Os caminhos da radicalização
Com velocidade impressionante, os massacres em Paris fizeram emergir duas análises opostas. Uma propõe intensificar os bombardeios a distância e, em nome da segurança, sacrificar liberdades. A outra insisti na transformação do mundo, identificar as causas da decomposição social e restituir os encadeamentos que levaramLaurent Bonelli
Passado o estupor dos atentados, quando se dissipam os sentimentosde indignação e de impotência e a dor se restringe ao círculo íntimo das vítimas, subsiste uma lancinante questão. Por que, em um contexto de paz, jovens franceses atacaram com tal violência indivíduos escolhidos em função de suas opiniões, de sua fé religiosa presumida ou do uniforme que vestem? Dos assassinatos cometidos por Mohammed Merah em março de 2012 a estes dos dias 7, 8 e 9 de janeiro de 2015, imputados a Saïd e Chérif Kouachi e Amedy Coulibaly, passando pelo ataque do museu judeu da Bélgica, em 24 de maio de 2014, do qual é acusado Mohammed Nemmouche, não menos que 28 pessoas encontraram a morte.
O que sabemos destes últimos? Mesmo que cheias de lacunas, as informações recolhidas pela imprensa permitem que se forme uma ideia de suas trajetórias sociais. Primeiro, conheceram intervenções precoces e rigorosas dos serviços sociais e da justiça para menores. Os ambientes familiares foram julgados inapropriados ou falhos; as passagens por abrigos e famílias de acolhida marcam a infância e a adolescência da maioria deles. Sua escolaridade parece corresponder à das camadas menos qualificadas dos meios populares, o que atesta a orientação para formações técnicas (CAP, BEP ou baccalauréatprofissional) – que eles não necessariamente concluíram – em um momento em que o baccalauréatgeral se tornou um diploma mínimo de referência na França.
Essa relegação escolar encontra por vezes uma compensação nas sociabilidades de rua (o mundo das gangues) e nas pequenas desordens que as acompanham.1 Atos transgressivos (como o roubo de carro ou moto, dirigir sem carta), ligados à honra (rixas e ofensas) ou à posse (roubos de casas, agressões ou roubos com violência), atraíram rapidamente a atenção dos policiais e da justiça. Depois de diversos casos, Merah, Coulibaly e Nemmouche foram presos pela primeira vez aos 19 anos. E os novos delitos cometidos assim que saíram da prisão revogaram a condicional e aumentaram sua pena: passaram grande parte da juventude detidos. Criados na periferia de Corrèze, os irmãos Kouachi parecem ter ficado por mais tempo distantes dessa sociabilidade e só caíram mais tarde em uma pequena delinquência de “malandragem” (em que a ocultação e a venda de drogas coexistiam com empregos precários ou não declarados), em sua mudança para a região parisiense no começo dos anos 2000. Isso não impediu que Chérif fosse mantido em prisão preventiva entre 2005 e 2006, aos 23 anos, mas em razão de sua participação numa rede de encaminhamento de voluntários para o Iraque – um tipo de engajamento que une os cinco homens.
Todos aderiram a uma visão do islã feita de combatentes com aura de heróis (os mujahedins), de ações brilhantes e de histórias de conflitos longínquos. Inclusive, diversos viajaram para esses destinos (Síria, Paquistão, Afeganistão, Iêmen). A propaganda, as pregações e as temporadas de iniciação forneceram um quadro de leitura do mundo relativamente simples, que junta em um todo coerente sua experiência concreta da dominação, a que outros povos experimentam (no Mali, na Chechênia, na Palestina etc.) e uma grande narrativa civilizacional que designa os judeus e os não crentes como os responsáveis por todos esses males. Essa concepção da religião é ainda mais bem endossada por significar ao mesmo tempo uma tomada de consciência (de sua situação) e uma libertação (ela oferece à revolta um ideal mais “elevado” e universal do que a delinquência e a marginalidade).
