ONU: como se desfazer dela?
Pela segunda vez em cinquenta anos, as Nações Unidas reduziram, em dezembro, o seu orçamento. Se a crise financeira é a justificativa oficial, os Estados-membros, embora exibindo um compromisso público com a ONU, não hesitam em tentar escapar do espaço de influência do organismoAnne-Cécile Robert
O contraste surpreende desde a chegada: comparada à “torre de vidro” de Nova York, à qual as questões de paz e de segurança conferem certa solenidade, a sede da ONU em Viena mais parece uma pequena cidade estudantil. Quatro mil funcionários se agitam, percorrendo corredores decorados com obras de arte para todos os gostos (provenientes do mundo todo) e fotografias gigantes de capacetes azuis em ação. “Trabalhamos para as agências técnicas das Nações Unidas”, repetem de modo quase defensivo, para marcar bem a diferença com o caráter mais político das instâncias de Manhattan.
A capital austríaca é, ao lado de Nova York, Genebra e Nairóbi, um dos quatro quartéis generais da ONU. A algumas estações de metrô dos imóveis ricos da antiga cidade imperial, em um edifício em forma de estrela em que se reconhecem os anos 1960-1970, o Viena Internacional Center (VIC) abriga não menos de dez organismos (ver box). A França tem em Viena três embaixadores permanentes – junto à Áustria, à Organização para a Cooperação e a Segurança na Europa e à ONU –, quando a maioria dos outros países se “limita” a dois.
Dezenas de tratados, milhares de resoluções e de relatórios técnicos são negociados todo ano em locais do VIC. Longe dos olhares, diplomatas e juristas se dedicam eventualmente a conflitos de baixa intensidade sobre obscuras emendas ou formulações – é preciso falar em “lavagem de produto do crime” ou em “lavagem de dinheiro”? Mas o que está em jogo se revela às vezes mais importante, como quando se trata de definir o que é um ato terrorista. Em 8 de setembro de 2006, a Assembleia Geral da ONU adotou uma estratégia mundial de luta contra o terrorismo que se refere aos tratados adotados nessa esfera a partir de 1937. O Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime (ONUDC), com sede em Viena, é encarregado de favorecer a execução das medidas “de assistência técnica”: conselhos jurídicos, missões de campo, formação de magistrados etc.
Uma espécie de divisão das tarefas se desenha em escala mundial. Os Estados solicitam às agências técnicas da ONU que esclareçam e regularizem as ações de campo (desenvolvimento, cooperação científica etc.). Vários países do Sahel pediram que a ONU elaborasse um manual prático de luta contra o terrorismo; outros buscaram uma assistência técnica na luta contra a corrupção. Em contrapartida, para as grandes questões políticas, os Estados muitas vezes tendem a mobilizar as organizações regionais (a União Europeia − UE, por exemplo) ou grupos de potências, como o G8 ou o G20.1
Criados de maneira informal pelos países mais industrializados, os “G” funcionam como instâncias de decisão de fato. Permitem a seus membros se libertarem de procedimentos da ONU para editar regras sem a menor legitimidade. “Trata-se sobretudo de efeitos de propaganda”, atenua Jean-Pierre Bugada. “Essas reuniões não têm necessariamente consequências concretas, e a ONU continua sendo a ferramenta principal da comunidade internacional.” Se o diretor do escritório de informação regional da ONU sobre o Velho Continente se julga tranquilizador, reconhece porém que a organização “perdeu a oportunidade de fazer algo quanto à crise financeira”: na realidade, são o FMI, o Banco Mundial, na periferia do sistema da ONU, e a Organização Mundial do Comércio (OMC), completamente independente, que ocupam o terreno. O que faz a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) ou a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Internacional (Unido, siglas em inglês)? Diferentemente das instituições de Bretton Woods, essas organizações permanecem marcadas pelos jogos de interesses do desenvolvimento, principalmente dos países do Sul; elas não focalizam suas ações no livre-comércio ou nas finanças.
