Os filmes de Miyazaki e a percepção ambiental
A contribuição dos filmes de animação do Studio Ghibli para a percepção ambiental encerra a série sobre Cinema & Meio Ambiente. O texto lança o olhar ao percurso que nos levou da Floresta Sagrada ao Mar da Corrupção, e deste para prováveis processos de regeneração: mais do que fantasia, construção de uma nova realidade
Por que deveríamos assistir, hoje, aos filmes do Studio Ghibli? Convencionou-se dizer que eles nos ajudam a lidar com nossos próprios aspectos sombrios. Mas, quando os examinamos, vemos que na verdade eles nos ajudam a lidar com os aspectos mais sombrios de toda a civilização, em especial os que têm colocado a natureza e a própria vida humana em risco. Observamos aqui como a questão ambiental é tratada em três longas de animação do estúdio dirigidos por Hayao Miyazaki e por que eles incentivaram o movimento ecológico no Japão e há décadas têm colaborado com a percepção ambiental no mundo todo. Alguns de seus filmes podem ser vistos também por crianças, como Meu amigo Totoro, mas no geral são mais direcionados a jovens e adultos – é o caso dos outros dois longas aqui considerados, Nausicaä do Vale do Vento e Princesa Mononoke.
Nos seus 35 anos de existência o Studio Ghibli já produziu diversos longas e curtas-metragens de animação, além de videogames e outras produções audiovisuais. A golden age do estúdio e o caráter visionário das obras são os motivos da escolha desses três longas. A golden age refere-se ao período em que se produziam filmes para distribuição principalmente no Japão. Após o sucesso internacional alcançado com o primeiro Oscar, recebido em 2002 com A viagem de Chihiro, é possível encontrar adaptações e censuras, conscientes ou não, nos filmes. Por isso escolhemos obras anteriores ao sucesso ocidental do estúdio. E as produções aqui consideradas são visionárias: anteciparam a discussão sobre a relação entre ser humano e natureza, sobretudo no que diz respeito à interdependência do ser humano e todos os demais seres e elementos da natureza, já que o humano faz parte da natureza, antes de isso se tornar algo comum no cinema ou até fora dele. A atualidade do tema é incontestável.
Nausicaä do Vale do Vento, lançada em março de 1984, é a primeira dessas produções. Em um futuro distópico, pós-apocalíptico, a já reduzida espécie humana está ameaçada de extinção, já que o meio ambiente se tornou inóspito. Os humanos tentam sobreviver à natureza tóxica, que libera substâncias no ar que podem matar em segundos. Além disso, existem insetos gigantes que protegem tais ambientes “naturais”. Em meio a esse caos, uma princesa-guerreira luta para impedir que os últimos sobreviventes da humanidade destruam a floresta tóxica, chamada na animação de Mar Podre ou Mar da Corrupção (Fukai), visto que isto levaria ao fim da vida na Terra. Em diálogo com o Ocidente, a heroína tem seu nome advindo da mitologia grega: personagem da Odisseia, poema épico de Homero, Nausicaä está relacionada à deusa Ártemis e, por consequência, à vida selvagem, à Lua e à proteção dos animais.
Já em Meu amigo Totoro, de 1988, embora a relação entre ser humano e outros elementos da natureza também seja central, a trama e a concepção geral são totalmente distintas. Duas irmãs, Mei e Satsuki, acabam de se mudar para o campo com seu pai para poderem estar mais perto do hospital onde a mãe está internada. Nesse novo tempo e nova paisagem, elas começam a viver aventuras com seres místicos, fantásticos, entre eles Totoro, um espírito da natureza que possui uma forma semelhante à mistura entre um gato, um urso e uma nuvem. Francamente autobiográfico, aqui Miyazaki demonstra encontrar no aspecto mítico da natureza o locus privilegiado para acolhimento das fragilidades e fantasias humanas.
