Os bons ares da democracia ambiental
Enquanto elementos determinantes para a proteção da saúde pública, como a falta de prazos para atingir a boa qualidade do ar, continuarem a ser considerados um mero dissenso, estaremos condenados à poluição
O Brasil não pode prescindir de um estado de governança ambiental democrática. É preciso contemplar as determinações constitucionais de plena participação social para a área ambiental. Há exemplos que respiramos em nosso dia a dia.
Durante anos, o processo de atualização dos padrões de qualidade do ar no Brasil foi debatido no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), por iniciativa do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
O resultado acabou na inócua resolução Conama 491/2018, sendo judicializado por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6148) movida pelo Ministério Público Federal (MPF) através da ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), dentro do “pacote verde”, que inclui sete ações contra decisões de governo consideradas omissões do Executivo Federal.
A resolução promoveu a atualização dos padrões de qualidade do ar como meta final, conforme defendia o Proam, mas, em função de interferências do setor econômico e com apoio de governos estaduais e federal, descolou-se da melhor prática de políticas públicas protetivas ao não definir prazos para a consecução de metas. Promoveu grande zona de conforto à mercê da atualização tecnológica do mercado, que por falta de investimentos caminha a passos lentos.
O fato revelou um Conama de baixa eficiência não só em função da falha no caráter decisório. Demonstrou ser um sistema de gestão participativo deficiente em sua tarefa de integrar de forma adequada diferentes atores governamentais e da sociedade civil, que deveriam produzir efeitos respiráveis, pró-sociedade e pró-sustentabilidade.
Mais do que inspirar democracia, o Conama deveria representar modernização administrativa. Em sua gênese, abrigava o anseio de abertura dos mecanismos de decisão para a sociedade, que eram anteriormente centralizados. Nada mais contemporâneo. O Acordo de Escazú, protagonizado pelo Brasil em 2018, referenda fortemente a “garantia do exercício dos direitos humanos de acesso em matéria ambiental”, conforme afirmou Rodolfo Solano, ministro de Relações Exteriores da Costa Rica, em recente evento da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Contemplar a amplitude das forças vivas da sociedade, representada na heterogeneidade da sociedade civil, significa crescimento nas possibilidades de gestão. Agregar percepção da sociedade e conhecimento técnico-científico é potencializar a construção de um modelo de administração da sociedade para a sociedade.
Este enriquecimento deveria possibilitar ao Conama estabelecer, com controle social, boas normativas para a qualidade ambiental. Para tanto, é preciso contemplar em sua composição critérios de representatividade, legitimidade, e o primordial elemento da essência democrática: a igualdade na proporcionalidade, única forma de possibilitar decisões com isonomia, por meio do equilíbrio de forças entre o público e o privado.
O episódio dos padrões de qualidade do ar demonstra que o Conama já não funcionava de forma adequada antes da gestão de Jair Bolsonaro. Era evidente a falta de equilíbrio de forças entre a sociedade civil e, de outro lado, interesses privados e o governo.
Ao mergulhar no atual estado do imponderável, que se instalou a partir de 2019 com o governo Bolsonaro, o Conama foi praticamente destruído, por meio do Decreto 9.806/2019, que promoveu uma alteração drástica em sua composição, reduzindo e descaracterizando os aspectos da participação social.

O MPF agiu junto ao STF, propondo uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 623). Houve manifestação contundente da relatora, ministra Rosa Weber, atestando a inconstitucionalidade e a nulidade do decreto, mas o processo acabou obstruído por um pedido de vistas, que se arrasta sem solução, do ministro Kassio Nunes Marques, nomeado para o STF com aval explícito de Jair Bolsonaro.
Enquanto isso, a situação do Conama se agravou e passou a produzir uma série de resoluções antiambientais, como por exemplo o atendimento à especulação imobiliária com a retirada da proteção das restingas do litoral brasileiro. Felizmente a ação do conselho foi paralisada por uma liminar concedida pela ministra Rosa Weber.
A representação ambientalista no Conama, setor mais vocacionado para defender os interesses difusos, também foi descaracterizada com o Decreto 9.806/2019. Além de afastar as representações da ciência, de trabalhadores e de populações indígenas, o decreto provocou drástica modificação nos ritos internos para a eleição democrática dos ambientalistas para o Conama. Passaram a ser eleitos por meio de sorteio.
O “bingo do Conama”, como passou a ser conhecido, se comparado a outras situações eleitorais, significa o mesmo que eleger vereadores para o município a partir do sorteio entre os eleitores. Sacrificou-se, com a adoção de um jogo de azar, a própria democracia interna, onde os representantes eram eleitos pelo voto direto das entidades cadastradas no Conama.
O governo tem manobrado para escapar da liminar da ministra Rosa Weber. Recentemente simulou outra composição do Conama, mas manteve a intencionalidade de desarticulação, o jogo de azar. Esse estado de coisas deve nos remeter à reflexão: o que fazer quando um conselho de forte repercussão como o Conama não funciona mais para defender direitos fundamentais, mas sim para legitimar interesses contrários aos da sociedade?
Um dos grandes ganhos para a governança ambiental é a manutenção e uso das salvaguardas legais, constitucionais. É preciso coibir a ilegalidade e colocar limites nos abusos da discricionariedade, no extrapolamento das funções de governo.
No caso de uma má normativa, como a resolução Conama 491/2018 que estabelece metas sem prazos para a qualidade do ar, foi possível contar com a firme atuação da Procuradoria Geral da República. Mas o atual procurador-geral, Augusto Aras, surgiu em oposição à ação proposta por sua própria instituição. Em defesa do governo, afirmou que havia “dissenso quanto aos aspectos técnicos que fundamentam a política pública de qualidade do ar”.
Enquanto elementos determinantes para a proteção da saúde pública, como a falta de prazos para atingir a boa qualidade do ar, continuarem a ser considerados um mero dissenso, estaremos condenados à poluição. Segundo dados recentes da Organização Mundial da Saúde, no Brasil morrem por ano 51 mil pessoas devido à poluição atmosférica (outdoor).
É preciso impedir que o Conama tome decisões com impactos negativos e de repercussão nacional, promovendo atrasos em políticas públicas e consequentemente danos à saúde pública.
Nesse sentido, há salvaguardas constitucionais com as quais a sociedade brasileira deveria contar, como o zelo pelo bom funcionamento das instituições, uma tarefa do Tribunal de Contas da União (TCU), que deve fiscalizar os órgãos e entidades públicas quanto à legalidade, legitimidade e economicidade. Não resta dúvida de que postergar avanços sobre a qualidade do ar não só ceifa vidas, mas também representa um elevado ônus para o setor público de saúde.
Deve-se ressaltar principalmente o papel do MPF, fiscal da lei. A forma de indicação pelo presidente do procurador-geral da República deve ser reavaliada. Bolsonaro fez sua escolha sobre quem seria o PGR anunciando com regozijo de “a dama no tabuleiro de xadrez”. Ao nomear um nome de seu agrado, o presidente ignorou a lista tríplice indicada pelos próprios membros do MPF, que certamente saberiam reconhecer, entre seus pares, quais seriam os nomes mais representativos para defender os princípios da instituição.
Quando os limites da discricionariedade são mantidos e a sociedade exerce controle social, há maiores garantias para que os aspectos de interesse público sejam reconhecidos e contemplados na formulação de políticas públicas.
A governança ambiental não pode prescindir de bons resultados. É preciso garantir os meios para obter qualidade nas decisões, estruturando de forma adequada os espaços de gestão participativa. O Brasil precisa respirar melhores ares de democracia.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).