Os dois Brasis que irão à COP26
Felizmente não existe apenas o Brasil de Bolsonaro. Há um Brasil mais evoluído, sintonizado com o seu tempo e que agrega atores com responsabilidade social
O primeiro-ministro inglês Boris Johnson afirmou em recente entrevista que as tratativas serão “extremamente duras” durante a Cúpula do Clima, a COP26, que ocorre em Glasgow, na Escócia, entre 31 de outubro e 12 de novembro. Em clima de exigência global, a posição negacionista do governo brasileiro deverá ser tratada com severidade pelos líderes dos demais países presentes.
O favorecimento de setores econômicos imbricados na base política do governo do Brasil demonstra uma postura oficial fora de seu tempo, que tenta sobreviver pelo greenwashing. Mas tanto a mídia como ativistas não engolem falsidades. Muito menos as velhas raposas experts em relações internacionais.
Com um perfil muito fragilizado, a representação oficial do Brasil poderá ser considerada um obstáculo aos objetivos da COP26. Não só por apresentar metas irreais, subestimadas, mas porque declaradamente tenta usar seu imenso patrimônio ambiental prometendo protegê-lo se houver aporte de recursos internacionais. Esta espécie de chantagem autofágica não faz o menor sentido em situações que exigem honestidade intelectual, como ocorre nas relações internacionais dentro do universo do multilateralismo cooperativo, onde não sobra nenhum espaço para a ingenuidade.
Se transportamos a posição brasileira para outra grande demanda do multilateralismo protagonizado pelas Nações Unidas, a manutenção da paz global, seria como pedir dinheiro para não fazer a guerra. O Brasil de Jair Bolsonaro não está se adequando ao estado de emergência climática constatado no último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o AR6. Felizmente não existe apenas o Brasil de Bolsonaro. Há um Brasil mais evoluído, sintonizado com o seu tempo e que agrega atores com responsabilidade social.
Não se trata apenas de capacidade cognitiva e de informação, mas sim de uma questão ética. De um lado, o Brasil de Bolsonaro enfoca a Amazônia como um território a ser explorado pela extração de madeira, o agronegócio e a mineração, além de menosprezar as comunidades indígenas e seus territórios. De outro, temos os que defendem a Amazônia, um ecossistema florestal sem preço, com 55 milhões de anos, detentora de mais de 20% da diversidade biológica do planeta e de comunidades tradicionais, além de ser determinante para a produção de chuvas continentais com sua transposição de umidade, fenômeno conhecido como rios voadores.
As facilidades para o desmatamento da Amazônia derrubaram o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em função de fortes evidências de “esquentamento” de madeira ilegal apreendida em portos norte-americanos. Assim é o Brasil de Bolsonaro, que permite um desmatamento da Amazônia da ordem de 10.000 km² por ano, apoia publicamente a anistia à grilagem de terras públicas e as facilitações no licenciamento ambiental, por meio de propostas legislativas próprias e de seus aliados no Congresso Nacional, onde reside o famoso “Centrão”. Política e ideologicamente amorfo, esse setor parasitário parece ter compromisso apenas em sobreviver à sombra das benesses e compartilhamento do poder proporcionadas pelo governo de plantão.
O que o governo Bolsonaro interpreta, na região da Amazônia, como sendo desenvolvimento para a área agropastoril, especialmente soja e gado, trata-se na verdade de expansão de atividades em regiões de proteção ambiental que guardam alta proximidade com o crime organizado. A destruição que corta fundo a floresta, aproxima-a do tipping point, de uma falência ecossistêmica, com forte impulso para promover a desertização da região, desnudando ainda rincões inexplorados que abrigam patógenos desconhecidos e com potencial para promover pandemias.
De outro lado, há um Brasil que faz a contabilidade correta do valor ecossistêmico da floresta em pé, contabiliza sua contenção de carbono e seu valor incalculável em patrimônio genético, a ser objeto de estudos e farta produção para biotecnologia.
Há um Brasil vilão a caminho de Glasgow, o Brasil de Bolsonaro. Abandonou as notórias vantagens de ser protagonista das discussões ambientais multilaterais para se tornar um pária internacional em termos ambientais, um Brasil que promoveu retrocessos na política ambiental e nos mecanismos de gestão participativa, deixando de considerar a ciência e a percepção social, e onde setores menos esclarecidos do agronegócio acabaram por capturar a área ambiental.
Mas felizmente há outro Brasil também a caminho de Glasgow, o Brasil de governos subnacionais mais lúcidos e de suas cidades, preocupados em aumentar o nível de resiliência e em mapear vulnerabilidades. Há uma sociedade civil atenta, com movimentos sociais que mapeiam os atos de governo, entendendo que o atual rastro de destruição certamente necessitará, no futuro, de um forte processo de reconstrução.
Em síntese, o Brasil oficial adentrará a COP26 dissociado de sua gênese e identidade, de sua enorme riqueza ambiental, seja de florestas ou biodiversidade. Essa perda de identidade e a política externa tocada hoje pelo Itamaraty, com resquícios negacionistas, tornaram o Brasil uma espécie de anomalia no atual contexto global voltado para um modelo de sustentabilidade ambiental.
Essa versão oficial negacionista tende a provocar o isolamento do Brasil, especialmente para que não atrapalhe negociações mais progressistas. O soft power perdido pelo Brasil, a correção diplomática, o politicamente correto que lhe facultou sentar-se à mesa como líder entre as nações mais desenvolvidas, ficaram no passado.
Essa dicotomia, provocada por uma Brasil que não ouve a ciência e não ouve seu povo, implicará duras consequências, decorrentes da perda de imagem e de restrições comerciais, já que a economia global caminha para restringir a inserção no mercado internacional de commodities produzidas à custa da degradação ambiental. Esse é o motivo pelo qual o acordo do Mercosul com a União Europeia está naufragando cada vez mais.
O multilateralismo global tem agora como tema gerador a inegável pauta das mudanças climáticas. Um Brasil negacionista e pouco solidário não encontrará espaço nesse momento que exige generosidade inter e entre nações, além de fortes compromissos intergeracionais.
O Brasil oficial irá a Glasgow recheado de carbono. Resta-nos torcer para que o real poder brasileiro, traduzido por sua sociedade civil e governos subnacionais mais lúcidos, possa fazer diferença nesse processo de negociação global.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).