Os poderes e a Justiça nos tempos do golpe
Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído e não podem se sobrepor a tal, supondo-se eles mesmos representarem o espírito do povo.
O dia 31 de agosto de 2016, data em que o Senado declarou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, entrou para a história do Brasil como marco de mais um golpe, agora sem o uso formal da violência física e das armas.
Não foi à toa a preocupação manifestada pelo papa Francisco, em maio de 2016, após reunião com o Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), quando afirmou que poderia estar se passando um “golpe branco” em países da América Latina.
Todos que de alguma forma participaram da usurpação contra o povo brasileiro, especialmente os deputados federais, os senadores e o presidente golpista, que ofertaram a mão visível para esse crime, estão marcados pelo gesto vil, e a história, diga-se, jamais os perdoará. Esse golpe coloca foco sobre a legitimidade dos três poderes do Estado, que estão desconectados das razões de ser do povo brasileiro. Não há representatividade real, pois os agentes políticos de Estado não exercem o poder em nome do povo.
Por primeiro, temos no Poder Executivo o presidente golpista, que atua para o projeto que foi derrotado nas eleições de 2014, colocando em prática ações que representam retrocessos sociais de toda ordem, atingindo os direitos econômicos, políticos e sociais, especialmente contra os trabalhadores e a população de menor renda.
Em relação ao Poder Legislativo, temos um Congresso Nacional conluiado com o Executivo golpista, voltado para os interesses das empresas e das forças conservadoras, dissociado do povo brasileiro e linkado com o poder econômico. Isso acontece por uma série de mecanismos, sendo um deles o vício na origem das eleições, já que os ricos é que são os grandes doadores e há grande desigualdade nas condições da disputa, em virtude dos recursos e a forma de utilização dos meios de comunicação de massa. A democracia representativa está alicerçada no poder econômico.
Há um projeto para o Brasil, desenhado por aqueles que usurparam o governo eleito, que almeja rasgar a Constituição rompendo os avanços civilizatórios e democráticos conquistados. Alguns exemplos desse ideário estão materializados em normas e projetos de lei, como a PEC n. 241, de iniciativa do governo golpista e que já conta com a aprovação em dois turnos da Câmara dos Deputados (e tramita agora no Senado, como PEC n. 55); o projeto de escola sem partido; a medida provisória n. 746, que estabelece mudanças no ensino médio; o projeto conhecido como Dez Medidas contra a Corrupção etc.
E o que dizer em relação ao Poder Judiciário? O povo brasileiro faz jus a um Judiciário democrático, assim considerado como aquele capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia que o país agasalhou na Constituição Federal de 1988, no qual está identificada a vontade popular. Essa é a fonte do que o povo brasileiro tem como expectativa de construção de nossa sociedade, com a indicação de seus princípios, fundamentos e patamares éticos. Um Judiciário democrático consegue fazer essa leitura, pois interpreta todas as normas e fatos, sem redução dos direitos fundamentais; ao contrário, garantindo-os.
No cenário do golpe, que começou no dia seguinte à eleição presidencial de 2014, algumas decisões e ações bem ilustraram que há uma distância entre intenção constitucional e gesto. Vejamos…
Em recente decisão de cunho administrativo do Tribunal Regional Federal 4ª Região (TRF4), referente à representação do juiz Sérgio Moro, cujo cerne era a conduta deste ao quebrar o sigilo de conversas telefônicas e divulgá-las, o Tribunal justificou a não abertura de procedimento administrativo por concluir que se tratava de um processo especial, com problemas inéditos e que, portanto, eram cabíveis soluções inéditas. Ou seja, o TRF4, afora um de seus desembargadores (Rogério Favreto), utiliza o discurso totalitário, na medida em que as razões da decisão acolhem a ideia de que cada juiz pode ser a própria norma, o que revela uma concepção absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática.
Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído e não podem se sobrepor a tal, supondo-se eles mesmos representarem o espírito do povo. Nenhum juiz, em hipótese alguma, pode substituir as diretrizes do ordenamento jurídico por suas diretrizes. Isso tem nome: autoritarismo.
O que o TRF4 fez foi admitir que magistrados não devem obediência à Constituição e podem violar o regramento jurídico. Ou seja, admitiu o estado de exceção e, assim o fazendo, ele mesmo exerceu a tirania da justiça.
Outro aspecto, cada vez mais marcante, é o papel do Judiciário, que sempre foi uma peça importante da engrenagem de criminalização dos defensores de direito humanos, dos movimentos sociais e das pessoas que lutam por seu ideário. Aqui não se usa a expressão “criminalização” no sentido estrito, mas se refere ao uso de diversos mecanismos de pressão, que impedem ou tolhem a possibilidade de construção de direitos.