De forte carga dramática, o terceiro e último longa aqui considerado, Princesa Mononoke, de 1997, retorna a um mundo anterior e mais “natural” para tentar entender os processos de desconexão física e espiritual do ser humano com a natureza. O filme começa com a vila do príncipe Ashitaka sendo atacada por um monstro. Ao tentar proteger o povoado, o príncipe é ferido e amaldiçoado. Como a maldição o levará à morte, ele sai da vila em busca de algum tipo de cura. Durante a jornada, encontra a princesa Mononoke, uma garota que foi criada por grandes lobos na Floresta Sagrada. Praticamente no mesmo ponto da narrativa ele também conhece Lady Eboshi e o assentamento humano sediado em sua mineradora, que tentam destruir a floresta por considerarem que os seres que lá vivem impossibilitam o desenvolvimento da humanidade e os lucros da exploração da natureza. A partir disso, Ashitaka, ao mesmo tempo em que busca sua própria cura, torna-se um mediador entre a civilização humana, representada por Lady Eboshi, e os seres da Floresta Sagrada, representados sobretudo pela selvagem princesa Mononoke.
Natureza e conhecimento científico, natureza e fantasia, natureza e sagrado: esse é o percurso básico das três obras. Mas vale a pena colocarmos uma lupa em alguns detalhes. A começar pelo fato de que, em Nausicaä, o apocalipse ambiental já se deu, e é necessário ter muita sensibilidade, inteligência e ciência para salvar o que resta do mundo. Já em Princesa Mononoke é apresentada a raiz de tal destruição: a “separação” entre o ser humano e a natureza – o que em termos históricos e filosóficos, no Ocidente, se dá na Grécia Ática – e a consequente exploração mercantil da natureza, a financeirização da vida. E em Totoro aparece a cosmovisão contemporânea da natureza, em que os seres humanos não são meros expectadores dos fenômenos naturais, nem meros exploradores dos elementos naturais, mas parte das próprias transformações da natureza em uma rede viva de interrelações.
Em termos narrativos, as obras retomam tradições narrativas orientais e ocidentais, com o enfrentamento de uma condição adversa: o heroísmo ao enfrentar não somente os perigos externos, mas também e em simultâneo os que são particularmente nossos, e em especial uma aceitação profunda da situação. Essa aceitação não se dá no sentido passivo, ela encoraja os e as protagonistas a verem e entenderem de modo sensível toda a complexidade em que se encontram. O modo de sentir e compreender em profundidade a realidade liga-se a diversos conceitos budistas – como sunyata e vipassana – e se constitui como a tomada de consciência que ilumina a busca por soluções, que dá força e capacidade para suportar o que deve ser suportado e lutar a luta que deve ser encarada. Nessa altura, morrer não é o que realmente importa, mas o que se percebe, se sente e se faz no tempo de vida até que a morte chegue – o destemor de Nausicaä ou de Mononoke e Ashitaka é um exemplo. Morrer com honra é um dado importante das tradições orientais, sobretudo japonesas, e se vincula a outro dado cultural do extremo Oriente: fazer tudo da melhor maneira possível, com propósito e significado.
É esse esforço levado às últimas consequências, no corpo e na psique, que acaba por conferir um caráter sobre-humano aos protagonistas do Studio Ghibli, transformando-os em guerreiros e heróis, e sobretudo guerreiras e heroínas – já que as protagonistas femininas aparecem em número largamente maior. Não há nessas produções princesas que não sejam também guerreiras, diferentemente das narrativas produzidas por estúdios ocidentais de animação.
Esse esforço parece sobre-humano quando a perspectiva é econômica ou mundana, mas, quando o foco é espiritual, ele é natural, necessário. Miyazaki sabe que, para a tradição budista, vida após vida, nos lapidamos não para sermos mais famosos ou mais ricos, mas sim para nos libertarmos do samsara e alcançarmos a libertação final, o nirvana, ou moksha. Esse é o supra-sumo da tradição filosófica e mística do Oriente, e pode justificar o impulso pela perfeição em tudo. Afinal, a todo momento estamos cultivando nossa mente e as sementes que podem nos levar à iluminação. Por que desperdiçar o tempo? Todo tempo, toda tarefa é preciosa e deve ser feita com o máximo de atenção e cuidado.
