Os governos em isolamento voluntário
O documento final dos chefes de Estados na Cúpula da Amazônia não incorporou mecanismos efetivos de participação popular nas decisões políticas
Ainda estamos vivendo uma “ressaca”, um desconforto com a declaração final da Cúpula da Amazônia, que ocorreu entre os dias 8 e 9 de agosto, em Belém (PA). Foi um evento importante enquanto preparativo para a Conferência de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (COP28), que está prevista para acontecer no final deste ano, a partir de 30 de novembro em Dubai.
Destaco que a “ressaca” não é com os Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia em si, mas com o documento final dos chefes de Estados que, apesar de reconhecer os direitos de participação dos amazônidas e da sociedade civil, não incorporou mecanismos efetivos de participação popular nas decisões políticas
A declaração dos presidentes, que já vinha sendo elaborada pelas chancelarias dos oitos países que fazem parte da Pan Amazônia, não dialogou com os resultados das plenárias onde a sociedade civil debateu amplamente e produziu propostas. O documento reconhece a diversidade amazônida, mas não cria mecanismos para que a participação seja mais que uma retórica.
Nos três dias que antecederam a cúpula, e no espaço denominado Diálogos Amazônicos, a sociedade civil mobilizou-se em discussões e construção de propostas coletivas. Por meio de seis documentos, os povos indígenas, os quilombolas, mulheres e homens representando movimentos sociais, comunidades camponeses e rurais, ribeirinhos e afrodescendentes se fizeram presentes e apresentaram suas demandas e recomendações aos chefes de governo. As discussões foram divididas nas seguintes plenárias:
Plenária I – Participação e a proteção de territórios dos ativistas, da sociedade civil e dos povos das florestas e das águas, do desenvolvimento sustentável da Amazônia e erradicação do trabalho escravo no território.
Plenária II – Saúde, soberania e segurança alimentar e nutricional na região amazônica: ações emergenciais de políticas estruturantes.
Plenária III – Como pensar a Amazônia para o futuro a partir da ciência, tecnologia, inovação e pesquisa acadêmica e transição energética.
Plenária IV – Mudança do Clima, Agroecologia e a socio bioeconomia da Amazônia, manejo sustentável e os novos modelos de produção apara o desenvolvimento sustentável.
Plenária V – Os povos indígenas das Amazônias, um novo projeto inclusivo para a região.
Plenária VI – Amazônia Negra povos e comunidades tradicionais.
Participação social
As falas dos representantes da sociedade civil refletiam o desejo de participação no planejamento, na execução, no acompanhamento e na avaliação das políticas públicas dirigidas à Pan Amazônia. Refletiam mais que um desejo, exigiam o reconhecimento da ciência, das práticas ancestrais e contemporâneas que tornam a Amazônia um ser ‘vivente’ e vital para o equilíbrio ecossistêmico do planeta.
Recomendaram, enfaticamente, a não submissão dos Estados aos interesses econômicos do capital. Dezenas de propostas refletiam o anseio popular de uma Amazônia reconhecida como sujeito de direitos, livre da exploração de combustíveis fósseis, livre da mineração predatória e pelo desmatamento zero até 2030, dentre outras.
As recomendações das seis plenárias da sociedade civil não encontraram ressonância no desenvolvimentismo verde que ecoa entre os governantes, e exposto na declaração final apresentada. Faltou consenso para recomendações baseadas na ciência, na vida e nos saberes dos amazônidas.
Os chefes de Estado distanciaram-se da sociedade e decidiram pelo isolamento voluntário. Isolamento esse que aponta, em seu documento, para políticas públicas sem considerar de fato as reinvindicações dos cerca de 27 mil participantes dos Diálogos Amazônicos.
As 113 propostas contidas no Documento dos Presidentes não consideram o controle social, metas comuns e a definição de recursos contra iniciativas que degradam a floresta. São recomendações sem prazos e sem um plano para implementação e sem mecanismos concretos de participação da sociedade civil.
Aprovaram uma declaração sem metas para o desmatamento zero [i], sem posição definida quanto à exploração dos combustíveis fósseis [ii] e não se comprometeram com a demarcação dos territórios indígenas.
Por um lado, o documento recebeu elogios por contemplar alguns temas fundamentais para a preservação do bioma e por sinalizar, pela primeira vez, a elaboração de uma agenda conjunta entre Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
Essa declaração reflete os limites impostos pelos interesses dos setores da indústria do gás e do petróleo, da exploração de minérios, do agronegócio e das grandes corporações capitalistas.
Representantes da sociedade civil enfeitaram o cenário do primeiro dia da cúpula que reuniu presidentes e outras lideranças dos países amazônicos. A sociedade civil falou claramente sem ser ouvida. Enfeitaram a reunião dos chefes de Estado como um jarro de flores que se põe numa mesa. Homens e mulheres representando cerca de 40 milhões de amazônidas foram ignorados na declaração final da Cúpula dos Chefes de Estado.
Minha experiência pessoal no Diálogos Amazônicos se deu como participante da organização da mesa temática “Modelos de Cooperação e Perspectivas de Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial – PIACI, na Região Amazônica”.
Na Pan Amazônica (incluindo o Grande Chaco Paraguaio) existem 185 registros de Povos Indígenas em Isolamento (PIA), desses 66 registros já foram confirmados. Esses povos, no exercício da sua autodeterminação, decidiram não estabelecer relações contínuas com as populações do seu entorno.
Os PIA, por dependerem exclusivamente dos seus territórios e recursos naturais para sobreviverem, contribuem decisivamente para a preservação da biodiversidade amazônica e para a estabilidade climática global.
