalismo) e uma abordagem identitária em que os grupos discriminados teriam cada um sua própria luta, pois exploração e discriminação não derivariam da mesma lógica. Para os participantes da “campanha dos pobres”, a super-representação dos negros e dos latinos nas armadilhas da exploração era patente e testemunhava um sistema de dominação que fazia muitas outras vítimas.
Nessa campanha da primavera de 1968, o papel primordial das mulheres – muitas vezes negras – da associação de defesa do direito à assistência social sugeria a imbricação das opressões de classe, gênero e raça. Por serem entrelaçadas, mais do que hierarquizadas, para King elas exigiam solidariedade; ele fala de “fraternidade”. Ao New York Times, que o entrevistou sobre essa cruzada dos pobres, confiou com franqueza que estava engajado em uma forma de “luta de classes”. Foi assassinado um mês antes do início da campanha.
Certamente, na memória nacional admite-se que, na ocasião, King foi veemente, especialmente a propósito do Vietnã; mas explicam que ele se “radicalizou” no fim da vida, consumido pela amargura e pela solidão. O pastor unanimemente enaltecido em 1963, na época de seu discurso “I have a dream” (“Eu tenho um sonho”), teria se distanciado da opinião pública ao renunciar a seu reformismo tranquilo e ceder à cólera. Nesse caso também a falsificação é total: em primeiro lugar, King jamais contou com o apoio da opinião pública de seu país, inclusive quando ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 1964. A marcha de Washington, um ano antes, reverenciada hoje como o símbolo da reconciliação nacional, na realidade foi apoiada por apenas um terço dos norte-americanos. Mesmo os nova-iorquinos, encarnação das ideias progressistas, em sua maioria consideravam que King era “extremista” e que as demandas de direitos civis eram “excessivas”.4 Em suma, ele não havia esperado o crepúsculo de sua vida para expressar suas inconvenientes convicções.
Com apenas 23 anos, depois de ter lido atentamente Karl Marx e Mohandas Karamchand Gandhi, admirado o pastor pacifista e socialista Norman Thomas e descoberto o cristianismo social de Reinhold Niebuhr, ele expressou sua desconfiança em um sistema econômico que concentra as riquezas nas mãos de poucos. Em 1953, King escreveu para sua esposa, Coretta: “O capitalismo chegou ao fim de sua utilidade histórica”, ao mesmo tempo que se proclamou de alma “socialista”, apesar de suas diferenças em relação a Marx.
Pessimista sem abdicar da esperança, traçou um retrato trágico de seu país. “Quando as máquinas, os computadores e a busca do lucro são mais importantes que as pessoas, o tripé fatal do materialismo, do militarismo e do racismo é invencível.”5 Ele pedia uma reestruturação profunda da sociedade, uma “revolução de valores” na qual os brancos deveriam admitir que a igualdade real tem um preço. “Chegou a hora de os grupos privilegiados deixarem um pouco seus milhões; não custou nada dessegregar o sul ou nos dar o direito de voto; agora é diferente. […] Quando começamos a nos perguntar por que há 40 milhões de pobres neste país, chegamos a outras questões sobre a distribuição das riquezas: quem possui o petróleo? Quem possui o minério de ferro?”, questionou em agosto de 1967.6
King lembrou que a economia política da dominação não se traduzia somente pela negação do direito de voto ou pela segregação. Tratava-se da organização premeditada de uma subordinação econômica: a concentração dos pobres em guetos e nos barrios, o desemprego e os salários indecentes, a culturalização da pobreza e a consciência tranquila paternalista dos reformistas. Entre estes encontram-se em boa posição os democratas e os progressistas urbanos, defensores da igualdade racial até o momento em que os negros quiserem se instalar em seus bairros nobres.
As estratégias de rememorar King escamotearam suas críticas à democracia norte-americana e sua denúncia de um regime de desigualdade enraizado na própria estrutura do país. Da mesma forma que o líder da Nação do Islã, Malcolm X, ele afirmava que o racismo era uma tara congênita da América branca e que a identidade nacional tinha nela os flagelos entrelaçados do capitalismo, do imperialismo e do racismo. Mas, para ele, a resistência à igualdade continuaria invencível, a menos que os deserdados e os dissidentes reinventassem o espírito da democracia pela desobediência civil e pela convergência revolucionária.
Ascese subversiva
A “política do amor” que ele reivindicava era em sua essência, sem dúvida, pacífica, mas buscava o confronto. A ação direta não violenta deveria perturbar a ordem pública e, portanto, a ordem das coisas, de modo que os mais vulneráveis, enfim, pudessem participar das deliberações e se tornassem, assim, sujeitos políticos. A violência sofrida sem retaliação não era uma negação da cólera ou uma postura cristã, mas uma ascese subversiva: o sofrimento era transformado em motor da ação e provocava o mal-estar não só do carrasco, mas também da testemunha da execução.
Após 1965, sua estratégia não violenta foi criticada como nunca havia sido pelos revoltados negros, mas King continuou inflexível. No entanto, recusando-se à pressão para condenar as dezenas de revoltas urbanas que inflamaram os guetos de 1964 a 1968, ele afirmou que “a violência é o grito daqueles que não são ouvidos” e que, para acabar com ela, a única solução era a luta contra o desemprego, as discriminações e a brutalidade policial. O relatório de especialistas independentes reunidos pela Casa Branca na Comissão Kerner, em 1967, confirmou seu diagnóstico. Mas o relatório foi abafado pelo presidente Lyndon Johnson, atolado no Vietnã. Seu sucessor republicano, Richard Nixon, foi eleito sete meses depois da morte de King. O país queria, então, a volta à ordem e a repressão dos agitadores, traidores e ingratos que se “declaravam” oprimidos. A segunda morte de King teve início quando Nixon propôs o desenvolvimento de um “capitalismo negro” em vez da igualdade.
Durante muito tempo, os Estados Unidos imaginaram ser uma nação sem classes, um país com uma mobilidade social incomparável. Eles abandonaram muito pouco dessa ilusão. Continuam convencidos de que o racismo é um vestígio do passado e que a época dos direitos civis acabou com as desigualdades entre negros e brancos. Martin Luther King refutava essas duas fábulas.
*Sylvie Laurent é pesquisadora associada em Harvard e Stanford, professora da Sciences Po Paris e autora de Martin Luther King. Une biographie intellectuelle et politique [Martin Luther King. Uma biografia intelectual e política], Seuil, Paris, 2015.