Óbito também é alta: o novo mantra do terror
O Julgamento dos Médicos em Nuremberg produziu o primeiro entendimento internacional documentado como referência para que nunca mais seres humanos fossem submetidos a qualquer experiência clinica sem que expressamente concordassem em se submeter, bem como garantindo-lhes o direito a dela se retirar, quando assim desejassem
“O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão lúcida.”
(Código de Nuremberg, 1947 – Julgamento dos médicos nazistas por crimes de guerra perante o Nuremberg Military Tribunal – NMT)-
Tiergartenstraße 4 (Rua Tiergarten n°4). Eis o endereço da cidade de Berlim que marcou a história da humanidade como um dos inúmeros locais de consciência atualmente mais significativos e visitados na capital alemã. No local, hoje, localiza-se o pátio da Orquestra Filarmônica de Berlim com o qual conjuga-se harmonicamente, do ponto de vista urbano – como é comum atualmente na bela e reconstruída capital alemã – o memorial às vítimas do projeto de “eutanásia” (o Projeto T4) concebido e executado pelo regime nazista durante o período do III Reich, dentre outra centena de memoriais e centros de memória (um conceito mais amplo e complexo).
O Projeto T4 ou Aktion Tiergartenstraße 4 consistiu no que ficou eufemisticamente conhecido por programa de eutanásia do regime nazista. Contudo, ao contrário do que se pode pensar, já que o termo eutanásia implica abreviação da vida de um paciente que deseja adiantar sua morte em condições de decidir de forma consciente, tratava-se de um programa de assassinato de crianças, jovens e, posteriormente, adultos acometidos por patologias psiquiátricas ou, ainda, por deficiências físicas.
Liderados por Philipp Bouhler, diretor da chancelaria de Hitler e pelo médico Karl Brandt, por muitos considerados o principal médico do regime, o projeto tem início em 18 de agosto de 1939 quando o Ministério do Interior do Reich determinou que todos os médicos, enfermeiros e parteiras identificassem recém-nascidos e crianças abaixo de três anos de idade e que fossem portadores de incapacidade mental ou física grave.
O caso que desencadeou o projeto foi o denominado “Caso Knauer”, uma criança nascida sem pernas e braços em Leipzig, filha de casal de membros da SS (a tropa de elite ideológica do regime), exterminada e que o médico Karl Brandt acompanhou pessoalmente, a pedido de Hitler.
O programa avançou e em outubro de 1939 pais de crianças com deficiências foram incentivados por autoridades públicas a interná-las para tratamento em clínicas indicadas pelo Estado na Alemanha e na Áustria. Em tais locais, as pequenas vítimas eram assassinadas por injeções leais ou por inanição. O programa, então, passou a matar jovens de até 17 anos e logo foi estendido aos adultos. Visando proteger as equipes médicas participantes foi assinada autorização secreta por Hitler, retroativa a 1º de setembro de 1939, data do início da Segunda Guerra, de modo a camuflar o programa que seria o precursor das câmaras de gás e do Holocausto.
Brandenburg, Grafeneck, Bernburg, Sonnenstein, Hadamar e Hartheim eram clínicas para onde as vítimas eram levadas e assassinadas, sem consciência do destino que lhe aguardava, também ignorado por suas famílias que acreditavam que seus entes queridos estavam sendo bem cuidados. Somente passavam a saber da morte quando recebiam as cinzas em urnas e cartas de condolências com falsos diagnósticos e causas da morte.
Estima-se que em torno de 250 mil vítimas tenham sido assassinadas por este programa que envolvia o conluio criminoso entre o Estado nazista, clínicas e médicos e que seria também inspiração para experiências médicas cruéis realizadas nos campos de extermínio.
A simbiose entre um Estado totalitário e profissionais da medicina que aderiram ao terrorismo de Estado e que pela primeira vez na histórica passavam a usar a farda como “soldados biológicos” do regime racista gerou para a humanidade o legado eugênico e a memória histórica viabilizada pelo chamado “Julgamento dos Médicos” ou “Caso 1”, o primeiro do Nuremberg Military Tribunal (NMT), entre 9 de dezembro de 1946 e 20 de agosto de 1947, que resultou em sete penas de morte; cinco penas de prisão perpétua; quatro condenações a penas variadas e sete absolvições.
O Julgamento dos Médicos em Nuremberg produziu o primeiro entendimento internacional documentado como referência para que nunca mais seres humanos fossem submetidos a qualquer experiência clinica sem que expressamente concordassem em se submeter, bem como garantindo-lhes o direito a dela se retirar, quando assim desejassem: o Código de Nuremberg, de 1947.
O alerta que irrompe das experiências da história recente tangencia o inevitável, ou seja, que o passado, cedo ou tarde, bate à porta e, se ignorado, consome o presente. Não sem razão, escreveu Jacques Le Goff que “a memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro” (LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2003, 5ª ed., p.471).