A luta heróica, aqui, não é por dominar ou vencer a natureza. A civilização humana sempre pode vencer a natureza. Temos conhecimento e tecnologia para isso. A luta verdadeiramente heróica presente nos três filmes é relativa a se criar um novo ser humano que, com sua ciência, sua sensibilidade e sua espiritualidade, contribua para os processos regenerativos do planeta. Nesse sentido surge, além da face guerreira desse herói ou heroína, uma face voltada à mediação entre, de um lado, civilização e desenvolvimento e, de outro, natureza selvagem. São mediadores Ashitaka, em Princesa Mononoke, a irmã de Mei, Satsuki, em Totoro, e a própria Nausicaä. Os mediadores são a única possibilidade de sobrevivência ou acordo regenerativo, já que quem está 100% do lado da natureza corre o risco de ser destruído com ela, e quem está 100% do lado da civilização e seu desenvolvimento não percebe que tem colocado em processo de extinção sua própria espécie, além de tantas outras.
Nas obras de Miyazaki os mediadores conseguem fazer a ponte entre os dois extremos, dialogar, negociar, enquanto personagens envolvidas demais com a natureza, como a princesa Mononoke e a pequena Mei, acabam se perdendo nela. Os filmes colocam uma questão epistemológica: o pensamento do extremo Oriente, de união indivisível do ser humano com a natureza, versus o ocidental, manifestado na ocidentalização do mundo, dirigido à exploração da natureza e ao conceito dominante de “desenvolvimento”. O próprio Japão é exemplo desse processo: ao longo do século XX, passa de um país marcado pela ancestralidade e pelas tradições de seu povo e sua paisagem para uma das nações mais industrializadas e economicamente desenvolvidas do planeta.
É exatamente quando o desenvolvimento tecnológico do Japão se estabiliza e se torna referência mundial, que surgem quase em simultâneo os filmes do Studio Ghibli, sendo o primeiro deles Nausicaä do Vale do Vento, em 1984, e o movimento ecológico japonês. A cidade de Tóquio passa a ter o metro quadrado mais caro do planeta, mas não havia ainda movimentos ambientais, ao menos não no nível da pujança tecnológica do país. Diferentemente das nações ocidentais, em que os movimentos ambientalistas surgiram para alertar a opinião pública, pressionar empresas e exigir regulação dos países, no Japão as primeiras investidas nesse sentido foram da própria iniciativa privada, já na década de 1960. Depois, em afiliação à primeira conferência mundial sobre meio ambiente da ONU, em Estocolmo 1972, materializaram-se as primeiras regulamentações em nível estatal. O ambientalismo como movimento social, além de não muito numeroso, surge tardiamente no Japão, entre final da década de 1980 e início da de 1990, com fortes indícios da influência dos filmes do Studio Ghibli nesse processo.
Animés ou cinema de animação?
A partir das últimas décadas do século XX são evidenciadas três principais vertentes entre as produções cinematográficas que tematizam o meio ambiente. Em primeiro, documentários de fundamento ecológico – didáticos ou de denúncia –, sobretudo frente à perda de biodiversidade e à iminente crise climática na virada de milênio. Incluem-se aqui produções audiovisuais de forte conotação jornalística, como alguns materiais feitos para a TV pela National Geographic ou pela BBC. Em segundo, filmes de ficção científica que já começam a flertar com o apocalipse terreno, e inclusive com o pós-apocalipse, sendo que alguns dialogam com o gênero fantasia, com produção mais concentrada nas duas últimas décadas do século XX, embora sigam além, como Star Wars, de George Lucas, Mad Max, de George Miller, Blade Runner, de Ridley Scott, e Duna, de David Lynch. E, em terceiro, filmes de narrativa ficcional, ainda que alguns fossem baseados em casos reais, de diretores como os alemães Werner Herzog, Rainer Fassbinder e Wim Wenders, além do japonês Akira Kurosawa e do russo Andrei Tarkovski, a maioria concentrada nos anos 1980.
