Obama no Brasil
A vinda de Obama ao Brasil coloca muitas interrogacoes. O que mobiliza o presidente dos EUA? A evolucao surpreendente da crise do Oriente Medio pode dificultar o acesso ao norte-americano ao petroleo da rgiao, numa situacao como essa, o pre-sal brasileiro entra na agenda estadunidense e ganha maior importanciaSilvio Caccia Bava
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– Havia primeiro a ideia de que a presidente Dilma fosse aos Estados Unidos, mesmo antes da sua posse, para estreitar relações com o governo estadunidense. Isso aconteceu em várias oportunidades no passado. Ela não foi e Obama resolveu vir para cá. Que significado tem isso?
SEBASTIÃO VELASCO– A visita da presidente Dilma aos Estados Unidos foi um convite do Obama. E a resposta brasileira foi que isso não seria possível imediatamente porque a presidente estava concentrada na tarefa prioritária de compor o seu governo. A organização da agenda presidencial é um gesto carregado de simbolismo. A primeira viagem internacional da presidente do Brasil foi à Argentina, e não aos Estados Unidos, e isso diz alguma coisa para os dois países, para a região e para o mundo.
O que estava estabelecido é que haveria uma visita de Dilma aos Estados Unidos em março deste ano. Foi uma surpresa o anúncio, no discurso de Obama ao Congresso, de que ele viria ao Brasil. O significado é a disposição política de reatar as relações no nível muito bom que existiram em passado próximo, apesar das diferenças ideológicas que são sabidas e dos posicionamentos discrepantes do Brasil em relação a políticas importantes dos Estados Unidos.
Logo no início do governo Lula, o mundo foi comovido pela decisão dos Estados Unidos de invadir o Iraque, a despeito da decisão contrária do Conselho de Segurança da ONU. A posição do Brasil antes e depois dessa decisão foi claramente crítica. O governo brasileiro não se limitou à emissão de uma nota diplomática, mas promoveu intensa movimentação diplomática, que envolveu com destaque a figura do presidente: Lula se encontrou com chefes de Estado na Europa e se colocou – sozinho e em conjunto com os seus pares – frontalmente contra aquela iniciativa.
Também as negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio, a OMC, sob a liderança do Brasil e em conjunto com a Índia, contrariaram as propostas dos Estados Unidos para as negociações comerciais. Isto se deu na Conferência de Cancun, em 2003, que terminou num impasse. A rodada Doha continuou e se arrasta até hoje, mas um conjunto de temas que eram muito importantes para os Estados Unidos e também para a Europa simplesmente foi retirado da pauta. Não obstante tudo isso, a relação política entre os dois governos e os dois presidentes foi muito boa. Lula tinha uma relação espontânea e muito afável com o presidente Bush, que veio duas vezes ao Brasil.
DIPLOMATIQUE– E como as relações Brasil-Estados Unidos ficaram com a eleição de Obama?
VELASCO– A princípio, tudo levava a crer que iriam ficar melhores ainda. Todos nos lembramos da forma efusiva com que o presidente Lula recebeu a notícia da vitória de Obama, na qual, aliás, ele expressava o sentimento de parcelas amplamente majoritárias da opinião pública brasileira. E não é só isso, os primeiros meses do governo Obama foram marcados por manifestação de simpatia e de atitude surpreendentemente aberta em relação à América Latina…
DIPLOMATIQUE– Essas expectativas se confirmaram?
VELASCO– Não, em grande medida elas foram frustradas. Veja a questão de Honduras. O Obama deu uma declaração quase impensável na boca de um presidente americano: “Não queremos a volta desse passado de golpes de Estado”.A declaração da Hillary Clinton foi crítica também… mas mais cautelosa. À medida que a crise foi se prolongando, Obama passou a ser apresentado na imprensa conservadora e nos blogs da direita americana como o menino de recados do Hugo Chávez e do Fidel Castro. Durante quase um ano, o governo americano não conseguiu aprovar o embaixador para o Brasil, o Shannon, porque os republicanos no Senado bloqueavam a votação. Houve nos Estados Unidos, nessa época, uma mobilização muito grande da opinião de direita, os anticastristas da Flórida e assim por diante e, dentro do governo americano, uma diferença de pontos de vista entre a presidência, a Casa Branca, o grupo que assessora diretamente Obama, de um lado, e o Departamento de Estado, de outro.
Os advogados do grupo que se assenhoreou do governo em Honduras eram dois auxiliares do Clinton. Dois auxiliares do Clinton que funcionavam como lobistas. Não eram figuras quaisquer, eram da entourage do Clinton. Então, Obama, ao longo do tempo, foi se deslocando, como ele fez em relação a tantas outras coisas e no final acabou defendendo uma solução, um encaminhamento para aquele problema, que era a consagração do que os golpistas queriam.
