Os refugiados na selva de Darién
Refugiados que necessitam se deslocar por terra da América do Sul aos Estados Unidos têm que passar pela selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, um dos lugares mais perigosos e difíceis de atravessar do mundo
Em Vidas secas, livro do alagoano Graciliano Ramos, o casal Fabiano e sinhá Vitória, seus filhos “menino mais novo” e “menino mais velho” e a cadela Baleia são migrantes que fogem da miséria e formam uma família oprimida pela seca e pisoteada pela indiferença. Já Os retirantes, pintura do artista brasileiro Cândido Portinari, aborda o tema da migração nordestina, triste realidade de parte da população brasileira, que deixa seu lugar de origem em busca de melhores condições de vida em outras partes do país. A pintura exibe uma família de nordestinos que se desloca de sua terra para escapar da seca, da fome, da miséria e da falta de perspectiva. São duas obras que representam a dura realidade de milhões de pessoas no Brasil e no mundo, obrigadas a fugir em busca de sobrevivência.
Atualmente, um contingente de refugiados forma um exército de reserva à espera da própria sorte. São pessoas que estão fora de seu país de origem em razão de temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política, além da grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.
Segundo relatório da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), no final de 2022, 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo estavam em situação de deslocamento forçado, e mais de uma em cada 74 pessoas no planeta foi obrigada a fugir. A Síria foi o país que mais gerou refugiados, e cerca de 5,5 milhões de pessoas foram obrigadas a fugir dos conflitos que assolam o país. Os refugiados do Afeganistão aparecem em segundo lugar. As crises na África subsaariana também levaram a novos deslocamentos, e 737.400 pessoas deixaram o Sudão do Sul para escapar da crise humanitária. Os países de Burundi, Iraque, Nigéria e Eritréia também foram afetados. A Turquia recebeu o maior quantitativo de migrantes (2,9 milhões), seguida do Paquistão (1,4 milhão).
Na América Latina, o número de refugiados também aumentou. Segundo Serena Sorrenti, especialista em migração e violência da Unidade Médica Brasileira (Bramu), de Médicos Sem Fronteiras, há três situações humanitárias que produzem esse cenário no continente: pessoas vindas da Venezuela, migrantes oriundos do Haiti e o terceiro e mais antigo grupo, as pessoas provenientes do Triângulo Norte da América Central, formado por Guatemala, Honduras e El Salvador, cuja migração é estimulada pela violência de gangues. Existem aproximadamente 2 milhões de pessoas que deixaram suas casas na última década, saindo dessa região rumo aos Estados Unidos.
A selva de Darién é uma das rotas dos refugiados na América Latina. A região é uma área geográfica selvagem, no limite da América Central e da América do Sul, entre a Colômbia e o Panamá. Constitui-se como um dos lugares mais perigosos e difíceis de atravessar, e é o único ponto terrestre que conecta as partes sul e norte do continente. Os refugiados que necessitam se deslocar por terra da América do Sul aos Estados Unidos têm que passar por esse lugar. Em 2022, aproximadamente 250 mil pessoas cruzaram por Darién. Em 2023, até o mês de agosto, mais de 300 mil pessoas já haviam atravessado a selva. Portanto, os oito primeiros meses do ano já superaram as cifras de todo o ano passado.
Segundo Sorrenti, os migrantes atravessam a selva de Darién com ajuda de um guia, e dependendo do valor que pagam, têm acesso a uma rota mais longa ou mais curta. O caminho pode ser de dois a sete dias e há possibilidade de entrar por lancha ou barco, evitando áreas mais difíceis de cruzar.
A época do ano também interfere no percurso, pois em alguns meses há muito lodo por causa da quantidade de chuva que afeta a região. Também há animais que assustam os migrantes e insetos cujas picadas podem causar reações alérgicas. Há elevado risco de violência sexual e casos de estupro na saída da selva, cujas vítimas acabam chegando ao local onde Médicos Sem Fronteiras tem um ponto de atendimento. O número de estupros é alto, e já houve épocas em que quase 80% das mulheres que saíam do local tinham sofrido algum tipo de violência sexual, necessitando assistência. Há muitos migrantes que relatam ter visto cadáveres durante o percurso, além de crianças que morreram na travessia de rios e outras situações muito duras, como estupros coletivos.
Se em Vidas secas e em Os retirantes a causa da migração era a miséria, para Sorrenti, atualmente, as razões dessa crise humanitária são diversas, envolvendo conflitos e desigualdades que continuam a se replicar em diversas regiões do mundo. Os conflitos produzem populações que se deslocam internamente, dentro das fronteiras dos países, ou fora delas, internacionalmente. Essas são as situações tradicionais. Entretanto, atualmente existem também outras causas, marcadas por dinâmicas de desigualdades econômicas e políticas que não preenchem critérios de conflito, embora produzam violência. Essas desigualdades geram migrações de fluxo misto, pois dentro do mesmo fluxo muitas pessoas saem de suas casas por razões de conflito, violência, desigualdades econômicas e políticas.