O cinema de animação japonês de Miyazaki pertence a essa terceira vertente, com o diferencial de se tratar de filmes animados, ou animés, e portanto ter também uma filiação junto às séries de desenhos de TV, por sua vez herdeiras das HQs do tipo mangá. O termo “animé”, aliás, é evitado para se referir a longas-metragens. O gênero cinema de animação japonês é algo sério e ultrapassa a vertente infantil dos desenhos de TV, pois se configura como uma linguagem audiovisual que permite uma série de experimentações. Destacam-se filmes para público adolescente, jovem e adulto, com certa complexidade dos temas tratados, que vão além do bem e do mal que dominou por décadas as produções feitas para o público infanto-juvenil no Ocidente. Também são inseridos elementos relativos ao sagrado, ao mítico, com forte influência do Budismo e do Xintoísmo, de onde vêm os deuses kami, como veremos a seguir. O cinema de animação japonês tem grandes orçamentos, criação de ponta a ponta e renomados compositores para as trilhas sonoras.
Obviamente, multidões são encantadas por essas produções, e alguns fãs se excedem. Em relação aos “otakus” – fanáticos ou viciados em animes –, Miyazaki já os criticou publicamente por julgar que ridicularizam ou infantilizam as produções. No Brasil também são frequentes eventos de cosplay, sem interesses maiores na arte, cultura ou na língua, apenas pela parte mais superficial do universo dos mangás e animes. Isso significa algo como jogar fora a polpa de uma banana, ou seja, a parte mais saborosa e nutritiva, e comer a casca. Para além da superficialidade enaltecida por alguns tipos de fãs, Nausicaä do Vale do Vento, por exemplo, tem grande sofisticação discursiva, sendo que no nível discursivo está a mensagem que Miyazaki deixa para o mundo. Não é pouca coisa ou apenas uma “fantasia”. A partir deste filme é criado o próprio Studio Ghibli.
Como personagem, Nausicaä mantém certa similaridade com Safiri, de A princesa e o cavaleiro, por ser o elemento feminino e adolescente que deve, como um adulto homem, defender seu território da ruína absoluta, responsabilidade muito alta que ambas as personagens assumem com toda sua força e coragem. Em vez de exércitos fortemente armados, elas contam com poucos seres e artefatos: no caso de Safiri, seu cavalo Opal e um travesso semi-anjo, Ching, e, no caso de Nausicaä, uma máquina voadora em formato de gaivota, chamada Mehwe, e um mascote meio raposa, meio esquilo, Teto. Considerado o primeiro shoujo mangá – história em quadrinhos destinada ao público feminino –, A princesa e o cavaleiro surge como mangá no início dos anos 1950, depois, no final da década, é transformado em radionovela e finalmente, nos anos 1960, em série de anime para TV, com exibição por duas décadas, inclusive no Brasil, marcando gerações.
Safiri é, ela mesma, tanto a princesa quanto o cavaleiro, já que tem dois corações, um de menina e um de menino, e foi criada como homem para que pudesse defender o reino da Terra de Prata. Já Nausicaä, como vimos, recebeu seu nome da mitologia grega, como a personagem que ajudou Ulisses, na Odisséia, e foi por ele comparada à deusa Ártemis, das florestas, por ter voz, inteligência e força semelhantes ou superiores aos deuses masculinos. Mononoke também mantém semelhanças com Safiri e os shoujo mangás, por ser protagonista feminina e de índole emotiva porém nada frágil: uma princesa incomum, radicalmente amorosa, agressiva, imersa na natureza selvagem. Seus meios de transporte e grandes interlocutores são os lobos. E a pequena Mei, de Meu amigo Totoro, igualmente carrega uma potência feminina autônoma que, junto à natureza local e seus seres mágicos, consegue sobreviver à ausência da mãe e à insuficiente atenção do pai e da irmã.