Um dos exemplos mais recentes e da maior gravidade diz respeito ao direito de protesto, que é a base de conquista e manutenção dos demais direitos. Há um número crescente de ocupações de escolas, que em outubro de 2016 ultrapassaram 1,2 mil unidades. Estudantes de todo o Brasil mostram-se contrários à reforma do sistema educacional e aos projetos redutores da educação. Ocupam as escolas, nelas se reúnem; essa é a forma que encontraram para protestar e assegurar seus direitos. Um Judiciário democrático certamente resguardaria o direito de manifestação desses estudantes e identificaria sua vontade. Mas, lamentavelmente, vemos decisões que estão tratando as manifestações como se fossem questões privadas.
E o STF, que deveria ser o guardião da Constituição Federal, está se tornando seu algoz. No campo penal teríamos vários exemplos, mas é suficiente verificar a decisão referente ao princípio da presunção de inocência e a permissão de prisão com o julgamento em segunda instância (HC n. 126.292). Neste caso, o STF avançou na órbita legislativa e sobre a própria Constituição, usando no discurso, como fundamentação, a expectativa popular e o eco das vozes do povo. Atuou como tirano, na medida em que substituiu a Constituição pela suposta vontade do povo, que pode ser qualquer uma, ou seja, aquela que o magistrado diz ouvir ou quer ouvir. Daí me pergunto: por que um tribunal constitucional?
No campo trabalhista há uma sucessão de subtrações de direitos, de autoria do STF, como prescrição quinquenal do FGTS; possibilidade de a administração pública contratar por organização social (OS), ou seja, a terceirização no serviço público; possibilidade de quitação geral ampla e irrestrita; prevalência do negociado sobre o legislado; nulidade da desaposentação; decisão sobre corte de salário para servidores em greve etc.
No caso da Lava Jato, a repetição de arbitrariedades divulgadas pela imprensa é assustadora e vai desde a condução coercitiva, fora dos casos previstos na lei processual penal (feitas de roldão), até as prisões midiáticas, os sigilos rompidos etc.
Neste momento de maior esgarçamento da democracia, tudo de que não precisamos é de um Judiciário que se dedique a outras coisas que não sejam cumprir seu papel.
Com esse panorama, temos a presidenta do STF, ministra Cármen Lúcia, com pretensão de estabelecer uma coalizão entre o Supremo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Forças Armadas, o Ministério da Justiça e o da Defesa, as polícias, o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil a fim de criar um plano para a segurança pública. Evidentemente que não cabe ao Poder Judiciário formular as políticas de segurança, inclusive porque pode vir a julgá-las. Avançar em outros poderes, sob qualquer pretexto, significa romper o equilíbrio estabelecido na Constituição.
Essa ação da presidenta dá uma dimensão do mal que se faz ao país quando magistrados usam a função jurisdicional e o exercício da jurisdição para realizar políticas que não são as próprias do Poder Judiciário ou desvirtuam seu papel de magistrado.
É vexaminosa a conduta do ministro Gilmar Mendes, que não se porta de forma a resguardar a jurisdição constitucional. Como é possível aceitar que um ministro dê inúmeras declarações sobre fatos que irá julgar? Por que a presidenta do STF se mostra indignada pelo tom utilizado pelo presidente do Senado ao se referir a um magistrado, mas se mantém silente quando Gilmar Mendes desdenha a atuação dos ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e da própria Justiça do Trabalho? Como é possível querer que a população guarde confiança no STF se Gilmar Mendes manteve paralisado o processo sobre financiamento de campanha por empresas, assumindo publicamente o que pensava sobre o tema, com indicativos de usar a jurisdição para que sua vontade pessoal prevalecesse? Ainda no julgamento desse processo, assim como em diversas declarações públicas, o ministro deu claras razões para vermos que ele atua não sob fundamentos jurídicos, mas políticos partidários. Tudo isso justifica o pedido de impeachment do ministro, apresentado por diversos juristas.
Este quadro, de breves tintas, mostra a urgência de a sociedade repensar o Poder Judiciário. É premente que nos debrucemos sobre as mudanças reais e estruturais pelas quais o Judiciário deve passar para que seja um poder que dê solidez à democracia e torne realidade as promessas constitucionais.
O rompimento institucional democrático que tivemos com o impeachment da presidenta Dilma está se aprofundando. Espera-se que o Judiciário não renove o papel conivente que teve em relação ao golpe de 1964. Talvez ainda haja tempo, mas, na reforma política, o Judiciário não pode ficar de fora.
Kenarik Boujikian Felipe é magistrada do TJSP e cofundadora da Associação de Juízes para a Democracia