Os curdos, quantas divisões?
Apesar de suas reivindicações jamais terem sido reconhecidas, as populações curdas do Iraque e da Síria se veem impelidas à primeira linha do combate contra o Estado Islâmico. Elas recebem um unânime apoio de fachada que mal esconde as disputas de influência dos ocidentais, dos turcos e dos iranianos, que sempre combatAllan Kaval
Desde meados deste ano, o território curdo concentra preocupações midiáticas e diplomáticas. No Iraque, após a conquista de Mossul, no início de junho, pela Organização do Estado Islâmico (OEI) e seus aliados da insurgência sunita, o Governo Regional do Curdistão (KRG) ganhou reconhecimento internacional. Já o colapso da autoridade de Bagdá no norte do país e a queda da segunda maior cidade do Iraque provocaram poucas reações concretas. Em compensação, o desastre militar curdo de meados de agosto, diante de uma nova ofensiva das tropas do califado autoproclamado de Abu Bakr al-Baghdadi, gerou uma resposta instantânea das potências ocidentais, começando pelos Estados Unidos e a França. O martírio dos iazidis da região de Sinjar, o êxodo dos cristãos nas planícies de Nínive para áreas sob controle curdo e o avanço das tropas da OEI para Erbil mobilizaram uma coalizão inesperada, dada sua dimensão.1 Os ataques aéreos permitiram que as regiões curdas logo se tornassem santuários, e os peshmergas (combatentes curdos) recebem remessas diretas de armas e programas de treinamento com consultores externos.
Na Síria, três áreas de povoamento curdo fazem fronteira com a Turquia. Autônomos de fato desde julho de 2012, com a retirada do regime de Damasco do norte do país, esses enclaves saíram das sombras em razão da ofensiva realizada em meados de setembro pela OEI no menor e mais isolado deles, ao redor da cidade de Kobané. Como as regiões de Afrin, no noroeste do território sírio, e da Mesopotâmia Superior, no nordeste, Kobané é dominada há mais de dois anos pelo Partido União e Democracia (PYD). Graças a um pacto de não agressão com o regime de Bashar al-Assad, essa formação política, apoiada pelos combatentes das Unidades de Proteção do Povo (YPG), conseguiu se impor nas áreas de ocupação curda da Síria. Ora, o PYD e as YPG são emanações locais do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), em conflito com o Estado turco desde 1984, apesar de um recente cessar-fogo, mais em risco do que nunca.
O cerco de Kobané e a progressão dos jihadistas, a despeito dos ataques aéreos comandados pelos norte-americanos, logo transformaram a pequena localidade curda e seus defensores em símbolos da luta contra uma OEI que, nesse meio-tempo, tornou-se a encarnação do mal absoluto para grande parte da opinião pública ocidental. No entanto, a vizinha Turquia, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), recusou-se a qualquer intervenção, para não fortalecer o PKK, correndo o risco de reacender o conflito com a organização curda em seu próprio território.
Assim, no espaço de dois meses, os curdos apareceram aos olhos do mundo como o último baluarte contra a OEI. Esses tradicionais esquecidos do Oriente Médio agora marcam o limite último da expansão setentrional da organização transfronteiriça que as potências ocidentais e seus aliados dizem querer destruir, mas nem cogitam enfrentar em campo. Essa representação, amplamente difundida e globalmente ajustada, apresenta em sua expressão mais elementar o inconveniente de considerar o território curdo um bloco homogêneo. O atual enfrentamento com um inimigo comum permitiu apenas borrar parcialmente linhas de fratura consideráveis. O mundo curdo continua fragmentado. Seus atores políticos e militares evoluem em jogos de aliança que, embora em recomposição, são historicamente divergentes.
Representando cerca de 15% da população da Síria, os curdos são desprovidos de qualquer reconhecimento oficial, e às vezes de nacionalidade. Por meio de movimentos estudantis, alguns estiveram na vanguarda da luta contra o regime de Al-Assad. Desde 2012, porém, a revolução síria vem degenerando numa guerra civil de coloração confessional. As regiões curdas da Síria – chamadas de Rojava pelos nacionalistas curdos – são alvo de uma aguda rivalidade entre dois polos principais: o PKK e o Partido Democrático do Curdistão (PDK), de Massoud Barzani, principal facção do Curdistão iraquiano.