De qualquer modo, em Nausicaä, Totoro e Mononoke a força da percepção ambiental e da transformação vem das personagens femininas: o reconhecimento de que o ser humano é parte da natureza, a auto-responsabilização do que se passa no ambiente como escolha consciente, uma certa rebeldia contra o estabelecido socialmente (que gerou a degradação dos ecossistemas) e a busca por processos regenerativos. Se em Totoro esses processos estão mais no campo afetivo e da fantasia, em Nausicaä eles aparecem sobretudo junto à ciência, e em Mononoke junto à ruptura com o tipo de civilização baseada no poder econômico que tem nos dominado.
Herança das tradições espirituais-filosóficas do Japão
Miyazaki bebe na fonte milenar da cultura japonesa. Se analisarmos toda sua obra, entre elas quadrinhos, ilustrações e filmes, veremos a essência do pensamento que modelou e mantém até hoje a cultura japonesa, tanto em termos filosóficos quanto mitológicos. Aqui destacamos duas influências que aparecem de modo concreto nas obras que analisamos, o xintoísmo e o budismo. O xintoísmo é a religião natural do povo japonês. Nele, a natureza é a manifestação do mundo espiritual. É na natureza que existem deuses (kami), seres místicos, espíritos etc. Para o xintoísmo, a natureza deve ser respeitada e louvada como os próprios deuses, já que eles são a própria manifestação da natureza.
Em Princesa Mononoke, o personagem Shishigami – Deus da Floresta Sagrada – é uma boa ilustração do pensamento xintoísta. Shishigami é o ser espiritual que mantém a harmonia e cuida para que a floresta e seus habitantes vivam da melhor maneira possível. Sua forma é animal e sua mente é a de um Deus, de um espírito elevado, assim, ele é onisciente do que ali acontece. Neste filme, em especial, existem várias referências a crenças xintoístas. A água que purifica e que cura o ser humano, os animais sagrados, os espíritos de vários níveis que vivem na floresta e as consequências nefastas da destruição do mundo natural pela sociedade civilizada. O próprio nome “Floresta Sagrada” já induz à ideia de sacralidade da natureza.
Já em Nausicaä as referências xintoístas dialogam com o conhecimento científico. Nausicaä confia mais na natureza, mesmo que já se encontre num alto nível tóxico, do que na sociedade humana. Ela vê o Ohmu – na narrativa, ohmus são protetores da floresta Fukai e incompreendidos pelos humanos – como kami, como um Shishigami, e trata os habitantes do Mar da Corrupção como se fossem deuses, com respeito, admiração, amor, enquanto a humanidade tenta destruir a floresta e os insetos gigantes que estão pondo a vida humana em risco.
E em Totoro, novamente, temos um retrato muito claro dos espíritos kami que habitam a floresta, uma vez que os personagens não humanos da história são seres mágicos. Também podemos ver como a cultura popular japonesa aborda assuntos espirituais com naturalidade e de maneira agradável para as crianças. Em uma das primeiras sequências, as protagonistas Mei e Satsuki chegam em uma casa velha e aparentemente abandonada no interior do Japão. O curioso é que as duas entram correndo na casa, muito empolgadas, para ver se encontram os espíritos/fantasmas que ali vivem. Quem assiste a estas cenas é provável que se volte para si e relembre o que sente a maior parte da civilização ocidental perante o sobrenatural: medo. Mas em Totoro, os fantasmas, os espíritos da natureza, são parte do mundo e da vida cotidiana e vê-los é, antes de mais nada, uma virtude. Sendo assim, as crianças anseiam por conseguir.
