Odradek e os personagens
Como lidar com o peso daquilo que é criação e que é inexistente, mas que ainda assim sobrevive ao tempo e nunca se desgasta?Olivia Maia
“Não faz mal a ninguém, mas a idéia de que possa sobreviver-me é quase dolorosa para mim.” – Franz Kafka
Kafka criou, no conto “A preocupação de um pai de família”, um troço (e por ora que seja essa a melhor palavra para descrevê-lo) chamado “Odradek”. E ele me volta toda vez que resolvo, por qualquer motivo, pensar a literatura. Volta não convidado, como seria conveniente ao Odradek, que vive no vão da escada, no saguão ou nos corredores. Sempre nos lugares de passagem, onde nunca se fica.
Mais que isso, o Odradek é um ser impossível, feito de uma descrição imprecisa e que, entretanto, existe.
Existe? Ele consta no Livro dos seres imaginários, do Borges. Mas isso pouco importa. A questão é que o Odradek ultrapassa o nosso tempo cronológico, como se não fizesse parte dele. Jamais se desgasta, e talvez por isso exista na barreira entre o real e o imaginário, entre o possível e o impossível, como o espelho da Alice é uma passagem para um outro mundo, tão diferente quanto é possível.
Inutilmente nos perguntamos o que acontecerá ao Odradek. Kafka escreve: “Pode morrer? Tudo o que morre teve antes um objetivo, uma espécie de atividade, e assim se gastou; isso não acontece com Odradek”.
E escrevemos. Será que há algum senso de responsabilidade quando saímos por aí inventando gente e criando vidas? Como lidar com o peso daquilo que é criação e que é inexistente, mas que ainda assim sobrevive ao tempo e nunca se desgasta?
Morremos. A literatura permanece. Os personagens vivem para sempre. Eis a sina de todo escritor. Voltamos ao Odradek de Kafka, silenciosamente dizendo tudo o mais que se poderia dizer sobre a literatura e o tempo. Porque a idéia que ele possa nos sobreviver é sempre quase dolorosa.
E então matar um personagem no meio do livro, ou ao final de uma série de livros, pode ser uma forma de torná-lo humano. E que isso seja necessário, para alguns.
Compaixão ou egoísmo?
Talvez seja válido dizer que existe a literatura porque existe a morte.
É certo que deve ser mais fácil se acostumar à idéia de que a vida no planeta continua depois da sua morte, do que crer que o inexistente permanece intocado através dos anos. A quem não escreve isso pode parecer tolice. Mas é inevitável se deparar com um personagem antigo e esquecido, vagando pelas escadarias e corredores, sempre disponível para qualquer outra narrativa. Eternamente disponível. Vivo. Ele que ao final do livro – o clichê não é necessário, mas convém – sumiu no horizonte. Está? É?
Existe. Ninguém com um mínimo de coração vai duvidar da existência de um personagem de ficção. A razão não tem dificuldades para apontar o dedo e saber que não passa de um punhado de letras ordenadas. Mas que é que a gente sabe sobre a imaginação, para ter assim tanta certeza?
Então matar um personagem. Pode ser o egoísmo de um escritor que não suporta viver com a imortalidade de um ser inexistente. Mais que isso, é não suportar a própria mortalidade. Como pode o inventado sobreviver a tudo que é tão mais real e certo? O inexistente sobreviver ao existente?
E então às vezes pode ser o caso de se questionar de que diabos serve tudo isso. O imaginário persiste enquanto existir quem o imagine. Enquanto existir letra e enquanto existir língua, o texto irá nos sobreviver. Uma pausa para refletir e nos deparamos com o absurdo que é a representação.
Resta-nos a literatura? Lembro agora do poema “Tabacaria” (me vieram as palavras como ecos; procurei em minha estante pelos últimos livros lidos muito certa de que encontraria o que estava procurando):
“Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.”
Álvaro de Campos não estava tão certo disso, e em certos momentos também não estou. Que mais certo estivesse Alberto Caeiro, incapaz de aceitar o infinito. Antes matar os personagens. Talvez seja gesto de compaixão, permitir-lhes o fim e encerrá-los den