Os organismos internacionais, ao reconhecer que esses povos estão submetidos a um conjunto de vulnerabilidades, recomendam a formulação de políticas públicas especiais de proteção.
Nesse contexto, a partir da década de 1980, organizações indígenas e organizações aliadas de proteção e promoção dos direitos indígenas e humanos impulsionaram para que alguns Estados da América do Sul passassem a formular e implementar iniciativas e políticas públicas de proteção dos PIA.
A Mesa Temática PIACI, no âmbito dos Diálogos Amazônicos, pretendia contribuir com propostas de formulação e implementação de políticas públicas de proteção para os Povos indígenas em Isolamento e Contato Inicial na região Amazônica.
Essa mesa foi uma iniciativa do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), em cooperação com a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e 11 organizações indígenas, quatro organismos multilaterais, cinco instituições de governo e 10 organizações da sociedade civil dos oito países integrantes da bacia amazônica.
Participei, como representante do Grupo de Trabalho Internacional pela Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial (GTI PIACI) e da Land is Life (LIL), na Câmara Técnica [iii] criada pela OTCA para impulsionar a realização de tal mesa.
Foram inúmeras reuniões prévias, elaboração de notas conceituais e documentos, contatos com especialistas indígenas e não indígenas no tema PIACI e representantes governamentais e multilaterais dos oito países membros da OTCA. Essa produção levou quase dois meses, mobilizando e sincronizado várias equipes: logística, cerimonial, moderação, concepção, contatos com órgãos multilaterais e equipe de redação do documento final.
Chegado o dia (05 de agosto de 2023), plenária lotada num ambiente de muita empolgação, foram quatro horas de apresentações e debates. Especialistas indígenas e da sociedade civil, representantes governamentais, de movimentos sociais e representantes de organismos multilaterais se sucediam em apresentações e debates.
Um conjunto de recomendações pautadas pelo reconhecimento do isolamento enquanto expressão da autodeterminação foi apresentado pelos participantes e sistematizado no documento final da Mesa Temática PIACI, que refletiu essa discussão e apresentou uma proposta geraliv articulada a um conjunto de propostas temáticas: autodeterminação e território; definição; gestão e monitoramento regional de acordos e políticas públicas; mecanismos para proteção e participação; e atenção à saúde. Ao final, vencidas todas as barreiras, a sensação era de missão cumprida.
Dentre as 113 decisões apresentadas na declaração final, o evento Diálogos Amazônicos é citado uma única vez na decisão 112v, mas sem explicitar como a sociedade civil participará da gestão, discussão e implementação de suas próprias propostas. Destaco que ao ouvirem as reivindicações dos representantes das seis plenárias dos Diálogos Amazônicos e não as considerar no documento final, configura uma escolha pelo isolamento voluntário dos governantes apoiada na prerrogativa da não escuta, mesmo que o argumento para não as reconhecer seja uma dificuldade de consenso entre os oito mandatários.
No Brasil vivenciamos, entre 2018 a 2022, o real significado de um mandatário fascista que ao longo de quatro anos se recusou a dialogar e se apropriou de demandas, frustrações e anseios de mudança social na perspectiva de um populismo de extrema direita para desmontar políticas, destruir direitos sociais e ambientais e devastar biomas. Hoje é necessário que os governos de “esquerda” e “progressistas” saibam não repetir erros do passado, e não permitam que a representação das demandas populares, da justiça social e dos grupos minoritários seja ocupada por extremistas de direita e fascistas que propõe alienação em vez de participação, negam os problemas reais e anulam nossas esperanças de vida e futuro.
No que tange aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, comemorou-se que pela primeira vez esses povos são citados num documento assinado por oito chefes de Estado, o que eleva as reinvindicações de proteção e promoção de direitos desses povos para outro patamar político. Mas é muito pouco quando a sociedade local e global aponta pelo anseio de transformações radicais e concretas.
A “ressaca” só passará quando os movimentos da sociedade civil e os povos originários, com todo seu vigor e perseverança estabelecerem um diálogo de fato, e superarem o isolamento dos chefes de Estado dos oito países que integram a Pan Amazônia.
Os Diálogos Amazônicos explicitaram a necessidade de se romper com as práticas históricas de exploração da Amazônia, implementadas no século XVI pelas metrópoles europeias. Esse modelo ainda insiste na continuidade de um desenvolvimento a qualquer custo, por meio de propostas decorativas ou mitigatórias, muito distantes das mudanças efetivas do modelo vigente de exploração e de mercantilização da vida e do território amazônico.
[i] Entre outros pontos, os presidentes concordaram em criar a Aliança Amazônica de Combate ao Desmatamento, mas não definiram meta única. Cada país deve perseguir seus próprios objetivos: no Brasil, meta é zerar desmate até 2030.
[ii] O tema teve espaço tímido na Declaração de Belém. O texto final fala em “iniciar um diálogo” sobre a sustentabilidade de setores “como mineração e hidrocarbonetos”.
[iii] iii Compõem a Câmara Técnica OTCA/MPI: Organização do Tratado de Cooperação Amazônico (OTCA), Ministério dos Povos Indígenas do Brasil (MPI), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), Grupo de Trabalho Internacional pela Proteção dos PIACI – GTI PIACI, Land is Life – LIL, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), Grupo de Trabalho Socioambiental da Amazônia (WATANIBA), Instituto Socioambiental (ISA), Amazon Conservation Team (ACT Colômbia) e Rainforest Noruega (RFN).
Antenor Vaz é físico, educador popular e consultor internacional para metodologias e políticas de proteção para Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. Atualmente é consultor para América do Sul na Land is Life.