Os alimentos da cesta básica em face da tensão inflacionária e exportação de commodities
É preciso atentar para a necessidade de nova regulação do sistema econômico no contexto dos problemas ora levantados, principalmente do seu carro-chefe – a economia do agronegócio –, cujos resultados exclusivos perseguidos na linha do resultado exportador em commodities não se confundem com as necessidades reais do país. Confira capítulo do livro Direitos Humanos no Brasil 2022, lançado no dia 6 de dezembro pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
O tema da segurança alimentar e nutricional da população comporta múltiplos enfoques. A tensão inflacionária sobre os alimentos da cesta básica salarial vem se revelando com muita relevância nas conjunturas recentes, como também na estruturação da política econômica sistematicamente seguida há mais de duas décadas, cujos determinantes muitos ligados ao chamado “equilíbrio externo” revelam, na conjuntura, desajustes radicais, a merecer mudança significativa.
Sem embargo de que há questões notoriamente relevantes sobre precarização do padrão nutricional da população, que independem da inflação de alimentos, vou me concentrar na abordagem declarada no título deste artigo. Isso porque a tensão inflacionária é intrinsecamente relevante e problemática; e esta vem combinada a alguns arranjos de política econômica e social, que exclusivamente concebidos a outros objetivos propagam a tensão inflacionária e a redução de renda real da base da pirâmide social (famílias com até cinco ou seis salários-mínimos de renda familiar).
Por outro lado, não há como tratar do tema implícito da segurança alimentar da população sob o prisma da tensão inflacionária, sem considerar uma espécie de âncora da política econômica – agrícola e macroeconômica –, que têm há duas décadas metas comuns de elevados e crescentes resultados comerciais na exportações de commodities agropecuárias e minerais, como espécie de pedra angular do conjunto do sistema econômico a ponto de priorizarem esses saldos comerciais à condição de imprescindibilidade, espécie de “estado de necessidade” do conjunto do sistema.
As evidências da tensão inflacionária sobre alimentos
As expressões empíricas da pressão inflacionária sobre os preços dos alimentos da cesta básica ficam aqui restritas ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que é calculado em relação aos orçamentos familiares com renda de até seis salários-mínimos. Esses dados ficaram muito evidentes no triênio 2020/2022, de maneira que vou dispensar estatísticas conjunturais detalhadas que corroboram essas afirmações, por demais evidentes nessas conjunturas de três anos em que a inflação oficial chega a dois dígitos, enquanto a inflação dos alimentos é significativamente maior.
O que me parece mais relevante é discutir os fatores estruturais, que de certa forma impelem nessas conjunturas à tensão inflacionária incidir dessa forma; e ao fazê-lo piorar sensivelmente as condições de vida dos mais pobres da população, situados no nível de renda familiar equivalente ao universo do INPC. O conceito de cesta básica salarial do INPC compreende aquilo que poderíamos chamar de cesta salarial dos que ganham rendimentos da base da pirâmide social – acima dos dois terços da população –, acrescida dos pagamentos de benefícios monetários do sistema de direitos da Seguridade Social. Temos no INPC uma ponderação mais alta dos “alimentos”, comparativamente ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que é construído com base em orçamentos familiares até quarenta salários-mínimos. Em tais condições, o INPC reflete melhor a inflação dos alimentos, razão porque o utilizo na tabela 1.
Ademais, precisamos também elencar o quadro crítico simultâneo que afeta essa base da pirâmide social no período considerado: 1) explosão dos preços dos alimentos e transportes; 2) elevação dos índices de desemprego e subocupação da força de trabalho; 3) queda nos pagamentos do sistema de seguridade social às famílias; 4) elevação sensível da taxa cambial – real/dólar; 5) mudança de patamar para maior dos saldos comerciais de exportação de commodities. Os principais dados anualizados daquilo que estou listando seguem na tabela 1, que é para ser lida com as devidas associações entre os fenômenos aí descritos.
Tabela 1 – Alguns indicadores macro para o período 2017/2022

Fatos críticos observados e regulações econômicas
Os dados apresentados na tabela 1 contêm duas categorias de informação. As duas primeiras e a última coluna apresentam dados sobre resultados do desempenho econômico em relação a três indicadores críticos, respectivamente: inflação, desemprego aberto, e desempenho externo. Por sua vez, a terceira e quarta colunas – variação nominal do salário-mínimo e taxa de câmbio –, expressam ações de regulação econômica sobre duas variáveis-chave do sistema, como sejam a taxa de salário do conjunto do sistema, no primeiro caso, e a relação câmbio salário, que em última instância determina o excedente exportável da economia.
Na primeira categoria temos a própria taxa de inflação medida pelo INPC, que cresce de 2,07 em 2017 para 4,46 em 2019 e, a partir de então, acelera para mais do dobro no biênio 2021/2022. Ainda nessa primeira categoria temos a taxa de desemprego aberto do IBGE, referente aos desempregados integrais procurando emprego no mês de referência, que, diga-se de passagem, não reflete todo o desemprego medido pelo próprio IBGE, pois se consideradas outras formas de desemprego (por desalento, e por várias formas outras de subocupação) geraria uma taxa de desocupação praticamente duas vezes maior do que o desemprego aberto.