A relativa homologia de suas trajetórias deu início à fúria classificatória de alguns especialistas, que já proclamam o advento de um “lumpenterrorismo” ou de um “gangsterrorismo”. No entanto, ainda que desagradem aos apóstolos da classificação de perfis, essas características não parecem muito singulares. Elas correspondem de um jeito ou de outro à da “geração das cités” [conjuntos habitacionais de periferia (N.T.)] à qual eles pertencem (todos nasceram nos anos 1980), marcada pela desfiliação, por uma maior dificuldade no acesso ao emprego não qualificado, pela segregação espacial e pelos controles policiais, por uma abordagem étnica das relações sociais e pela diminuição das mobilizações políticas realizadas pela geração anterior.2
Sendo situações tão comuns, não é a ação que deveria espantar, e sim sua raridade… Não podemos então nos limitar à busca das causas ou ao estudo das justificativas. “Se a radicalização é um processo”, explicam as cientistas políticas Annie Collovald e Brigitte Gaïti, “é preciso aceitar acompanhá-la antes de poder explicá-la. Trata-se da passagem do por que ao como”.3 Não há dúvida de que as exortações de um chefe jihadista para atacar a França, o Ocidente ou a comunidade judaica inspiram os aspirantes à revolta; mas em nenhum caso elas são o motor de sua passagem à ação. “Essa decisão definitiva é a última de uma longa série de decisões anteriores, das quais nenhuma, tomada isoladamente – e aí está o ponto central –, pareceria estranha em si”, lembra o sociólogo Howard S. Becker.4 Assim como o historiador norte-americano Christopher Browning, que mostrou – no que continua sendo, provavelmente, uma das melhores obras sobre a radicalização – por quais mecanismos (o conformismo do grupo, a despersonalização das vítimas etc.) “homens comuns” que pertenciam ao 101o batalhão de reserva da polícia alemã se transformaram entre julho de 1942 e novembro de 1943 em frios exterminadores,5 seria preciso reconstituir as séries de acontecimentos próprias à existência dos autores dos atentados e aos universos nos quais eles evoluem.
Genealogia dos atentados
Primeiro, o modus operandidos atentados se inscreve na continuidade das formas anteriores de delinquência às quais alguns deles puderam se entregar. Roubar carros, obter armas, manuseá-las e utilizá-las, por exemplo, durante um assalto, constituem técnicas e modos de ação transponíveis. O desenrolar dos ataques reflete também a permanência desse tipo de prática: as observações de terreno ainda são aproximativas; os planos de fuga se limitam a voltar para casa; e se isso se revela impossível, parece não haver outra opção a não ser fugir sem rumo. O sangue-frio para levar a cabo o atentado e a habilidade para conduzi-lo rapidamente a fim de fugir parecem as únicas qualidades necessárias. Mesmo a morte como mártir, atirando sobre as forças da ordem, se parece estranhamente com a de Scarface, encarnado por Al Pacino no filme de Brian de Palma, um ícone de alguns jovens das cités; ou ainda a do assaltante Jacques Mesrine, cuja biografia era lida por Merah algumas semanas antes de sua morte. A familiaridade com esses modos de ação e sua legitimidade para aqueles que os utilizam constituem uma etapa importante para entender, ainda que insuficientemente, como eles podem em seguida se estender para outros alvos. Assim, a vontade de Coulibaly de “acabar com os policiais”, enquanto os irmãos Kouachi atacavam o Charlie Hebdo, pode sem dúvida se ligar ao seu ódio contra uma instituição que matou diante de seus olhos seu melhor amigo, Ali Rezgui, em setembro de 2000, quando os dois homens estavam colocando motos roubadas em uma caminhonete.