DIPLOMATIQUE– A mesma coisa com Guantánamo?
VELASCO– A mesma coisa com Guantánamo. Ele foi recuando, recuando.Quanto ao Irã, o governo Obama também começou fazendo gestos de abertura muito grande, inéditos, mas terminou optando por uma linha que apostava tudo em retaliações crescentemente severas, por iniciativa própria do executivo, mas também porque estava sendo pressionado por iniciativas no Congresso que acabaram sendo aprovadas: sanções mais fortes, muito mais restritivas que aquelas aprovadas no Conselho de Segurança da ONU.
Logo no início do mandato de Obama foi tentada uma negociação pela qual o Irã entregaria urânio a ser enriquecido pela França, que depois seria devolvido ao Irã para uso com fins pacíficos, uso civil da energia nuclear. As conversações foram abertas nesses termos, mas no meio do caminho ocorreu a eleição no Irã, cujo resultado foi fortemente contestado pela oposição. Com a crise decorrente desse conflito, a negociação desandou. Mas a ideia de uma solução diplomática não foi enterrada. O Brasil, que mantinha canais de diálogo abertos com o Irã, foi incentivado a pegar o bastão e conversar. Pois bem, o Brasil se lançou nessa intermediação, em parceria com a Turquia, e conseguiu o acordo contra a expectativa de todos.
No dia seguinte à sua divulgação, a secretária de Estado, Hillary Clinton, reagiu de forma brutal a esse acontecimento, o que provocou um abalo indisfarçável na relação política entre os dois países. O certo é o seguinte: essa não foi a primeira situação em que o presidente Obama se viu colocado em situação embaraçosa pela evolução do jogo de forças dentro dos Estados Unidos. Em relação a Honduras, foi a mesma coisa.
DIPLOMATIQUE– A OMC deu ganho de causa ao Brasil numa acusação de que a política norte-americana de subsídios e tarifas estava bloqueando o mercado norte-americano para o algodão brasileiro. E há uma lista que o governo brasileiro está preparando, com elementos de retaliação. Os jornais da grande imprensa estão anunciando que Obama assinará aqui um acordo comercial entre o Brasil e os Estados Unidos. Isso é uma resposta, de alguma maneira, para esse embargo da OMC?
VELASCO– Não, não. As indicações que eu ouvi são sobre a criação de uma estrutura que possibilite e facilite entendimentos futuros na área comercial. Quando o governo anunciou que iria retaliar – inclusive de forma cruzada, atingindo interesses na área da propriedade intelectual –, negociadores americanos vieram ao Brasil antes da adoção efetiva dessas sanções e acertaram um pacote de compensações que foi considerado satisfatório pelo governo brasileiro.
DIPLOMATIQUE– Por que a questão da propriedade intelectual é um nervo exposto na relação com os EUA?
VELASCO – A propriedade intelectual é, para o Estado americano, desde meados dos anos 1980, a joia da coroa. É aí que reside o segredo da superioridade econômica e da primazia política dos Estados Unidos no mundo.
Na história do capitalismo, a propriedade intelectual foi ganhando importância crescente. Em meados do século XIX, sua preservação deu origem a acordos internacionais, convenções internacionais que regulamentavam patentes, copyrights e assim por diante. No final do século passado, nos EUA, a percepção da importância estratégica, sobretudo para alguns grupos econômicos – indústria farmacêutica, indústria do entretenimento, indústria de informática – de assegurar o direito sobre esses bens intangíveis gerou a disposição de reformular as leis, ampliando esses direitos e punindo de forma muito mais drástica, como crimes, a violação deles. Feito isso, quase que de imediato, teve início uma campanha para transformar essa legislação em uma legislação de caráter internacional ou universal.
DIPLOMATIQUE– Ao que parece, as falas de Obama e a política de Estado dos EUA em relação à América Latina, à América do Sul, não combinam. Por exemplo, o acordo das bases militares na Colômbia, a tentativa de desestabilização dos governos do Equador, da Venezuela, da Bolívia, todos integrantes da Alba, Aliança Bolivariana para as Américas. Depois, com sucesso, em Honduras. Há várias informações que nos dizem que a própria preparação do golpe contou com a participação dos norte-americanos.
VELASCO– Não há nada de novo.
DIPLOMATIQUE– Então, o que é que o Obama vem fazer aqui?
VELASCO– Bom, no meu entender, ele vem tentar aparar as arestas que se produziram na relação entre os governos no final do período, não é? Basicamente em 2009, com a crise de Honduras, e em 2010, com o incidente a respeito da votação na ONU das sanções contra o Irã. E vem preparar o terreno para que as empresas americanas aproveitem mais intensamente as oportunidades geradas pelo dinamismo da economia brasileira.