Chefe de serviço da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral, na sigla em inglês), Renaud Sorieul lamenta a marginalização do trabalho de uma instância em que a “ladainha” da cooperação internacional, e não somente da concorrência, se faz sempre ouvir, apesar dos lobbies patronais muito ativos. Sinal dos tempos, a data da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), prevista para junho de 2012, teria sido adiada quinze dias para se adaptar ao calendário do G20.
Navegação a olho nu
Em matéria de segurança internacional, em que a ONU – por intermédio de seu Conselho de Segurança – está à frente da cena, são os cinco países detentores do direito de veto que dão o “tom”, e a execução das decisões é muitas vezes confiada à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), como na Líbia, na primavera [do Hemisfério Norte] de 2011. “É um período de transição para as organizações mundiais”, avalia um alto funcionário francês que preferiu ficar no anonimato. “Os Estados parecem navegar às cegas: eles demonstram fidelidade ao multilateralismo, mas reavivam as relações bilaterais e procuram estabelecer, como antes de 1914, alianças ad hoc, que lhes permitem controlar a gestão de problemas pontuais, como as drogas ou o terrorismo.” De fato, os orçamentos dos escritórios da ONU em Viena cobrem apenas 10% de suas atividades. Para o resto, eles têm de recorrer caso a caso a financiadores. “Definimos projetos a pedido dos Estados ou da Assembleia Geral e em seguida buscamos os fundos”, explica Mauro Miedico, do Escritório das Nações Unidas contra as Drogas (UNODC, na sigla em inglês), antes de esclarecer que “se trata unicamente de fundos públicos, para evitar o conflito de interesses”.
Alguns escritórios da ONU sofrem cortes orçamentários brutais e drásticos, e os executivos confessam financiar eles próprios suas viagens a Nova York. Os contratos com prazo determinado se tornaram regra para o pessoal internacional, muitas vezes ultraqualificado. Em 23 de dezembro de 2011, a organização votou um orçamento com uma diminuição de 5% para 2012 e 2013 (menos US$ 260 milhões sobre um orçamento de mais de US$ 5 bilhões). “O período de fausto dos anos 1960 e 1970 parece bem distante”, suspira Bugada. “Na época, o dinheiro para o desenvolvimento corria em abundância.” Com o passar do tempo, a ONU se tornou uma pesada máquina burocrática – o Secretariado Geral emprega cerca de 44 mil pessoas no mundo –, que faz um trabalho cotidiano, mas não chega a participar dos grandes debates da sociedade. Além disso, algumas iniciativas, como a Global Compact no fim dos anos 1990, prejudicaram sua imagem nos meios associativos. Essa parceria visa reforçar as relações entre os escritórios e as grandes empresas a fim de aumentar a eficiência no campo. Não há um risco de conflito de interesses?2
“Só se fala da ONU quando as coisas vão mal; nunca para valorizar o que ela faz cotidianamente em campo. E para ressaltar as centenas de programas de saúde ou de ajuda a refugiados sem os quais milhões de pessoas no mundo não sobreviveriam”, observa um agente da Unido. No VIC, cada escritório – ou cada funcionário – realiza um projeto específico: um tratado a preparar, negociações delicadas, um “código de conduta” a atualizar, uma lei de base para terminar, um grupo de trabalho a estimular… Em seu pequeno escritório, Niklas Hedman, diretor adjunto do Escritório para Assuntos do Espaço Sideral (OOSA, na sigla em inglês), expõe meticulosamente os perigos da poluição causada pelos 12 mil engenhos espaciais lançados na atmosfera desde 1950. Com uma mão nervosa sobre o teclado de seu computador, esse sueco, diretor adjunto com ar de homem bom, apresenta o novo registro on-line dos objetos lançados ao espaço. “É apenas o início de um trabalho de informação e controle”, explica. Atrás dele, sobre uma prateleira cuidadosamente organizada, miniaturas de satélites ao lado de uma maquete do foguete vermelho e branco do professor Girassol. O Escritório para Assuntos do Espaço Sideral trabalha também como uma espécie de polícia da circulação espacial: quem é responsável em caso de colisão? Uma questão ainda mais sensível na medida em que países emergentes (China, Índia, Brasil etc.), mas também atores privados (Space Imaging etc.) se lançam na corrida espacial.