Depois, essa violência política não surge do nada. Podemos traçar sua genealogia a partir da guerra civil argelina. O conflito, iniciado em dezembro de 1991 pela anulação das eleições que tinham dado a vitória à Frente Islâmica da Salvação (FIS), foi extremamente violento. Até o início dos anos 2000, os enfrentamentos intensos entre o Exército e os Grupos Islamistas Armados (GIA) fizeram diversas dezenas de milhares de mortos e provocaram deslocamentos e exílios em massa. Essa situação trágica não poupou as famílias argelinas instaladas na França, às quais pertencem tanto Merah e Nemmouche quanto os irmãos Kouachi. Abdelghani Merah, irmão mais velho de Mohammed, contou sobre suas férias de verão em Oued Bezaz, onde a família paterna, que apoiava os GIA, exibia armas e às vezes “um guarda ou um civil decapitado”. Ele também explicou as pressões nesse período de um de seus tios de Toulouse para que suas irmãs “largassem a escola, colocassem o véu islâmico e ficassem em casa”.6 No contexto francês, essas decisões religiosas podem constituir ao mesmo tempo uma ordem para crianças excessivamente emancipadas (em seus passeios, suas relações ou seu modo de se vestir) e um apoio mais diretamente político aos grupos armados. Como o de Djamel Beghal, apresentado como o mentor de Chérif Kouachi e de Coulibaly, encontrado na prisão de Fleury-Merogis em 2005. Nascido em 1965, ele participou das redes de apoio dos GIA na França, o que o levou à prisão em 1994. Juntamente com Coulibaly e Chérif Kouachi, ele também faz parte de um grupo de catorze pessoas suspeitas de ter preparado em 2010 a evasão de Smaïn Aït Ali Belkacem, um dos artífices dos atentados de 1995. Na detenção, Kouachi teria entrado em contato com Farid Melouk, também condenado pelo apoio logístico a esses ataques.
Nesses encontros acontece uma ligação entre gerações diferentes de militantes ativos do islã político. Ela inscreve o engajamento em uma história mais longa, marcada por proezas de batalha, derrotas e reorientações.7 Em 1995, os GIA podiam esperar uma vitória militar e política na Argélia. As bombas colocadas nos transportes públicos parisienses visavam obrigar o governo francês a restringir seu apoio ao regime militar. Alguns anos depois, essas opções se distanciaram. Os GIA foram derrotados e o Grupo Salafista para a Pregação e o Combate, criado em 1998, declinou sob os golpes do Exército. Esse enfraquecimento político e territorial explica sem dúvida sua vinculação à Al-Qaeda em 2007, sob o nome de Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI), e uma mudança de estratégia. A organização se concentrou, a partir de então, em operações isoladas no Saara, no máximo no Mali e em Níger (como sequestros de ocidentais). Para os militantes vivendo na França ou na Europa, a continuidade da causa empregou então vias diferentes das dos mais antigos. Ela passou, nesse momento, por um redirecionamento – e às vezes uma partida – para o que os serviços de investigação chamam de “as terras do jihad” ou a passagem à propaganda pela ação.
Esse modus operandi tinha sido adotado pelos anarquistas na conferência de Londres de 1881. Seu princípio é simples: o fato insurrecional (atentados, assassinatos, sabotagens, recuperações) “é o meio de propaganda mais eficaz e o único que […] pode penetrar até nas camadas sociais mais profundas e atrair as forças vivas da humanidade para a luta”.8 Empregado um pouco em toda a Europa, nos Estados Unidos e na Rússia, ele atinge também governantes, policiais, magistrados, religiosos, opositores políticos, “burgueses” anônimos. Ele visa ao mesmo tempo punir responsáveis (por julgamentos, por torturas etc.), vingar camaradas mortos e eliminar símbolos a fim de acordar as massas. Cento e trinta anos antes de Inspire, a revista da Al-Qaeda na Península Arábica chamando à morte de Stéphane Charbonnier, o Charb, jornais como A Revolução Social, A Luta eA bandeira negra inauguravam as colunas “Estudos científicos”, “Produtos antiburgueses” e “Arsenal científico”, consagradas à fabricação de bombas. Em 1884, O Direito Social lançou até mesmo uma campanha “para a compra do revólver que deve vingar o companheiro Louis Chaves”, morto por policiais.
Propaganda pela ação
Para grande prejuízo de seus defensores, a propaganda pela ação, no entanto, não movimenta mais as multidões. Alguns atos puderam ser percebidos com benevolência, mas não mobilizaram ninguém. Ao contrário, eles até mesmo provocaram um distanciamento do mundo operário dos movimentos anarquistas, já que uma repressão sem piedade se abatia sobre eles. A tal ponto que essa estratégia foi abandonada no início do século XX, em proveito de ações mais coletivas. Em seguida, ela foi utilizada com o mesmo insucesso por movimentos de extrema esquerda (Ação Direta na França, Fração Armada Vermelha na Alemanha e Brigadas Vermelhas na Itália), mas também por partidários de extrema direita (como a Organização Armada Secreta, Timothy McVeigh, executado nos Estados Unidos pelo atentado de Oklahoma City em 1995, e Anders Behring Breivik, responsável pelo massacre de Utøya, na Noruega, em 2011).