Budismo, bodhisattva, compaixão
O budismo é uma religião ou filosofia espiritual criada há mais de 2.500 anos na Índia pelo príncipe Sidarta, que abriu mão de toda riqueza e poder para descobrir e realizar a verdade do fim do sofrimento e do despertar da mente. O budismo japonês possui escolas muito específicas que vão desde vertentes mais religiosas, como o budismo nichiren, até versões mais filosóficas e iconoclastas, como o soto zen. A ideia do ser humano que luta para superar suas fraquezas visando a salvação de todos os seres sencientes – portanto, um bodisatva – é algo forte no budismo mahayana e pode ser vista em muitos personagens de Miyazaki. Nausicaä e Ashitaka, este em Princesa Mononoke, lutam não apenas para o próprio bem estar, mas para gerar uma nova experiência de vida, mais equilibrada, mais harmoniosa, para si e para todos os seres. Dois elementos mostram isso: o respeito por todas as formas de vida e a não violência.
O respeito e a não violência, por sua vez, são conectados com outra importante ideia para o budismo – karuna, ou compaixão. Essa compaixão é uma expressão da empatia, do respeito, da atitude de abraçar a dor do outro como se fosse a própria. Uma das primeiras cenas de Nausicaä demonstra de maneira extremamente didática a atitude compassiva: Nausicaä encontra seu professor Yupa Sama, que havia resgatado um animal mutante, entre raposa e esquilo. Quando Nausicaä tenta interagir com o animal, ele a morde de modo agressivo e doloroso. Porém, Nausicaä entende que ele está fazendo isso por medo e, em vez de uma reação de repulsa, de aversão, ela manifesta uma atitude de compaixão, de amor, para conseguir acalmar a criatura. E ele, Teto, acaba por se tornar seu grande companheiro na luta pela regeneração do que resta da natureza no Vale do Vento.
No budismo – aqui entendido não como religião, mas como conhecimento – esses processos de percepção da realidade ambiental e de transformação poderiam ser resumidos pelos conceitos de aceitação – ou seja, compreensão e clareza extremas –, karuna – a compaixão, o comprometimento em retirar o sofrimento dos outros –, vipashyana – o olhar em profundidade, com insights, que nos liberta de sofrimento –, shamatha – a arte de fazer cessar – e, por trás de tudo, metta – o amor bondade, incondicional, que orienta todas as nossas ações. Podemos ver a própria Nausicaä como bodisatva, uma espécie de anjo, alguém que recusa se salvar antes que todos os outros seres possam também ser salvos.
Vale lembrar da força do budismo também como ciência e tecnologia: ao ser inserido no Japão no século VI, o budismo é fundamental para os processos de modernização do país, com o advento de papel, tinta e por consequência da língua escrita, e da própria filosofia ou pensamento científico. Nos séculos iniciais, essa influência se deu entre membros das famílias reais, mas, posteriormente, em total convivência com o xintoísmo, popularizou-se por todas as camadas sociais. Historicamente, as primeiras manifestações de mangá caracterizam-se por influência e representação budista.
Crise civilizatória, consciencial e ambiental
Se em Princesa Mononoke é apresentado o paradoxo civilização × natureza e em Nausicaä temos visões pós-destruição ambiental, em Totoro destaca-se o caráter mítico e fantasioso da natureza e a evidência do humano como parte da própria natureza. Esteticamente, Totoro atinge um patamar icônico, altamente característico do Studio Ghibli – inclusive um totoro é o mascote símbolo do estúdio. O ônibus-gato e a famosa cena das meninas esperando o pai no ponto de ônibus, ao anoitecer, na chuva, são exemplos marcantes da caracterização ao mesmo tempo estética e emocional que Miyazaki confere a Meu amigo Totoro.
Enquanto Princesa Mononoke tem uma emotividade selvagem e Nausicaä mostra-se mais racional, tanto na estética quanto na própria proposta narrativa, Totoro apresenta-se mais emocional e portanto mobilizador. Mesmo que haja nele elementos que podem ser considerados referências a Alice no País das Maravilhas e Alice no País do Espelho, do inglês Lewis Carroll, mantém-se como uma espécie de discurso fundador da relação mítica entre ser humano e demais elementos da natureza – é menos fantasioso ou lisérgico que Alice, e mais afetivo. O fator amizade está presente em todos os filmes, sobretudo a amizade entre espécies. Os animais nessas três obras não são meros animais: encontram-se na intersecção do animal, do mítico e do humano.