As agências da ONU tomaram consciência da necessidade de mostrar melhor seu trabalho e iniciam esforços de comunicação: distribuição de documentos, abertura de reuniões aos jornalistas, consulta a múltiplos atores etc. Mostram-se igualmente interessadas em trabalhar com as ONGs. Uma colaboração às vezes muito estreita, pois certos textos – como o tratado sobre a proibição das minas terrestres de 1997, conhecido como ICBL (International Campaing to Ban Landmines) – seriam simplesmente obra de uma ONG.
Pequenas guerras de trincheiras
Mas não é certo que a mescla de atores públicos e privados, que se associam, contribua no fim das contas para a clareza dos processos e para seu controle democrático. Sem contar a propensão dos agentes da ONU e de seus comparsas associados a usar um jargão às vezes desencorajador, em que se misturam acrônimos enigmáticos, referências cifradas e discursos ininteligíveis, como inglês de aeroporto. Assim, há alguns meses, nos corredores da ONU, nos chats e em outras redes, só se fala da possível substituição dos “ODM” pelos “ODD” quando do encontro Rio+20. Traduzindo: “objetivos do milênio” e “objetivos do desenvolvimento sustentável”; a diferença não salta espontaneamente aos olhos!
As relações internacionais parecem um caleidoscópio de organizações, programas e agências, cuja penúria orçamentária conduz a uma coordenação pouco espontânea. Assim, a Unido coopera com a Organização para a Agricultura e a Alimentação (FAO, na sigla em inglês), que administra um programa com o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida), que recebeu um mandato da União Africana, que por sua vez fez uma parceria com a União Europeia… Mas as relações nem sempre são tão claras. Por exemplo, a União Europeia, que gosta de se apresentar como multinacional do direito dos negócios, esnoba as reuniões da Uncitral. “A Comissão de Bruxelas não segue nossos trabalhos e só intervém a posteriori, quando percebe que o texto adotado não lhe convém”, constata Sorieul. Os 27 parecem muitas vezes sofrer de hemiplegia, e é às vezes in extremis que pensam na coerência das negociações da ONU com o direito europeu. Portanto, o risco é grande de criar contradições nas normas que ocupam muitas horas dos tribunais internacionais e fazem a alegria dos advogados. É preciso lembrar que a UE não tem uma posição clara no seio da ONU: oficialmente, ela pertence à categoria dos observadores, mas isso não lhe dá nenhum direito de voto. Além disso, alguns Estados, como o Reino Unido, têm como ponto de honra marginalizá-la.
“As coisas poderiam ser mais claras, inclusive com o G20”, avalia Florence Mangin, embaixadora da França na ONU. Ela observa que Paris apoiou com todo seu peso uma resolução de maio de 2011, que reforça a condição protocolar da UE no seio das instituições da ONU. Além dos aspectos simbólicos, as pequenas guerras de trincheiras estatutárias podem ter impactos concretos. Se a supremacia da ONU no tabuleiro internacional parece desgastada, é também porque seus textos fundadores permanecem impregnados de uma filosofia humanista pouco disseminada na ordem econômica globalizada. Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que controla a ONU, a Carta de São Francisco, assinada em 26 de junho de 1945, começa com estas palavras: “Nós, os povos das Nações Unidas, confiamos a nossos governos”, que não combinam com as imposições do FMI ou do diretório franco-alemão da zona do euro.
Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).