Os recentes assassinatos que abalaram a França confirmam essa regra. Apesar das ordens de Coulibaly a seus “irmãos muçulmanos” em seu vídeo póstumo (“O que vocês fazem quando o Profeta é insultado repetidas vezes? O que vocês fazem quando massacram a população inteira? O que vocês fazem quando, diante de vocês, seus irmãos e irmãs morrem de fome?”), estes últimos rejeitam maciçamente ações das quais eles são as vítimas colaterais, se julgarmos pelos ataques às mesquitas, pelas degradações dos locais de culto e pelas agressões físicas que se seguiram. Os dirigentes políticos parecem desconhecer as lições da história quando entoam cantos guerreiros, como o primeiro-ministro Manuel Valls, que clamou na Assembleia Nacional em 13 de janeiro de 2015: “Sim, a França está em guerra contra o terrorismo, o jihadismo e o islamismo radical”.
Não dois, mas três atores
Primeiro, a situação, por mais trágica que seja, não é uma guerra. Ela continua sob o controle dos serviços policiais e das autoridades judiciárias. Os autores e seus cúmplices foram neutralizados ou presos rapidamente, e podemos legitimamente pensar que o mesmo se repetiria se outros atos viessem a acontecer. O risco zero nunca existiu, mesmo nos regimes mais policiados (como o Chile de Augusto Pinochet e a Espanha de Francisco Franco).
Depois, o discurso guerreiro supõe uma polarização, já que repousa sobre a mobilização de todos contra um inimigo comum. Se o argumento pode ter algum eco quando seus exércitos se chocam contra as fronteiras, ele não tem efeito em uma situação ordinária. As dificuldades de alguns professores para que se respeitasse um minuto de silêncio oficial em suas classes no dia 8 de janeiro de 2015, assim como a composição social das imensas manifestações do domingo seguinte, mostram que não havia unanimidade em algumas populações. Como se espantar? A vida cotidiana dos meios populares e mais particularmente de sua juventude continua mais próxima em muitos pontos à dos autores dos atentados do que da dos governantes que os incitam a se mobilizar, ou à das classes médias cultas tentadas a desfilar. As múltiplas formas de discriminações cotidianas (social, religiosa, de aparência ou de origem), a relegação social e espacial, assim como os controles policiais, tornam pouco provável a coalizão em um mesmo movimento daqueles que sofrem essas discriminações, daqueles que as organizam e daqueles que as lamentam sem, no entanto, se preocupar realmente com elas. Da mesma forma que alguns maus alunos alemães estudados pela socióloga Alexandra Oeser se dizem nazistas para chocar seus professores,9 o apoio verbal aos atentados oferece a seus homólogos franceses uma bela ocasião para contestar uma ordem escolar e social que os exclui.
Mais grave ainda, a polarização guerreira é um nonsense em matéria de violência política. Dois discursos simétricos se opõem: o das autoridades (“ou vocês estão do nosso lado ou do lado dos terroristas”) e o das organizações clandestinas (“ou vocês estão do nosso lado ou são maus muçulmanos, maus nacionalistas, maus revolucionários etc.”). A “relação terrorista”, porém, não implica dois, mas três participantes.10 O enfrentamento entre os dois primeiros se faz sob os olhares na maioria das vezes indiferentes do essencial da população, colocada em posição de espectadora via mídia. Esse distanciamento constitui precisamente a condição da não extensão da violência, particularmente quando os grupos radicais não dispõem de base social ou territorial forte. A pressão para desembocar em condenações unânimes pode incitar, por rejeição, uma minoria desses espectadores a se unir aos objetivos, ou até mesmo às fileiras, das organizações visadas. É um risco ainda maior se essa pressão for reforçada por medidas judiciais ou administrativas voltadas a dobrar aqueles que se negam a aceitá-la.
Laurent Bonelli é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 – Nanterre. Publicou La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité, Paris, La Découverte, 2008.