Os 80 anos do “Dia D”, eleições europeias e a extrema-direita
O mundo parece ter não apenas regredido, mas o próprio sistema internacional de cooperação entre as nações e protetivo dos direitos humanos encontra-se sob forte contestação
O dia 6 de junho de 2024 marcou os oitenta anos do desembarque das tropas aliadas naquele que ficou conhecido como o “Dia D”, nomeada tal ação militar como “Operação Overlord”.
Cerca de 150 mil soldados norte-americanos, britânicos, canadenses, dentre outras nacionalidades, desembarcaram nas praias da Normandia com o objetivo de libertar a Europa do nazifascismo, em 6 de junho de 1944. A então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que tem na Rússia de hoje sua legatária sob o ponto de vista histórico, era aliada do Ocidente após se tornar alvo de Hitler, que quebrara o Pacto de Não Agressão Germano Nazi-Soviético firmado em 23 de agosto de 1939.
Neste último dia 6 de junho de 2024, a maioria dos combatentes ainda vivos são testemunhas centenárias do maior desembarque anfíbio da história. Logo não mais estarão entre nós e aptos a alertar as novas gerações das razões pelas quais lutaram, vale dizer, para restaurar a liberdade numa Europa tomada pelo totalitarismo nazifascista após mais de duas décadas de enfraquecimento e corrosão contínuos do regime democrático, na primeira metade do século XX.
Componentes que deram o tom na derrocada democrática na Europa e no Pacífico na primeira metade do século XX, como o racismo, o populismo, o nacionalismo, as crises políticas e, especialmente, as crises econômicas, retornam hoje à pauta e se tornam objeto de atenção por diplomatas, profissionais das relações internacionais, cientistas políticos, economistas, juristas, políticos, defensores dos direitos humanos etc. Afinal, o mundo parece ter não apenas regredido, mas o próprio sistema internacional de cooperação entre as nações e protetivo dos direitos humanos encontra-se sob forte contestação, como veremos mais adiante.
Regimes opressivos não resultam de circunstâncias repentinas, mas de paulatina preparação das condições políticas para tanto, tal como comprovam as experiências passadas.
Durante praticamente 44 anos o mundo viveu a guerra fria, que durou desde o início dos posicionamentos norte-americanos inspirados pela Doutrina Truman (1947) até a queda do Muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. O sistema internacional inaugurado após a derrocada nazifascista no mundo, especialmente com a fundação da ONU em substituição à fracassada Liga das Nações, bem como seus respectivos mecanismos para efetivação da cooperação internacional e defesa dos direitos humanos, vem, desde então, sofrendo sucessivos desafios e incessantes violações.
O sistema ONU, apesar dos revezes e dificuldades financeiras que enfrenta hoje, representa a esperança de um mundo mais justo. É, certamente, um dos mais eficazes e preparados para lidar com a fome, a violência que atinge civis e populações perseguidas, famintos etc. Atualmente reconhece e atua em, pelo menos, doze crises humanitárias; Afeganistão, Chifre da África, Gaza, Haiti, Iêmen, Líbano, Mianmar, Nigéria, Região do Sahel, República Democrática do Congo, Síria e Sudão do Sul.
Some-se a tal conjunto de crises a guerra da Ucrânia. Em 2023 o Escritório para Assuntos Humanitários das Nações Unidas buscou levantar US$ 3,9 bilhões para atender necessidades da população atingida pela invasão russa da Ucrânia, além de US$ 1,7 bilhão para apoiar refugiados em outros dez países. Referidos valores auxiliam cerca de 11,1 milhões de ucranianos que, em 2023, encontravam-se no país, além de mais 4 milhões de ucranianos em nações vizinhas.
Contudo, no que tange ao cumprimento de outro objetivo da organização, qual seja, a manutenção da segurança e paz mundiais, a ONU se encontra presa em estruturas orgânicas superadas e sem qualquer sentido no mundo atual, exceto pelos interesses de alguns poucos países que, por serem os vencedores na Segunda Guerra Mundial, mantêm seus poderes no âmbito do Conselho de Segurança, o mais importante e poderoso da entidade.
Seria equivocado responsabilizar a ONU pelos problemas globais de hoje, uma vez que ela projeta as visões e decisões dos Estados soberanos que a compõem. Como é dito popular, não é justo responsabilizar o porteiro pelas decisões dos condôminos. No entanto, a reestruturação da organização é condição inafastável; e o é para que os desafios existenciais contemporâneos que se apresentam à humanidade possam ser compreendidos e controlados: mudanças climáticas, deslocamentos populacionais, as guerras, o advento da inteligência artificial e a ameaça que ela representa para a democracia. E é sobre ela – a democracia – que propomos a presente reflexão.