Com as obras de Miyazaki percebemos que nossa civilização é endossada pela cultura e pela religião como separadas da natureza; a natureza está para servir o homem – “superior” à natureza – e como o lugar do pecado, do selvagem indomável. A civilização dominante hoje na Terra prima pelo maniqueísmo, pelo dualismo bem × mal. Uma civilização que se comporta como se fosse superior às demais forças da natureza é o exemplo mais profundo da crise consciencial que prevaleceu no mundo até agora. Os filmes de Miyazaki e do Studio Ghibli no geral são oportunidades de vermos diferentes visões e culturas. Eles mostram o quão indivisível é a relação entre natureza, ciência, arte, fantasia e espiritualidade.
Interser e o novo ser humano
O conceito budista de interser diz respeito à capacidade de ver a interdependência de tudo que existe. No nosso corpo, no nosso alimento, na natureza, no universo, tudo existe a partir da existência de outros seres e fenômenos, numa cadeia interativa. Vemos isso quando Nausicaä mostra para seu mestre Yupa que o Mar da Corrupção existe enquanto meio de eliminar a poluição que o ser humano fez na era industrial, que quase extinguiu toda a parte natural do planeta. Ou seja, a natureza que matava o homem nesse mundo novo não o fazia sem motivo, era um meio de desintoxicar o mundo natural. Assim, o que acontece no presente existe pelo que havia ocorrido no passado e gera um novo futuro.
Em suas obras, Miyazaki não está dizendo que a resposta está na cultura japonesa ou em alguma tradição espiritual do Oriente. Ajudar na formação de um novo ser humano é seu objetivo. Nausicaä, Ashitaka e Satsuki são os representantes deste novo humano, não para criar um novo “ismo” ou defender alguma bandeira, mas simplesmente para ser um construtor de pontes, um mediador.
O mestre Yupa representa a tradição dos homens nobres e santos, o arqueiro zen que existe há milênios no Japão, mas Nausicaä vai além disso. Nausicaä é o novo ser humano que surge do velho. Ela abre o diálogo entre a natureza do Mar da Corrupção e a sociedade humana. A princesa Mononoke lidera junto à sua mãe loba a guerra contra a civilização que tenta destruir seu ambiente. Ashitaka, no entanto, faz a mediação entre, de um lado, o mundo da natureza e dos deuses kami e, de outro, a sociedade industrial de Lady Eboshi. Em Totoro, Satsuki é o ponto de equilíbrio entre a realidade e o mundo da fantasia. Sua irmã Mei ainda é muito nova e não consegue distinguir onde começa uma realidade e termina outra. Já Satsuki é o elo entre os dois mundos. Ela tanto entende as preocupações do pai e da família quanto vivencia as mesmas aventuras que sua irmã mais nova.
Além disso, esse novo humano é livre como um animal e onisciente como um deus. Ele aprecia o contato com a natureza e com o espírito selvagem, não domesticado, que existe nele. E com isso traz uma nova dimensão à experiência do ser humano em sociedade. Onde isso é visível nos filmes? Na expressão da animalidade – enquanto força e sensibilidade – e principalmente na comunicação com o natural e o sobrenatural, o mágico.
O antigo ser humano, que ainda domina o planeta, é pesado, reprimido, acumulativo, comandado pelo centro da cabeça, enquanto o novo ser humano é ao mesmo tempo leve e forte, destemido e sensível, agressivo quando necessário e comandado pelo coração, sabe ouvir tanto seu instinto quanto sua racionalidade. Satsuki consegue ver os espíritos, pois ainda não perdeu sua natureza selvagem, seus sentidos ainda não foram “adestrados”. Nausicaä consegue falar com os ohmus e os insetos do Mar da Corrupção. Ashitaka também, ele é puro o suficiente para ser tocado pelo Shishigami. Essa magia só é realizada por aqueles que veem a natureza como eles mesmos, ou seja, aqueles que se reconhecem como parte da natureza.