Assim, cumpre recordar que as bases teóricas do ideário nacional-socialista jamais deixaram dúvidas sobre a sua busca megalômana e desumana pela construção de um Reich de mil anos composto por uma raça superior e dominante. Para tanto, como afirma Peter Cohen em seu brilhante trabalho cinematográfico intitulado Arquitetura da destruição (1989), em seus propósitos delirantes, o nacional-socialismo tinha por sonho “criar através da pureza um mundo mais harmonioso” e, para tanto, “alertava sobre um mundo prestes a ruir que ameaçava mergulhar a terra na escuridão eterna”; julgava-se responsável por salvar tal mundo, ainda que para tanto fosse compelido a destruir a própria humanidade.
Povos que não conhecem o passado ou se recusam a aprender com ele, cedo ou tarde, passam a apresentar sintomas próprios de velhas e conhecidas doenças, como agora é revelado a um Brasil atônito e chocado com a banalidade do mal, de Hannah Arendt ou, ainda, com a sociedade desumanizada, de Max Weber.
Óbito também é alta, esta foi uma das últimas falas colhidas no depoimento que a advogada Bruna Morato prestou à Comissão Parlamentar de Inquérito, em 28 de setembro de 2021, referindo-se ao caso Prevent Senior e a uma espécie de máxima adotada no atendimento dos pacientes, todos idosos, internados com Covid-19.

A frase torna-se, a partir desta semana, o rótulo macabro de um país que vem perdendo seus parâmetros morais com assustadora velocidade.
É fato que o referido depoimento constitui elemento de investigação que precisará se somar a outros, a fim de que sua veracidade se confirme, afinal, em um estado de direito, como regra geral, não basta alegar, é preciso provar. Os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório devem ser respeitados por mais repulsiva que se repute a conduta do agente. Não obstante, diante da gravidade das acusações, inegável que as investigações precisarão ser aprofundadas, assim como também é inegável a necessidade de refletirmos a respeito do porquê de as declarações terem causado tanta repercussão.
De acordo com o que foi apurado até o momento, além de terem sido submetidos a tratamentos com medicamentos cuja eficácia é contestada em diversos estudos científicos, há suspeita de que os pacientes também tenham integrado um protocolo de experimentação científica, sem o devido consentimento informado; há relatos, ainda, de que tenha sido realizado o manejo de pacientes da unidade de terapia intensiva para leitos híbridos, isto é, que tenham sido transferidos da UTI para a unidade de cuidados paliativos e que essa conduta tenha antecipado o momento da morte desses pacientes, provocando-lhes a eutanásia. Estas são questões que conjugam áreas distintas do saber e que invocam conceitos médicos, éticos e jurídicos no âmbito da Bioética e do Biodireito.
Nesse contexto, a Bioética, como disciplina que se dedica a estudar os dilemas morais resultantes da união entre as ciências da vida e a técnica científica (Bios = vida + Ética = comportamento, costume, morada) impõe a seguinte pergunta: a atividade científica é neutra ou deve observar um mínimo ético para que se realize? Essa indagação orienta a bioética clínica em sua atuação por intermédio dos respectivos comitês e conduz à ponderação derradeira de que é a ciência que deve estar a serviço da humanidade, e não o contrário. Por essa razão, princípios como beneficência, não maleficência, justiça e autonomia, sustentados pela bioética de matriz principialista (Beauchamp e Childress), ao lado do consentimento livre e esclarecido, consubstanciam valores éticos mínimos e constituem alicerces da boa prática médica e científica.
O Biodireito, por sua vez, área de estudo que consagra a quarta dimensão dos direitos humanos, atua não somente com enfoque ético, mas assume a instância jurídica que lhe é própria, impondo-se a seguinte pergunta: é possível afirmar limites à ciência? Antes de oferecer resposta a essa indagação, é preciso registrar que liberdade de pesquisa científica é um direito fundamental, assegurado em nossa Constituição e que, portanto, ao Biodireito é reservado o papel de figurar como fiel da balança, assegurando de um lado o exercício da liberdade de pesquisa científica e, do outro, salvaguardando a dignidade humana, coluna vertebral do ordenamento jurídico.
Partindo dessas premissas podemos afirmar que os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito têm, sobretudo nas últimas semanas, colocado em destaque assuntos que são comuns a essas duas áreas do saber. É preciso atentar, todavia, que somente a partir do conhecimento prévio da Bioética e do Biodireito será possível empregar os termos técnicos, com a devida correção, a fim de que possam colaborar para o esclarecimento das ações, bem como para que contribuam no esclarecimento de possíveis responsabilidades.
Desse modo, no caso da Prevent Senior, a acusação envolvendo experimentação científica realizada sem autorização dos pacientes causou estarrecimento porque acreditávamos que a prática estivesse atrelada a uma fase da história que já se encontrava superada e que, portanto, não voltaria a nos assombrar em pleno século XXI.
A experimentação científica em seres humanos, sem a devida anuência dos participantes, marca um capítulo trágico do desenvolvimento científico. Casos emblemáticos que vão desde os horrores praticados nos campos de concentração da Alemanha nazista até o famoso experimento Tuskegee, ocorrido na cidade do Alabama, nos Estados Unidos, no qual homens negros foram utilizados como cobaias humanas para que os cientistas pudessem estudar a progressão da sífilis, revelaram a necessidade de afirmar normas éticas e jurídicas que fossem capazes de impedir violações à dignidade humana. Assim, com intuito de proteger a humanidade de abusos praticados em nome do progresso científico foram elaborados alguns documentos, dentre os quais destacamos, o Código de Nuremberg (1947); a Declaração de Helsinque (1964), em suas diversas edições, e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), entre outras.
