Os Black Blocs e a violência
Há muito pouca violência em manifestações por parte de manifestantes. No entanto, há muita violência e violência sistemática por parte da polícia. Um debate público que se concentre na destruição de vidraças e não na agressão sistemática à integridade física me parece equivocado e desequilibradoPablo Ortellado
Nos protestos de rua, a violência pode aparecer nas ações dos manifestantes e da polícia. Embora entre os manifestantes a violência seja ocasional e entre os policiais seja recorrente e sistemática, quase todo o debate público está centrado nos primeiros. Nos últimos tempos, o principal alvo desse debate são os Black Blocs. E não é natural que seja assim porque, ao contrário do que parece, a tática black bloc é muito pouco violenta, pelo menos se utilizarmos uma definição sociológica padrão como a de “imposição deliberada de dano ou violação corporal”, ou ainda se acrescentarmos a ela a coerção mediante ameaça de agressão (a definição é do Dicionário de Sociologia de Cambridge).
Como todos os estudos que li demonstram e a experiência reforça, o Black Bloc tem uma ação de orientação midiática, autoexpressiva e na interface do político com o estético. E o motivo disso é que, embora os praticantes nem sempre conheçam a história, a tática nasceu para capturar a atenção dos meios de comunicação.
Os primeiros Black Blocs eram grupos de autodefesa dos movimentos autônomos da Alemanha Ocidental, os Autonomen. As táticas do grupo consistiam na formação de linhas de frente para enfrentar a repressão policial e na organização de cordões para impedir a infiltração de agitadores.
Nos Estados Unidos, no final dos anos 1990, eles ganharam um novo contorno, isto é, foram ressignificados. Durante toda essa década, pequenos Black Blocs apareceram em protestos nos Estados Unidos em razão da difusão da tática por artigos em revistas ativistas e alguns livros, como o de George Katsiaficas, que havia sido aluno de Marcuse.
O Black Bloc ganhou seu contorno atual durante os protestos contra a Organização Mundial do Comércio, em Seattle, em 1999, quando um grupo optou por romper com a tática de bloquear ruas e praticar resistência passiva, na tradição da desobediência civil não violenta de Gandhi e Martin Luther King Jr. O motivo, como lembra um dos participantes da discussão, o professor de Antropologia da London School of Economics David Graeber, é que os ativistas que compuseram o Black Bloc acreditavam que a desobediência civil não tinha como funcionar sem a cobertura da violência policial pela imprensa: “Estratégias gandhianas não têm funcionado historicamente nos Estados Unidos. Na verdade, elas nunca funcionaram em escala maciça desde o movimento pelos direitos civis. Isso porque os meios de comunicação nos Estados Unidos são constitutivamente incapazes de noticiar os atos de repressão policial como ‘violência’ (o movimento pelos direitos civis foi uma exceção porque muitos norte-americanos não viam o sul como parte do mesmo país). Muitos dos jovens que formaram o famoso Black Bloc de Seattle eram na verdade ativistas ambientais que estiveram envolvidos em táticas de subir e se prender em árvores para impedir que fossem derrubadas e que operavam em princípios puramente gandhianos − apenas para descobrirem em seguida que, nos Estados Unidos dos anos 1990, manifestantes não violentos podiam ser brutalizados, torturados e mesmo mortos sem qualquer objeção relevante da imprensa nacional. Assim, eles mudaram de tática. Nós sabíamos de tudo isso. E decidimos que valia a pena correr o risco”.
Curiosamente, a crítica que o Black Bloc fez aos limites da tática gandhiana é a mesma que fez George Orwell quando ridicularizou Gandhi por propor que os judeus praticassem resistência passiva contra os nazistas: sem exposição pública da violência repressiva, a tática não funciona.
Assim, a destruição de propriedade foi pensada pelo Black Bloc de Seattle como uma maneira de resgatar a atenção dos meios de comunicação e, por meio da escolha dos alvos – grandes empresas transnacionais –, expressar sua oposição aos acordos de livre-comércio. Há grandes dúvidas se a mensagem do Black Bloc é eficientemente transmitida, mas é certo que conseguiram conquistar a atenção dos meios de comunicação, e é esse sucesso parcial que explica a disseminação da tática por todo o planeta na década seguinte, como nota o sociólogo quebequense Dupuis-Déri.
O rompimento do consenso da não violência suscitou muitos debates, e desde o princípio o Black Bloc foi acusado de oportunista, de diversionista, de promotor da violência e de isca da repressão policial. Os calorosos debates do início dos anos 2000 foram resolvidos por meio da ideia da “diversidade de táticas”, isto é, da ideia de que as diferentes táticas tinham de conviver, respeitando umas as outras. Para esse consenso ser atingido foi necessário que aqueles que advogavam a tática exclusiva de bloqueios e ocupações (sit-ins) não violentos entendessem que o Black Bloc também participava da tradição de não violência, pois não atacava pessoas, apenas coisas, normalmente vidraças de grandes lojas. A partir desse consenso, os protestos de rua foram divididos em grupos que ocupavam cada um uma parte da cidade, de maneira que pudessem coexistir. Esse mesmo consenso existiu no Brasil no início dos anos 2000 durante os protestos contra a Alca.
No entanto, na onda de mobilizações globais que começou em 2011, parece que esse aprendizado foi esquecido, e os duros ataques aos Black Blocs reapareceram no Occupy Wall Street, na insurreição no Egito e também no Brasil. Os Black Blocs foram tratados como arruaceiros inconsequentes, luddistas irracionais e bandidos oportunistas. O fato de que os grupos no Brasil em geral têm respeitado os princípios da tática, que inclui não agredir pessoas nem atacar pequenos comércios, não é levado em conta nas acusações de que são “violentos”, e, assim, um ato de desobediência civil (a destruição de propriedade) se torna equivalente à agressão a pessoas.
Há muito pouca violência em manifestações por parte de manifestantes – ela existe, mas é um fenômeno marginal. No entanto, há muita violência e violência sistemática por parte da polícia. Um debate público que se concentre na destruição de vidraças e não na agressão sistemática à integridade física me parece equivocado e desequilibrado.
Desde os anos 2000 tenho me oposto à destruição de propriedade do Black Bloc por motivos táticos: porque não transmite a mensagem que querem passar, porque facilita a infiltração policial e porque afasta simpatizantes e outros ativistas. No entanto, vejo com muita clareza que os adeptos do Black Bloc têm motivos para fazer o que fazem e que em geral estão abertos ao diálogo e à coordenação das ações com grupos que têm abordagens diferentes. O que mais lamento neste momento é ver grupos de esquerda não divergindo dos Black Blocs, mas denunciando-os e criminalizando-os em termos muito parecidos aos das forças de repressão do Estado.
Pablo Ortellado é ativista e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Coautor dos livros Estamos vencendo! Resistência global no Brasil (Conrad, 2009) e Vinte centavos: a luta contra o aumento (Veneta, 2013).