Último ato: a poética da regeneração
A transição para sociedades regenerativas não passa apenas pela economia, a coparticipação política, a legislação e a ciência, mas também pela produção artístico-cultural. O cinema e o audiovisual têm provado seu potencial nesse sentido há décadas, e os filmes de animação do Studio Ghibli se destacam como narrativas ficcionais efetivas para a compreensão dos processos sociais e ecológicos, e são, portanto, de extrema contribuição à educação ambiental de jovens e adultos.
O Brasil é, depois do Japão, o país em que mais vivem japoneses ou seus descendentes no mundo. Se a obra de Miyazaki, sobretudo nos anos iniciais do Studio Ghibli, foi importante para a constituição de uma consciência e de uma percepção ambiental no Japão, na fase mais alta de sua industrialização, de seu capitalismo predatório, influenciando na formação do movimento ecológico japonês, o olhar sensível sobre tais produções é mais que bem-vindo hoje no Brasil. O desmonte das estruturas de regulação e fiscalização ambientais tem transformado diversos pontos de nosso país em verdadeiros Mares de Corrupção, ou Fukai, como observado em Nausicaä. As narrativas, as imagens, a linguagem poética não estão a serviço apenas da fantasia, elas igualmente colaboram na construção de nossa realidade, ou melhor, na construção de nossa percepção da realidade. Em termos de percepção ambiental no Brasil, isso é fundamental. E urgente.
De qualquer modo, em termos planetários a situação também não é animadora. Se formos tomados e tomadas repentina e coletivamente por uma grande crise de consciência que nos faça mudar hoje os rumos de nossas ações, incluindo aí o modo como grandes conglomerados transnacionais atuam globalmente – pressionando e corrompendo povos e nações –, temos alguma esperança.
Nesse caso, como sugerido em Nausicaä, não sabemos exatamente como irá se desenrolar a partir disso a crise climática, a perda da biodiversidade, a insurgência e mutação de variados vírus e bactérias, nem o quão comprometidos estarão os reservatórios de água doce do planeta, a produção de alimentos, a qualidade do ar e a capacidade dos oceanos combaterem a acidificação que os assola. De fato não sabemos responder o que poderia se passar com a Terra a partir disso. Assim como no momento em que Ashitaka e Mononoke devolvem ao Deus da Natureza, ao Espírito da Floresta Sagrada, sua própria cabeça que havia sido arrancada pelos exploradores de recursos naturais, o que foi destruído provavelmente não se recupere, e se perca para sempre. Mas de qualquer modo os processos destrutivos são interrompidos e novas relações podem ser imaginadas.
Frente a essa verdadeira ópera trágica em que a civilização humana colocou a si e a outras espécies, a parte cantada do belíssimo tema de Princesa Mononoke, de Joe Hisaishi, nos dá uma dica de onde podemos encontrar essa resposta: “Somente os espíritos da floresta conhecem o seu verdadeiro coração / Somente os espíritos da floresta“.
Ana Silvia Andreu da Fonseca, jornalista, linguista, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), membro dos projetos Cineclube Cinelatino e Doc Ambiente, coordenadora de Comunicação do Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, e pesquisadora de narrativas da catástrofe climática e da relação entre arte, comunicação e percepção ambiental.
Pedro Marcelino da Silva, criador visual e ilustrador, graduou-se em Letras e foi lutador profissional de Jiu-Jitsu. Como animador, trabalhou em diversos projetos de animação, incluindo três longas metragens. É autor dos livros Nausicaa e Bakhtin (2018) e Budô e Meditação (2020), além de um dos autores da graphic novel Cons – Entendendo nossa Evolução (2018). No Confor Studio e na Confor SDC, é professor de desenho, meditação e budô/artes marciais para o autodesenvolvimento.