O vento, a areia e o nada
Antônio Xerxenesky conduz o leitor ao inevitável clichê da montanha-russa de sentimentos: numa página, altíssimas gargalhadas; na seguinte, a torcida pelo casal; mais à frente, uma vontade descomunal de duelar. Ou então de saber para onde o vento leva a areia.Renata Miloni
Em certos instantes, os mortos precisam voltar à vida. É uma vontade natural de possuir, mas como entender sua origem? O gaúcho Antônio Xerxenesky nos dá um exemplo raro no Brasil com seu romance de estréia, o Areia nos dentes (Não Editora, 2008). Como solucionar as próprias dúvidas utilizando limites às vezes extra-humanos? É um livro que testa seus personagens em diversos instintos, que faz com que o leitor se lembre de que, para estar limpo, talvez seja preciso se manter sujo.
Sozinho de esposa e sem contato com o filho, um homem decide escrever sobre seus antepassados que viveram no povoado de Mavrak. Debaixo de um calor suportável apenas num faroeste, os integrantes das famílias rivais Ramírez e Marlowe viviam em constante tensão, sempre à beira de um novo duelo. E tudo era levado nesse limite da paz mavrakiana até que Martín Ramírez fora misteriosamente assassinado na noite em que vasculhava o porão da casa dos Marlowes. Assim, o povoado fora dominado por uma gradual suspeita, especialmente de Miguel, pai de Martín, sobre a família inimiga. Afinal, como não suspeitar, se eles eram os únicos (únicos?) que poderiam ter visto o jovem após sair correndo daquele porão?
Os Marlowes negaram o tempo todo a autoria do assassinato e se voltaram ainda mais contra os Ramírez no momento em que descobriram que um xerife chegaria ao povoado. Segundo eles, Miguel teria enviado uma carta ao governo, pedindo a presença de alguém que conseguisse impor um mínimo de ordem a Mavrak. A necessidade de suspeitarem uns dos outros é um dos motivos de viverem ali. Sem um estopim para tal divisão, esse e tantos outros povoados seriam feitos do nada. E, como escrito no próprio livro, “há algo mais assustador que o nada?” Não existem mocinhos ou vilões: o que está sob o duelo até de olhares é a honra. O reservado xerife Thornton chega à cidade para entender que tamanho poder tem a honra de um nome.
Com a definitiva ausência de seu irmão, Juan Ramírez se viu na obrigação de, a partir dali, defender a família. Também por pressão implícita de seu pai, o rapaz começou a entender o real funcionamento de se viver num povoado sem ordem, sem leis e dominado em parte por pessoas que poderiam lhe matar sem razões muito graves. Assim, esse novo “defensor” ganha mais espaço na trama, lhe é garantido mas não ainda confiado o papel de herói, aquele que fará justiça. Juan parece apenas querer construir sua vida, abandonar o que lhe fora imposto por gerações.
Mas novos acontecimentos necessitavam de resposta e alguns poderiam não ter relação entre si. Como lidar com algo que pode acabar a qualquer momento? E a narração anda por caminhos semelhantes também do lado de fora. O semi-herói se transforma no suposto protagonista do livro e, neste momento de observações mentais de seu personagem, Xerxenesky dá à narrativa um ritmo sem possibilidade de abandono por parte do leitor.
Juan sentia o tempo como a areia. Por mais que desejasse voltar atrás e reconstruir o passado para alcançar o presente ideal, sem erros ou desvios, seria necessário que cada grão de areia retornasse à sua posição original de três, quatro anos atrás. [pág. 74]
Miguel já não suportava mais esperar que algo fosse feito sobre a morte de seu filho. Então, finalmente, confiou a Juan a coragem que não sabia se tinha e o encarregou de uma missão que seria capaz de resolver todos (todos?) os mistérios a rondar Mavrak. E qual melhor momento para incluir zumbis na história do que depois de uma missão em segredo? Foi quando se pôde entender a origem daquela sensação: sim, a de que os mortos precisam voltar à vida. E de que nem na morte há segredos.
Consciência de cenário
Ao mesmo tempo em que narra, Juan, o homem que escreve sobre suas origens, se vê no inevitável rumo de encontrar seu presente e tentar entender os destinos que escolheu sem muito pensar. O que mais pode ter herdado de Juan Ramírez, seu pretenso herói, além do nome? Enquanto alguns personagens dentro da história conseguem solucionar os fatos ? ou pensam que o fazem ?, Juan, a cada linha escrita, se dá conta de que seus próprios fatos podem já não ter solução e compreende que o que escreve tem mais semelhança com a realidade do que deveria. Mas qual realidade? E quanto do nada dela faz parte?
Rezaria antes de dormir na esperança de uma resposta. Porém, sua razão já lhe dizia que não haveria resposta, apenas silêncio. Deus havia sido sepultado para Thornton. Quiçá, em seguida, Deus se tornaria como um morto-vivo para o ex-xerife, um tormento que reapareceria do nada, em espasmos, e lhe recordaria de uma época de idealismo que nunca regressará. [pág. 135]
Ele tem a consciência de cenário e presenças o tempo todo, e modifica sutilmente os rumos sempre que é provável sair deles. Reconhecendo o talento literário de Juan, simultaneamente o faço com o de Antônio Xerxenesky, que, logo em seu primeiro romance, demonstra não só preferência pelo gênero como seu provável domínio, tendo a chance de se firmar como um ótimo romancista com o tempo sempre a favor.
Por mais que os fãs (como eu) dos filmes de Sergio Leone, por exemplo, estejam familiarizados com algumas situações e estruturas de diálogos, o autor conduz, com autenticidade, o leitor ao meu inevitável clichê da montanha-russa de sentimentos: numa página, altíssimas gargalhadas; na seguinte, a torcida pelo casal; mais à frente, uma vontade descomunal de duelar com o primeiro que avistar. Ou então de saber para onde o vento leva a areia.
Os pontos negativos de Areia nos dentes são alguns detalhes que poderiam ser melhorados na narrativa, muitos deles apenas preferências minhas. Mas não tiram, de forma alguma, a qualidade, na minha opinião, indiscutível que o romance possui. Posso até dizer que é um livro exemplar para quem está começando. É o exemplo que eu seguiria se quisesse ser escri