No primeiro semestre de 2012, Barzani reuniu sob sua liderança uma multidão de pequenas formações políticas curdas dispersas e rivais no Conselho Nacional Curdo da Síria (CNKS), abertamente defensor da queda do regime. Ao mesmo tempo, o PKK reatou com Damasco, de quem fora aliado sob Hafez al-Assad.2 Ele permitiu que seu partido irmão, o PYD, garantisse uma posição dominante em Rojava, contando com um aparelho militar que falta às outras formações curdas.
A partir de julho de 2012, o PYD criou, nas regiões sob seu controle, instituições sob medida para ele. Apresentando-se como uma terceira via entre o regime e a oposição, o partido propõe um modelo político conforme o corpus ideológico do PKK.
A força do petróleo
Excluído do jogo político curdo sírio, o CNKS encontra-se então dividido entre uma oposição árabe síria refratária a qualquer reconhecimento do fator nacional curdo, acordos de governança nunca honrados com o PYD e uma dependência total em relação ao PDK. No entanto, este está cada vez menos inclinado a arriscar um confronto direto com o PKK.
Essas rivalidades tendem a se articular no jogo de oposição regional instaurado pelo conflito em curso. O PDK assumiu o controle do setor energético no Curdistão iraquiano. Ele conta com os interesses bem entendidos da Turquia em matéria de hidrocarbonetos para fazer da região curda autônoma uma potência exportadora de pleno direito, escapando ao controle de Bagdá. Em sua oposição ao Estado central, o PDK então se aproxima simultaneamente dos atores sunitas hostis ao governo xiita de Nouri al-Maliki,3 favoráveis à oposição síria e apoiados por Ancara. Simetricamente, o PKK e seus aliados, inimigos históricos de Ancara, conservam relações cordiais com o regime sírio e assinaram uma trégua com seu protetor iraniano, ainda mantendo relações semioficiais com Bagdá.
Desenha-se, assim, no seio do território curdo e com graus de integração diversos, um eixo pró-Turquia dominado pelo PDK e um eixo pró-Irã dominado pelo PKK. Os rivais curdos iraquianos de Barzani, principalmente a União Patriótica do Curdistão (UPK), ligam-se em alguma medida a esse segundo eixo, com posições mais conciliadoras em relação a Bagdá, a Teerã e ao PYD. Essa configuração prevaleceu, apesar do cessar-fogo que vigora desde o início de 2013 entre o PKK e a Turquia.
Esse jogo de alianças continua a ser pertinente após a queda de Mossul, inicialmente vista, por um PDK que mantém relações com alguns líderes da insurgência sunita, como uma ocasião favorável no caminho da independência do Curdistão iraquiano.4 Entretanto, a ofensiva inesperada da OEI nas áreas controladas pelo PDK nos territórios que acabavam de escapar à autoridade de Bagdá mudou o jogo. No mesmo momento em que os peshmergasrecuam e Erbil é potencialmente ameaçada pelo avanço dos jihadistas, a aliança estratégica contraída com a Turquia revela-se inoperante para a segurança do Curdistão iraquiano. Ancara preocupa-se sobretudo com o pessoal de seu consulado em Mossul, que permaneceu no cargo apesar das advertências das forças de segurança curdas e virou refém dos jihadistas. Mas também parece favorável à insurgência sunita aliada à bandeira da OEI contra Bagdá. O governo turco recusa definitivamente qualquer ajuda militar a seus aliados curdos, quebrando uma relação de confiança que fez do PDK o melhor, se não o único, apoio da Turquia em seu entorno regional imediato. A retirada turca da cena do norte do Iraque traduz-se então mecanicamente por um apoio redobrado por parte do Irã, no momento em que o PKK e seus aliados avançam para a região de Sinjar, bem como outras áreas do Curdistão iraquiano, em acordo com a UPK. Fornecendo imediatamente as armas que Ancara se recusara a entregar, Teerã impôs-se como a nova potência regional de referência do KRG.
