Os que não podem esperar
Ao chegar a La Moneda, o novo governo deparou com uma longa lista de problemas, alguns de caráter estrutural, que pressupõem as transformações relacionadas no programa de Gabriel Boric e que levarão tempo para ser resolvidos. Outros problemas, no entanto, requerem atenção rápida: são os que afetam o cotidiano das pessoas, embora também decorrentes do questionável modelo econômico adotado pelo país e das desigualdades que geraram.
A espiral inflacionária que afeta o Chile – por razões locais e também por turbulências internacionais – exerce forte impacto nos preços dos produtos básicos de consumo das famílias. Em parte, o plano de recuperação econômica deveria se encarregar de corrigir esse ciclo de alta do custo de vida, colocando um freio no desenvolvimento da espiral com medidas de curto prazo. O governo já aumentou o fundo de estabilização dos preços dos combustíveis, que passou de 750 milhões para 1,5 bilhão de dólares, e eventualmente deveria conter os efeitos dessas elevações nos bens básicos, principalmente os alimentos.
Porém, tanto o gás quanto a parafina estão fora desse fundo estabilizador, e com isso o inverno poderá ser particularmente duro para a população mais pobre que usa esses combustíveis para a calefação do lar. A elevação afeta não só esses produtos, mas também se mostra com força nos preços de alguns alimentos, principalmente pão, verduras e frutas, estas últimas impactadas também pela seca em boa parte do país. A população espera que o governo adote medidas que atenuem os efeitos mais perniciosos dessas contínuas altas. O reajuste do salário mínimo, a extensão do IFE ocupacional e a recuperação de empregos vão nessa direção.
O Plano de Recuperação Econômica, no entanto, junto com o atendimento dos problemas mais imediatos decorrentes da inflação, também aponta no sentido de evitar a pressão exercida sobre as dificuldades econômicas pela proposta parlamentar de levar adiante uma nova retirada dos fundos das AFPs – outro problema de envergadura enfrentado pelo novo governo. Três retiradas consecutivas injetaram na economia mais de 50 bilhões de dólares, aos quais virão se somar outros 16 bilhões caso se concretize uma nova retirada.
As autoridades econômicas e os especialistas têm alertado para os efeitos de distorção que essa nova injeção de recursos provocaria na economia, com impacto na inflação. Argumentam que o cenário é diferente, que são poucas as medidas de restrição às cadeias de produção, embora falte recuperar o emprego, e que o maior problema é que mais de 4 milhões de pessoas já não têm fundos, portanto a retirada aprofundaria a desigualdade. A proposta de uma nova retirada encontra alta aceitação entre a população, que parece não estar disposta a esperar que se concretize a reforma provisional prometida, já que esta, de qualquer modo, não avançará no curto prazo. O governo enfrentará um dilema: ou evita de todas as formas a nova retirada e arca com o custo político de sua decisão, ou tenta regular a operação enquanto acelera a reforma de fundo, junto com um pacote que atenue o impacto político que isso geraria.
O terceiro problema que requer atenção urgente é o da violência manifestada diariamente em diferentes pontos geográficos e sociais. A volta presencial às aulas trouxe à tona os impactos na saúde mental da população ocasionados pela longa duração das medidas de restrição adotadas em razão da pandemia viral. A esfera educacional mostra claramente esse problema: violência escolar, nos recintos universitários, nas ruas contra as mulheres, nas comunidades, lugares supostamente mais protegidos que outros, onde ela também está presente, só que mais naturalizada, como nas populações em que atuam bandos de narcotraficantes ou em bairros onde há disputas territoriais do crime organizado.
A violência do Estado também continua presente, principalmente na atuação da polícia, que parece não respeitar os protocolos sobre o uso de armas ou sobre como lidar com as mobilizações sociais e/ou de protesto. A reforma das polícias também levará tempo, requer diálogo, trabalho parlamentar, mudanças na legislação, nas normas e regulamentos etc. Isso, no entanto, não impede que as autoridades adotem medidas que possam ir assegurando o controle civil sobre as polícias e seus procedimentos.
Depois de semanas de um notável acolhimento cidadão, que consolidou um “carinho popular” pelo presidente Gabriel Boric, a aterrissagem nas tarefas de governo foi áspera, dura, às vezes complicada. Após três semanas instalado em La Moneda, o novo governo não teve os “cem dias de paz” a que se referem as tradições republicanas, nem mesmo uma “lua de mel” no âmbito político. As forças reacionárias – aquelas que se opõem às transformações e que se enraízam em núcleos que vão além da direita opositora – não concederam nenhuma trégua. Golpeiam simultaneamente, com todo o seu arsenal midiático, tanto o governo que entra quanto a Convenção Constitucional, ambas instâncias que representam uma ameaça a seus interesses políticos e econômicos.
Já se sabia que o cenário em que os novos governantes assumiriam seria difícil. Foram bem poucos os problemas evidenciados nas mobilizações populares que a administração anterior se dispôs a encarar; na realidade, ela deixa um legado de precariedade no cotidiano das pessoas, o saldo de uma crise mal enfrentada, com limitações orçamentárias – 20% de redução no orçamento –, com mais de 1 milhão de empregos perdidos durante a pandemia e ainda não recuperados e que atingem principalmente mulheres e jovens, além da espiral inflacionária que afeta os produtos básicos, dos conflitos agravados na macro zona sul com o povo-nação mapuche e a crise migratória e humanitária no norte, pela migração mal controlada. Como pano de fundo, resta ainda a pandemia viral, cujos efeitos ainda penalizam a população.
O ritmo necessariamente gradual das reformas estruturais, no entanto, não pode ser desculpa para não avançar em medidas imediatas nos âmbitos mais afetados pelas altas, pela precariedade e pela violência contra grupos vulneráveis.
Libio Pérez é editor geral da edição chilena de Le Monde Diplomatique.
Tradução do espanhol por Frank de Oliveira
Leia os outros artigos do especial Novos rumos no Chile
Conheça o site da edição chilena do Le Monde Diplomatique