Os limites da doença literária
“Jaboc”, de Otto Leopoldo Winck, é um livro em homenagem às palavras, para que elas se guardem até na desgraça por vezes incompreensível que é escrever a qualquer custo.Renata Miloni
Como o mundo literário trata a literatura? Como escritores e afins (estes em maior quantidade do que aqueles) relevam seu próprio ofício? Tenho percebido ultimamente uma certa inclinação dos escritores em geral (ou mais famosos ou menos ou quaisquer) a negar sua condição, aquela que eles mesmos escolheram. Isso me leva à cotidiana hipocrisia: o querer é rebaixado pela imposição de quem veio primeiro. Em outras palavras, escritor não tem mais o direito de sofrer para escrever. Se sofre, não pode estar ali porque é proibido. Se o admite, é crucialmente banido dos desnecessários círculos literários ? pois neles se pode tudo, menos ter na literatura qualquer tipo de sofrimento. Talvez o banal seja exatamente a definição que o “sofrimento” de um escritor ganhou com o tempo.
Com uma lentidão que me foi preciosa, li recentemente Jaboc (Editora Garamond, 2006), romance do carioca, radicado em Curitiba, Otto Leopoldo Winck. Um professor universitário, que teve sua vida toda direcionada à literatura, começa a escrever um livro sobre um homem que escreve um livro. Personagens comuns, histórias comuns, motivos comuns. Sempre? É preciso coragem para se entregar ao comum sem deixar que ele domine as palavras. Se as histórias já foram contadas na literatura, se todas já são conhecidas, é possível refazê-las admitindo o que todos querem esconder?
[…] e em virtude da compulsão ? não, realmente não havia palavra mais adequada ? pela perfeição (perfeição, aliás, sempre ideal e utópica, isto é, presente em lugar nenhum), em virtude dessa sua compulsão obsessiva, catatônica e casmurra pela orthoepeia, ele era obrigado a compulsar novamente os dicionários à cata de um sinônimo mais apropriado. (pág. 128)
Só há nomes para quem convive com aquele que escreve dentro e fora do livro. O autor sem nome, o professor querido e talentoso, o único capaz de ir adiante com a qualidade literária que o país suporta. Não se trata de um herói nem o oposto. O heroísmo literário já deve ter sido disfarçadamente enterrado há um bom tempo.
O autor dentro do livro conquistou uma vida que poderia muito bem sustentar a carreira de escritor, sucedida ou não. Mas é suficiente apenas para sustentar uma vontade antiga impulsionada pela crença num suposto talento? Todos os fatos tão bem conhecidos pela realidade atual da literatura brasileira estão ali. Cada detalhe que, às vezes, parece tão distante, Otto Winck deixa nítido. Ele nos entrega honestamente todas as hipocrisias literárias para as quais muitos viram as costas com a certeza de ignorar e se livrar delas.
O livro toma o tempo do protagonista de forma a atrapalhar as aulas na universidade, a fazer com que seu comportamento, saúde e rotina transpareçam o cuidado ignorado para com a própria vida. Há os amigos, as paixões, as distrações (mulheres inevitavelmente atraídas pelo intelecto, bebidas que vêm e ficam despercebidas até que seu corpo comece a gritar por socorro, etc.). Está tudo ali: o clichê do professor e suas alunas a quererem dominar todos os olhares e intenções. Tudo o que move aquela literatura que precisa sair dele a qualquer preço.
Do comum permanece o que se vira contra ele, a traição que não lhe provoca a loucura de ser traído sabendo os lugares a que cada um agora pertence. A gritante tensão presente com tamanha freqüência nos dá a sensação de que os limites serão findos e a lucidez será perdida na próxima página, pois há pequenas explosões a cada uma ? que provavelmente seria melhor chamar de surpresas, mas estamos no cume da literatura, com aquela ardência toda.
Mas, afinal de contas, para que escrever? […] Por que consumir ? e consumir-se, inconsumado ? horas a fio na faina sem sossego de escarafunchar palavras, conectá-las entre si num tênue filamento, o qual, de encontro a outros, ia conformando pouco a pouco uma trama, um tapete, uma mortalha, se esta mesma urdidura estava fadada, como a de Penélope, a se descoser em breve na noite dos tempos? (pág. 145)
A literatura redime o mundo?
Minha atenção foi levada com maior força para os tipos de mestre que passaram pela vida do personagem enquanto ele escrevia o livro. Mestres que, mesmo que por muito tempo ou apenas minutos, foram capazes de salvá-lo de algum abismo mais fundo do que aquele que já ouvia seus ecos desde quando o romance começou a ser escrito. E é com esses mestres, de variados tipos, que o livro ganhou seus melhores diálogos.
Jaboc é um livro em homenagem às palavras, para que elas se guardem até na desgraça por vezes incompreensível que é escrever a qualquer custo. Otto é poeta, seu amor pela poesia é declarado durante o livro todo. E, por saber incluir o poético na prosa, ele sabe separar um do outro, se mostrando um prosador que ultrapassou, e muito, o suposto nível iniciante.
No início de cada capítulo, talvez o que move secretamente um escritor: as citações. Elas são parte da estrutura vital do livro, de forma clara ou não. São necessárias, sem qualquer exagero. Afinal, do que também é feito um escritor com a doença literária em estado avançado senão de citações que não o deixam esquecer o começo de tudo?
Quem disse que a literatura redimiria o mundo? Quem pensou que a arte resgataria a humanidade? As palavras não passavam de inúteis armas brancas numa guerra de armamentos de destruição em massa. (pág. 207)
A verdade é que cada linha de Jaboc é conseqüência dessa grave doença literária na qual Enrique Vila-Matas é especialista, sempre de forma brilhante: a doença daquele que está propenso a “pensar tudo sob o prisma da literatura” [1]. Mas, “da mesma maneira imperceptível como começou, a doença um dia se acabará”? [2]