Retornamos, então, aos oitenta anos do “Dia D”, quando teve início a derrocada nazista, já antes iniciada com a derrota do General Friedrich Paulus, Comandante do Sexto Exército Alemão, em Stalingrado.
Afinal, por qual razão milhares de soldados morreram em solo europeu, tanto no Dia D, como no período que se seguiu até a capitulação nazista em 7 de maio de 1945? É importante que tais razões sejam relembradas, especialmente nos dias que correm. Antes de respondermos, importante tecermos algumas considerações.
Assim, não se pode ignorar algumas das causas históricas e que resultaram na tragédia da Segunda Guerra Mundial: a popularização das pseudoteorias racialistas, eugênicas e darwinistas sociais a partir do final do século XIX; a propagação da miséria e das crises econômicas após o fim da Primeira Guerra Mundial, além do populismo político extremista que, na Alemanha, culpava o Tratado de Versalhes e os judeus pela derrota na guerra e pela miséria reinante na sociedade alemã. E, afinal, o esfacelamento do regime democrático com o fim da República de Weimar.
Um fato histórico a ser considerado diz respeito à opção de Hitler em abandonar a ideia de ações revolucionárias para chegar ao poder após ser condenado pelo Putsch de Munique, em 8 e 9 de novembro de 1923. O fiasco do golpe convenceu o líder nazista de que o caminho mais eficaz para se chegar ao poder seriam as eleições, portanto, jogar as regras do jogo democrático e, uma vez vitorioso, destruir a própria democracia.
Bom que se diga: a tolerância e a omissão de certos atores das esferas jurídica, econômica e política em muito contribuíram com a tragédia que viria a devastar a Europa, desde o juiz que impôs a pena mínima a Hitler no julgamento do putsch (26.2.1924 a 1.4.1924), aos políticos e partidos que compuseram a coalizão que permitiu a nomeação do cabo austríaco como Chanceler da Alemanha e, até mesmo, a negligência dos demais países diante dos avanços de Hitler no continente, até declararem a guerra em setembro de 1939 com a invasão da Polônia.
William L. Shirer, considerado o maior historiador e jornalista norte-americano sobre o Terceiro Reich e que viveu na Alemanha nazista, escreveu: “…o Terceiro Reich nada devia aos azares da guerra ou à influência externa. Foi instaurado em termos de paz e pacificamente, pelos próprios alemães, tanto em virtude de suas fraquezas como de suas forças. Os alemães impuseram a si mesmos a tirania nazista. Muitos deles, talvez a maioria, não se deram perfeita conta disso àquele meio dia de 30 de janeiro de 1933, em que o presidente Hindenburg, agindo de maneira absolutamente constitucional, confiou a chancelaria a Adolf Hitler. Mas logo teriam ciência disso.” (SHIRER, Ascensão e Queda do Terceiro Reich, Vol.1, 2ª edição, p.256/257. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017).
Retomamos, então, a questão: qual a importância em se recordar a cada ano as razões pelas quais milhares de combatentes padeceram no desembarque do Dia D, nas praias da Normandia?
O sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945), que morreu no campo de concentração de Buchenwald, pertencente à escola durkheimiana, propôs a importância dos contextos sociais para o estabelecimento da memória coletiva. E, podemos afirmar, que os contextos sociais hoje vigentes, em alguns aspectos, parecem querer retirar do abismo um passado que “sequer existe como passado”, como afirmou o escritor norte-americano William Faulkner.
Vale dizer: algumas condições sociais, econômicas e políticas atualmente vigentes, guardadas as diferenças entre os períodos, em muito lembram as condições que conduziram à guerra e ao Holocausto, dentre as quais podemos citar o ataque ininterrupto à democracia por meio das redes sociais e das fake news; a assunção desavergonhada do racismo e do crescente antissemitismo; a aprovação de leis que vulnerabilizam minorias e também as maiorias, como as mulheres; a sistematização da violência do Estado com recortes étnico-raciais; os ataques ao sistema internacional, seus tratados e convenções, bem com aos blocos regionais; o sentimento anti-imigração, além do crescimento dos partidos de extrema-direita na Europa, como se pôde verificar pelos resultados das eleições para o Parlamento europeu, no início de junho de 2024, quando os partidos de extrema-direita ganharam as eleições em alguns países como Áustria ou alcançaram a segunda posição, como na Alemanha.