Esses documentos reconhecem a vulnerabilidade como característica inerente à condição humana, bem como o fato de que, a todo momento, a dignidade humana pode ser colocada em xeque em decorrência das práticas realizadas no campo da biomedicina e da biotecnologia; reconhecem o descompasso entre a medicina, as ciências da vida e o mercado, que segue a lógica do modo capitalista de produção, no qual tudo tem um preço e nada tem valor, para lembrarmos a distinção feita por Kant; e, por fim, todos integram um campo de estudo interdisciplinar que se estabelece entre a Medicina, o Direito e a Ética, vale dizer, entre a Bioética e o Biodireito, no qual convergem temas relacionados não apenas à pesquisa científica envolvendo seres humanos, haja vista a questão dos aspectos éticos e jurídicos da pesquisa com embriões humanos, tema que se relaciona com início da vida humana, mas também temas que alcançam a outra ponta do processo vital (José Afonso da Silva), e que estão relacionados à terminalidade e à finitude da vida.
Nessa outra ponta podemos nos deparar com termos como eutanásia, ortotanásia, suicídio assistido, distanásia, mistanásia e cuidados paliativos. Expressões que se relacionam, mas que não podem ser confundidas, sob pena de mitigarmos condutas que devem ser consideradas em suas justas medidas.
A título de exemplo acerca da importância de se empregar esses conceitos com a devida correção, não há que se confundir a eutanásia, que consiste na antecipação da morte a pedido do paciente, prática que, registre-se, é vedada em nosso ordenamento jurídico, com a mistanásia que, em apertada síntese, pode ser entendida como a morte miserável, que ocorre em virtude da omissão do Estado em prestar a devida assistência à saúde.
Se no caso da Prevent Senior tiver havido, de fato, a retirada intempestiva de pacientes de leitos de UTI e o encaminhamento para a unidade de cuidados paliativos, e se esta transferência se deu à revelia dos pacientes, provocando-lhes abreviação da vida e antecipação da morte, não se trata de eutanásia, mas de mistanásia, conforme descrito acima, com consequências éticas e jurídicas distintas.
Assim, os fatos que vieram à tona nos últimos dias nos fizeram relembrar os deploráveis episódios históricos ocorridos na primeira metade do século XX. O lado positivo, porém, consiste em admitir que a partir daqueles eventos trágicos consagramos normas éticas e jurídicas que agora, no século XXI, serão capazes de tutelar cada um de nós; a partir daqueles acontecimentos funestos, compreendemos que a ciência deve se pautar pelo respeito aos direitos humanos e à bioética e, sobretudo, a partir daquela barbárie desenvolvemos uma nova consciência, que permite nos insurgirmos quando nos deparamos com possíveis violações à dignidade humana e a exigir das autoridades apuração, responsabilização e reparação. Afinal, como escreveu o filósofo Mendo Castro Henriques em prefácio à obra Hitler e os Alemães (Ed. É Realizações, 2007, p.10), do pensador alemão Eric Voegelin, “o desafio mais importante não é fazer história narrativa e ‘dominar o passado’ (Vergangenheitsbewältigung), mas sim fazer história crítica e ‘dominar o presente’”.
Renata da Rocha, doutora em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP, especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra e graduada em Direito e Filosofia, é professora de Biodireito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de Biodireito e Bioética na Pós-Graduação em Direito Médico na Escola Paulista de Direito (EPD), membro consultivo do Comitê de Bioética do Hospital do Coração (Hcor), coordenadora do Curso de Extensão em Biodireito e Bioética: Dilemas Acerca da Vida Humana do Hcor, pesquisadora do Grupo BIÓS- Biodireito. Bioética e Biopolítica – PUC-CNPQ e autora das obras O direito à vida e a pesquisa científica em células-tronco: limites éticos e jurídicos (Campus Elsevier, 2008) e Fundamentos do Biodireito (Juspodivm, 2018).
Flávio de Leão Bastos Pereira, doutor e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo International Institute For Genocide and Human Rights Studies (Zoryan Institute) da University of Toronto (Canada), é membro do rol de especialistas da International Nuremberg Principles Academy, Alemanha, professor convidado da Universidade Tecnológica de Nuremberg Georg Ohm – Faculdade de Serviço Social (2020-2021), Correspondente no Brasil do Blog sobre Justiça de Transição da Universidade de Maastricht, pesquisador dos Grupos de Pesquisa sobre Políticas Públicas (Universidade Presbiteriana Mackenzie) e sobre Sistema de Justiça e Estado de Exceção (PUC-SP) e pesquisador selecionado para a Cátedra Otávio Frias Filho sobre Comunicação, Diversidade e Democracia – Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) em projeto conjunto com o jornal Folha de S.Paulo (desde setembro de 2021).