As causas da migração, muitas vezes, não são resolvidas nos países de origem e continuam a produzir fluxos de refugiados. Invariavelmente, nos países de destino a situação não melhora, pois as políticas públicas não levam em conta a presença da população migrante, que possui necessidades específicas, mas que também contribui para a economia e o desenvolvimento do país receptor. Assim, não há esforço por parte dos países de destino em desenvolver políticas de governança para migrações inclusivas, o que pode acabar fomentando sentimentos de discriminação e xenofobia.
O perfil dos migrantes mudou com o passar do tempo na América Latina, pois no início da crise na Venezuelana a maioria era de pessoas com nível educacional mais alto. Por exemplo, os primeiros a saírem do país foram professores e médicos, o que faz com que atualmente exista uma escassez desses profissionais na Venezuela e contribui para o colapso dos serviços de educação e de saúde.
Atualmente, entre os migrantes que atravessam a selva de Darién, um quarto são menores de idade, muitos deles crianças, e as mulheres representam também cerca de um quarto do total. Já os homens são metade do contingente. Muitas pessoas viajam com familiares ou conhecidos que encontram ao longo da rota, e é frequente haver mulheres com crianças, além de adolescentes grávidas. Em situações de migração, a gravidez tende a ter muitas complicações, sendo também estes os perfis mais vulneráveis nos fluxos migratórios e os que mais são expostos à violência ao longo do caminho.
A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados foi formalmente adotada em 1951 e representa um marco importante, principalmente para resolver a situação dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Esse tratado global define quem vem a ser um refugiado e esclarece direitos e deveres. Na América Latina, há a Declaração de Cartagena, que cobre as situações peculiares do continente, como a violência de gangues. Porém, esse instrumento não é aplicado por todos os países e não é integrado às legislações nacionais.
A vulnerabilidade dos refugiados que cruzam a selva de Darién e de tantas outras partes do mundo é desesperadora, cuja situação simboliza a crise política, a ausência de solidariedade e a degradação da existência humana no mundo atual. A selvageria das relações sociais não é apenas obra de ficção literária, mas representa cruelmente sociedades cada vez mais individualizadas, que violentam o direito de uma multidão de desesperados. Formam um exército de “meninos mais novos”, “meninos mais velhos” e famílias pisoteadas pela indiferença. São os próprios condenados do diabo.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
*Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.
O QUE ISSO TEM HAVER COMIGO!? SERÁ…!?
Triste realidade da atual conjuntura social, alias da conjuntura escatológica da humanidade! Para isso, é indispensável o esforço e a contribuição de cada um de nós para a criação de políticas públicas a nível local, regional e global que contrapõe toda e qualquer forma de discriminação social, e somada a isso uma frente face de desindividualização da sociedade e dos problemas sociais (“não é meu o problema/o problema não é meu”). Lembrando que o “hoje”, sabemos cuidar e dar conta, mas o “amanhã”!? Ainda que preveníssemos, quem nos garanta que vai dar certo como bem prevenimos!? Em outras palavras, hoje é com os outros, muito distante e diferente de nós ou o contrario, bem próximos e nossos conhecidos, mas como não somos nós mesmos, nada estamos fazendo e até mesmo tentamos impedir os que estão tentando fazer algo para contornar a situação, como se fosse que os problemas sociais são um constante imutável, que nunca pode nos atingir, visto que idealizamos muito mais o ditado que diz “cada um por si, e DEUS por todos”. Esquecemo-nos que os problemas sociais é como o provérbios que diz que “ se a casa do seu vizinho pegar fogo, melhor ajudar-lhe com a água”, pois se não ajudar-lhe com a água provavelmente que a próxima casa seria a sua, visto não tem como deslocar a sua casa para se escapar do fogo, por mais que retires todas as suas pertenças de dentro da sua casa. Esquecemo-nos também que o diagnóstico precoce de qualquer que seja patologia é fundamental para o seu tratamento ou que “é melhor prevenir de que remediar”. Não esperemo-nos pela a fórmula mágica para a resolução dos mais variados problemas que a humanidade vem enfrentando desde que as diagnosticamos. Por este motivo, por mais que pareça ou acreditemos que não é nosso problema (mais que na verdade é) e que dificilmente nos atingiria, não devemos esquecer que a natureza está além da ciência, basta olharmos ou pensarmos nos últimos acontecimentos que assolou a humanidade.
Por isso, cabe a mim, a você e a todos nós engajarmos coletivamente na luta contra esse flagelo (discriminação e individualização da sociedade) que vem assolando a sã convivência humana outrora vivida pela humanidade. Vale mais tarde começar de que nunca ter começado! “Quiçá”, a humanidade volta a conhecer os dias melhores”.