O voto impresso antecipa o embate entre o Judiciário e o Executivo
Decisão do TSE em abrir inquérito contra Bolsonaro e sua inclusão no inquérito das fake news que tramita no Supremo dá munição ao Judiciário em uma lógica da “paz armada” que deve dar o tom da relação entre os dois Poderes. A pergunta é: explodirá antes das eleições de 2022?
A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em abrir inquérito administrativo contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por causa dos ataques feitos ao sistema eleitoral brasileiro, somada à decisão de colocá-lo como parte do chamado inquérito das fake news que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), representa uma espécie de mostra institucional da artilharia que o Judiciário tem contra as ameaças feitas pelo chefe do Executivo. Em uma metáfora histórica é como se estivéssemos naquele período da “paz armada” que precedeu a Primeira Guerra Mundial.
Mas, na terra brasilis, digamos que o estouro bélico deve ocorrer só nas eleições presidenciais de 2022. Há, contudo, um cenário possível embora ainda improvável nesse momento: o de que o andamento do processo leve à inegibilidade de Bolsonaro. Nesse sentido, não é mera retórica dizer que a pauta do voto impresso sintetiza e antecipa o embate entre Executivo e Judiciário no país, mas que pode muito bem estourar antes.
Existem possibilidade interessantes a serem aventadas, mas ao mesmo tempo, o caso nos convida a uma retrospectiva. Como em um movimento freudiano de retorno das questões mal resolvidas, as eleições do ano que vem retomam o dilema do pleito de 2018 quando, de forma essencial, pode-se dizer que o que estava em jogo já era a sustentação da democracia brasileira. Contudo, à época, o STF e o próprio TSE não levaram as ameaças a sério. Hoje, com ataques robustos ao Judiciário (vale lembrar da noite em que mascarados com tochas foram para a frente do Supremo ou como nas manifestações pelo retorno do tal voto impresso há inúmeros cartazes pedindo o fechamento do Tribunal e o afastamento dos seus ministros), não há muito espaço para ingenuidade. Ou seja, as promessas ignoradas pelas instituições brasileiras parecem ter se tornado mais contundentes do os “puros de coração” poderiam imaginar.
Questões mal resolvidas
Pensando nas diferenças de 2018 para 2022, o Supremo fez um interessante movimento de mudança de rota. A posição favorável a prefeitos e governadores na gestão da pandemia de Covid-19 e a inclusão de Bolsonaro no inquérito das fake news são pontos de destaque, mas nenhum se compara ao julgamento que determinou a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, selou o fim da Operação Lava Jato e trouxe o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de volta ao jogo político. Ter Lula como adversário mais forte na disputa eleitoral foi, sem dúvida, o maior revés que a cúpula do Judiciário impôs a Bolsonaro no contexto atual. Para quem conhece o mito grego do Kraken (soltem o monstro!) vale muito a comparação.
Contudo, esses três momentos (inquérito das fake news, julgamentos favoráveis a prefeitos e governados e a suspeição de Moro) devem ser lembrados dentro de uma lógica própria com dois senões. O primeiro é a de que o Supremo não é uno. Embora Bolsonaro tenha conseguido a façanha de criar uma quase unânime coalizão entre os ministros, o mais novo componente do Tribunal, Kássio Nunes Marques, será sempre uma ponta de apoio ao presidente dentro da instituição. Suas declarações favoráveis ao voto impresso são o exemplo mais recente. O segundo diz respeito à natureza do próprio Judiciário, em especial da sua cúpula, que não é o de enfrentamento direto. Difícil imaginar algo do tipo olhando a própria história brasileira e latino-americana. O traço estratégico do comportamento do Judiciário pesa. Mas, aqui, no caso, a estratégia parece ser a autopreservação. Ainda assim, seria de se espantar se ela ocorrer de forma frontal. Daí a “paz armada” com as munições postas na mesa faz mais sentido.

Dessa forma, o que temos hoje é uma antecipação do que se estenderá até 2022. Bolsonaro segue seu movimento das ruas falando no que seria o “voto impresso auditável”, uma forma mais polida para propor o inverossímil, uma vez que o atual sistema das urnas eletrônicas já é auditável e que voltar ao voto impresso seria, como dizem os melhores memes, a mesma coisa que trocar o celular por telefones públicos de ficha. No fundo, a pauta do voto impresso desvia a atenção do desastre da condução da pandemia no Brasil e anima as ruas criando uma desculpa possível para a não reeleição de Bolsonaro em 2022. O roteiro foi usado por muitos, Trump é o exemplo máximo.
Paz armada
No quadro brasileiro, a novidade é que o ministro Alexandre de Moraes estará à frente do TSE durante as eleições de 2022 e, nunca é demais lembrar, que é ele quem também comanda o inquérito das fake news no qual agora Bolsonaro é parte. Atacado de maneira mais direta nos últimos tempos, o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, fez um discurso contundente contra os ataques à democracia brasileira. Não citou nomes, mas não era necessária clarividência para saber seu destinatário. O discurso veio no dia das ações mais concretas contra o governo nos últimos tempos.
As armas estão postas, mas como foi dito, o cenário de um embate direto a preço de hoje ainda é pouco provável, mas um andamento da investigação que leve à ilegibilidade não está descartado. Ironia máxima: Bolsonaro seria impedido de concorrer como Lula foi em 2022. Contudo, uma tensão arrastada até lá é mais provável.
As grandes chances são de que, em 2022, possamos sair da paz armada para a guerra-relâmpago (blitzkrieg). Até lá, TSE e STF dão uma resposta institucional às manifestações de rua. De uma forma ou de outra, a disputa eleitoral já é uma realidade não só para os partidos e candidatos, mas para a frágil democracia brasileira que tem que lidar com os estragos da falta de atenção aos inúmeros alertas do passado. O Judiciário, é fato, está tendo que lidar com os erros cometidos.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga). Seu trabalho se volta para a relação entre política, justiça e mídia.