A partir das lições de Carl Schmitt, Giorgio Agamben, Pedro Serrano, dentre outros, não é difícil a percepção de que o regime democrático vem sendo, em diversas situações, corroído a partir de suas próprias estruturas e do fenômeno da exceção que se torna regra. Ocorreu durante o nazismo, quando por exemplo o artigo 48 da Constituição de Weimar foi de grande utilidade para o predomínio do regime nazista (permitia ao presidente do Reich governar com as Forças Armadas em caso de ameaça à segurança e ordem pública); vem ocorrendo nos dias atuais, quando se busca, no Brasil, conferir ao artigo 142 da Constituição Federal de 1988 projeções jurídico-políticas inconstitucionais, como uma aventada função conferida às Forças Armadas de Poder Moderador.
Assim, revela a experiência que o passado renasce a cada dia. Mas tal fenômeno emite antes seus sinais. A construção de uma sociedade totalitária, ditatorial ou fundamentalista resulta de processos gradativos. Uma vez amadurecidas, torna-se muito difícil o resgate da democracia. A partir de certo estágio, pouco há a fazer. Exemplo histórico vem de Nuremberg: em fevereiro de 1933, quando Hitler já era o chanceler, 60 mil pessoas reunidas pela Frende Democrática marcharam contra o regime nazista. Todavia, já era tarde.

Fonte: Nuremberg – Site of the Nazi Party Rallies
Como dito, a Europa vem se voltando para a extrema-direita. Nas eleições para o Parlamento Europeu, ainda que a centro-direita prossiga na liderança com 186 assentos (num total de 720) mediante o ganho de mais dez assentos, a extrema-direita se firma como a segunda força do continente, com 131 cadeiras conquistadas (ganho de 14 novos assentos).
Os verdes foram derrotados, com a perda de 19 assentos, restando 53 parlamentares, numa clara sinalização de que os europeus entendem não sustentável o atual modelo energético (o que não significa que neguem as mudanças climáticas). Tal quadro foi agravado pelo impacto causado pela perda de acesso ao gás russo, após o início da guerra da Ucrânia.
De outro lado, constatou-se que os jovens compõem parte dos eleitores que permitiram à extrema-direita a conquista de mais espaço. Veículos como The Washington Post ou o Foreign Policy já publicaram suas análises que demonstram que os jovens europeus estão optando pela extrema-direita. E em grande medida elegeram para o Parlamento europeu a AfD alemã e o Reagrupamento Nacional francês, ambos daquele espectro político extremista.
Muito embora a extrema-direita europeia apresente divisões relevantes, com antigos extremistas hoje mais moderados, como Le Pen, na França, e Giorgia Meloni, na Itália, cujo bloco no Parlamento Europeu expulsou, recentemente, a extremistas e neonazista AfD (Die Alternative für Deutschland – Kurzbezeichnung AfD), fato é que não há mais na Europa o debate entre visões de direita, centro e esquerda; mas apenas duas aparentes opções parecem se manter: extrema-direita ou centro-direita que, para ganhar espaço, acaba cedendo ao eleitorado mais extremista.
O cenário nas Américas parece também um alerta com o possível retorno de Donald Trump ao governo dos Estados Unidos da América, nas próximas eleições. Na Argentina (com Javier Milei) e em El Salvador (com Nayib Bukele) o fenômeno populista extremista de direita parece se confirmar, ao que se soma o extremismo bolsonarista no Brasil a se alimentar da propagação do ódio, de fake news e golpismos, ameaçando também a democracia, a ciência e a racionalidade.
A ideia do Paradoxo de Karl Popper, constante de seu livro The Open Society and Its Enemies, parece cada vez mais atual: a tolerância ilimitada conduz ao seu próprio desaparecimento.
A extrema-direita é uma das maiores ameaças existenciais à civilização atualmente.
Que fique bem claro.
Flávio de Leão Bastos Pereira, Pós-doutorado em New Technologies and Law – Mediterrânea International Centre for Human Rights Research. (DiPartimento DiGiES – Università Mediterranea di Reggio Calabria, Itália). Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Direitos Humanos, Direito Constitucional e Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra (“Instituto Ius Gentium Conimbrigae”/IGC) e IBCCRIM. Especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo “International Institute For Genocide and Human Rights Studies” (Zoryan Institute) e University of Toronto (Canadá). Autor da obra “Genocídio Indígena no Brasil – Desenvolvimentismo entre 1964 e 1985”, Ed. Juruá, 2018. Membro do Comitê Acadêmico da Fundación Luisa Hairabedian de Derechos Humanos (Buenos Aires, Argentina). Conferencista no Brasil e no Exterior. Pesquisador Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção (PUC/SP – CNPq). Professor visitante na Universidade Technische Hochschule Nürnberg Georg Simon Ohm (Universidade Tecnológica de Nuremberg, Alemanha, 2023). Professor visitante na University of Applied Sciences of Linz, Upper Austria (2023). Advogado atuante perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em defesa dos povos indígenas. Presidente da Frente Ampla Democrática Pelos Direitos Humanos (FADDH).