Perante a situação crítica da inflação associada ao desemprego muito elevado, por qualquer critério que se venha a adotar, a resposta do conjunto de variáveis regulatórias descritas na tabela 1 – “salário-mínimo” e “taxa de câmbio” – parece operar em país imaginário, onde aparentemente o único resultado perseguido coerentemente é a geração de elevados saldos comerciais de commodities. Nem o desemprego, nem a inflação sobre a base da pirâmide social, nem a redução da renda real proveniente da seguridade social se ajustam nesse modelo de regulação a objetivos convencionais de crescimento e/ou estabilização. Mas pela redução do emprego, dos salários de base (aqui expressos pelo salário-mínimo) e pelos cortes conexos de outros benefícios da seguridade social impostos pela Emenda Constitucional do Teto de Gastos, em simultaneidade à elevação significativa da taxa de câmbio a partir de 2020, tudo o que se pode deduzir é uma intencionada regulação da relação câmbio/salário para gerar elevados saldos externos exportáveis. E estes, de fato, aparecem no segmento mais concentrado do sistema econômico – na produção de commodities –, sem capacidade para encadear crescimento econômico porque já estão comprometidos com o suprimento de verdadeira sangria de pagamento de “serviços e rendas de capital ao exterior”, daí que o próprio saldo da conta corrente com o exterior tende a agravar altamente sua posição deficitária.1

O que está empiricamente descrito na tabela 1 reflete grave distorção da política econômica brasileira, cujo único objetivo perseguido é a valorização primário-exportadora de uma cesta restrita de commodities agrícolas e minerais, que na situação crítica descrita para o triênio 2020/2022 compelem à tensão inflacionária da cesta básica, associada à redução da massa salarial, regulados por uma intencionada relação câmbio/salário nesta direção. Nesse sentido, a operação da taxa cambial é direta e explícita sobre os preços dos bens exportáveis, enquanto a pressão depressiva sobre a massa salarial se dá por várias inações de política social (teto de gastos primários, taxa de desocupação muito alta) como também por medidas administrativas restritivas sobre salário-mínimo e benefícios da seguridade social, que reduzem os rendimentos em direitos sociais aos mais pobres.
Há claramente uma disfunção macroeconômica em operação no auge do período crítico, com nomes e endereços dos beneficiários bem identificados – os setores primário-exportadores de commodities agrícolas e minerais, que enriquecem no boom externo, como também nos períodos críticos, não obstante as graves tensões inflacionárias e de renda monetária sobre a cesta básica salarial. Tampouco se operam políticas internas de regulação do abastecimento e/ou manipulação de estoques públicos de alimentos, abandonadas completamente, sob a presunção da autossuficiência dos mercados liberados.
Em tais condições, quanto mais eficiente for o arranjo de política à máxima valorização primário-exportadora, maior será o desarranjo do conjunto do sistema econômico em termos de recuperação econômica com alguma estabilização de preços dos bens/salários e igualmente de operação dos mecanismos equalizadores do sistema de seguridade social.
O caráter sintético deste artigo não permite uma utilização mais extensiva de informações econômicas corroborativas das interpretações aqui explicitadas, mas, evidenciados os problemas críticos demonstrados, é fundamental dizer algo sobre mudanças necessárias de política em direção ao que se pode esperar de uma função civilizatória das políticas públicas.
Finalmente, é preciso atentar para a necessidade de nova regulação do sistema econômico no contexto dos problemas ora levantados, principalmente do seu carro-chefe – a economia do agronegócio –, cujos resultados exclusivos perseguidos na linha do resultado exportador em commodities não se confundem com as necessidades reais do país, nem mesmo com o decantado “equilíbrio externo”, que também é impossível de alcançar pela via da especialização primária das exportações.2
Especificamente sobre pressão inflacionária aos alimentos da cesta básica é necessário recriar políticas explícitas ao abastecimento interno e igualmente recompor mecanismos distributivos da política social de Estado, visto que a sobreposição de uma política de valorização da cesta de commodities sobre a cesta básica salarial ora vigente, tudo o mais a esta se ajustando passivamente, produz caos programado e nunca o cosmos civilizado que o Estado democrático promete à sociedade.3
Guilherme C. Delgado é doutor em economia pela Universidade de Campinas (Unicamp), pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e membro da diretoria da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
1 Na tabela 1, em sua última coluna apresentamos os dados do saldo da balança comercial e da conta corrente com o exterior, de sentidos opostos em termos de sinalização ao superávit, de sinal positivo e de déficit de sinal negativo. Há implícita nessa diferença uma conta de “serviços e rendas pagos ou recebidos do exterior”, que explica a mudança de sentido. E essa conta revela saldo ultradeficitário no período considerado, com a seguinte trajetória em bilhões de dólares: 2017 (-) 76,4; 2018 (-) 70,5; 2019 (-) 91,1; 2020 (-) 57,1; 2021 (-) 67,6.
2 Equilíbrio externo na linguagem das contas externas ou do chamado Balanço de Pagamentos se alcança quando não há déficit em conta corrente ou este é muito baixo, de forma a prescindir do ingresso de capitais externos para solver a conta corrente. Mas esta não é a situação observada nas contas externas brasileiras, principalmente a partir da crise financeira de 2008.
3 Em artigo recente de um grupo de pesquisadores do CPDA/UFRJ – George Flexor, Karina Kato e Sérgio Leite (2021) os autores destacam pertinentemente a colagem da cesta de commodities principais do Brasil no comércio exterior (soja, milho, café, frango e carne bovina) aos preços da cesta básica, com mediação da taxa de câmbio (cf. PP. 20/21); ao mesmo tempo que esclarecem sobre o efeito relativamente às não commodities principais (feijão, arroz, batata etc.), cujos preços ficam indiretamente afetados pela concorrência do primeiro grupo, pelo efeito da maior escassez de oferta interna.
Referência
FLEXOR, George; KATO, Karina; LEITE, Sérgio. Transformações na agricultura brasileira e os desafios para a segurança alimentar e nutricional no século XXI. Texto para Discussão n. 82 – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2022.