No entanto, é nas áreas controladas pela UPK e suas margens imediatas que a penetração da influência iraniana no Curdistão iraquiano foi mais sensível. Localizadas no sudeste do território autônomo, elas abrigam comunidades xiitas turcomenas em cujo interior milícias confessionais pró-iranianaspuderam se desenvolver e operar sem ser incomodadas pelos peshmergasafiliados à UPK. Pontualmente, intervenções diretas das forças iranianas foram destacadas nessas mesmas regiões.
Órfão da aliança turca e politicamente enfraquecido, o PDK conseguiu compensar o fortalecimento relativo de seus rivais curdos, capturando o essencial da ajuda ocidental e contando com o apoio da coalizão para combater a OEI. A formação política de Barzani controla a capital Erbil e seu aeroporto, porta de entrada obrigatória da ajuda internacional. Assim, canaliza em seu favor o apoio dado aos curdos iraquianos em geral pelos Estados Unidos e vários Estados europeus. Ao mesmo tempo, a UPK permanece afastada; o PKK, considerado por Washington e Bruxelas uma organização terrorista, não pode contar com nada que venha do Ocidente.
Apesar de tudo isso, tal realidade poderia mudar. Diante da persistente passividade de Ancara, a rápida intensificação dos ataques aéreos contra as posições jihadistas indica um reconhecimento de fato da luta dos aliados do PKK na Síria. Mas é delicado imaginar um pleno reconhecimento, pelos Estados Unidos, da posição dominante do PKK nas áreas curdas da Síria. O apoio prestado pontualmente pela força de ataque norte-americana poderia ser condicionado a uma cooperação mais estreita entre a organização curda e a oposição síria “moderada”. Também poderia estar ligado a uma maior abertura em relação a outras formações políticas curdas sírias até agora marginalizadas. No entanto, a capacidade de fazer concessões, mesmo estando fragilizados, não aparece como a principal qualidade do PKK e seus aliados. Assim, as negociações por vir, pressagiadas pela visita do chefe do PYD, Salih Muslim, a Erbil em meados de outubro, prometem novas divisões.
Nesse contexto, Ancara enfrenta uma contestação cada vez maior em seu próprio território. Muitos curdos da Turquia expressam sua cólera contra os cálculos do governo turco, que bloqueou qualquer apoio direto aos defensores de Kobané. O tom insurrecional assumido pelas manifestações levanta temores de uma retomada dos combates entre o exército turco e o PKK. Na eventualidade do colapso do PKK e seus aliados na Síria, a reativação das redes ligadas ao CNKS parece ser a opção considerada. Atualmente, as tentativas de reconstrução de uma relação privilegiada com um PDK enfraquecido e ainda totalmente dependente de Ancara na questão dos hidrocarbonetos talvez sejam um prenúncio.
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As forças em luta
PKK. Partido dos Trabalhadores do Curdistão, fundado em 1978 por Abdullah Öcalan. Organização política e militar dos curdos na Turquia, de origem marxista-leninista, em guerra contra Ancara desde 1984.
PYD. Partido União e Democracia, o ramo sírio do PKK.
YPG. Unidades de Proteção do Povo, organização combatente do PYD.
CNKS. Conselho Nacional Curdo da Síria, que reúne diversas forças políticas curdas, com exceção do PYD, com o apoio de Massoud Barzani.
KRG. Governo Regional do Curdistão, presidido por Barzani. Conta com um estatuto de autonomia dentro do Iraque.
PDK. Partido Democrático do Curdistão, fundado em 1946 por Mustafa Barzani. Dirigido por seu filho, Massoud Barzani, o partido é membro da Aliança Mundial dos Democratas, como o Partido Democrata norte-americano.
UPK. União Patriótica do Curdistão, resultante de uma cisão do PDK em 1975, domina o sul da região autônoma. É dirigida por Jalal Talabani, presidente da República do Iraque desde abril de 2005, uma função essencialmente honorífica.
OEI. Organização do Estado Islâmico, nascida sob a influência da Al-Qaeda em 2006. Autônoma desde meados de 2013, a organização dirigida por Abu Bakr al-Baghdadi controla parte do Iraque e da Síria, onde procura instaurar um califado.
*Allan Kaval é jornalista.