DIPLOMATIQUE– Mas o Brasil tem tanta importância assim para o presidente dos Estados Unidos se dar ao trabalho de vir aqui?
VELASCO– O Brasil tem muita importância, se considera importante, e os Estados Unidos atribuem ao Brasil importância grande, embora menor do que o governo brasileiro gostaria. Há poucos dias o embaixador Abdenur – diplomata muito experiente, que já representou o Brasil em Washington e depois se converteu em crítico acerbo da política externa do governo Lula – afirmou que “Obama cometeria um erro grave se viesse aqui e não declarasse seu apoio ao ingresso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, como fez em relação à Índia quando visitou o país”.O problema é que os Estados Unidos não veem o Brasil e a Índia da mesma forma. No documento de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a Índia aparece ao lado da China e da Rússia como centros-chave de influência no mundo. O Brasil aparece como país de influência crescente. A diferença pode parecer sutil, mas é outra coisa, outra categoria.
DIPLOMATIQUE– Anuncia-se que o Brasil está fazendo um acordo bilateral de comércio com os EUA. Isso “fura” com a lógica do Mercosul?
VELASCO– Não, ao que tudo indica é um acordo que não compromete o Brasil com a ampliação do acesso de produtos americanos ao mercado brasileiro. Acho muito difícil imaginar que o Brasil viesse a celebrar com os Estados Unidos um acordo em separado que criaria grandes percalços a um processo de integração que, afinal, é a obra principal da diplomacia brasileira desde o final dos anos 1980.
DIPLOMATIQUE– Vamos falar da valorização do real. A política norte-americana está induzindo a valorização de algumas moedas de países emergentes. E isso traz um sacrifício enorme para a economia brasileira em termos de exportações, de competitividade e tudo o mais. Os Estados Unidos estão impondo que esses países, incluindo o Brasil, paguem a conta do seu desajuste?
VELASCO– Já vimos esse filme antes. Os Estados Unidos são detentores da moeda de referência na economia internacional. Esse manejo da política monetária e fiscal tem efeito direto nas relações cambiais porque os EUA são a maior economia do mundo, com impacto direto, imediato e muito forte sobre todas as demais. Agora, o efeito do dinheiro fácil que se produz como resultado das decisões de política econômica nos Estados Unidos varia muito de país para país. Nós temos razões internas para estar com o real tão apreciado como está. A taxa de juros é muito elevada e isso tem a ver com os nossos problemas internos, e não com a política dos Estados Unidos.
DIPLOMATIQUE– Tem alguma coisa da agenda que não está nos jornais?
VELASCO– Cuba é um problema para o governo Obama. Venezuela também. E o Brasil tem relações muito boas com os dois países. Em qualquer avanço nas relações entre os EUA e Cuba, ou EUA e Venezuela, o Brasil certamente terá um papel importante a desempenhar. As questões de relacionamento político dos Estados Unidos, com a América do Sul, obviamente, estão presentes. Há 15 anos, a ideia de que os países da América do Sul sentassem à mesa, discutissem problemas e aventassem soluções sem a presença dos Estados Unidos, era impensável. Hoje não, isso acontece de forma rotineira no âmbito de uma organização peculiar como a Unasul.
A Unasul converteu-se num espaço de coordenação política muito importante. Nós vimos isso na crise da Bolívia, em 2008. Crise que foi administrada regionalmente com a explícita exclusão dos Estados Unidos na condução do processo. A partir do momento em que o Evo Morales expulsou o embaixador americano, deslocou os Estados Unidos da gestão da crise. E foi no âmbito da Unasul que a solução foi encontrada. A Unasul não é o Brasil, mas o Brasil tem o papel de protagonista desse processo de integração econômica e política regional.
DIPLOMATIQUE– Essa situação ajuda a esclarecer os objetivos da visita, não?
VELASCO– Sim, mas há algo mais. O Brasil se credencia para ser referência em muitos debates no plano global. Agora, tudo isso fica muito reforçado quando, por esforço nacional, e com tecnologia nacional, se descobre uma reserva como essa do pré-sal, que abre um campo enorme de possibilidades tanto no plano da extração do óleo quanto da transformação industrial em inúmeras cadeias produtivas. Então, desde 2008, os analistas políticos e de mercado avaliam que em algumas décadas o Brasil será um país com posição muito relevante no quadro internacional. Eu acho que essa avaliação está presente nas decisões do governo americano e é também por isso que Obama estará aqui. O Brasil não é um fator desprezível. É um fator decisivo na região e fator significativo em nível de política internacional.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.