Os reis, o Estado e a terra
Confrontado pelo descontentamento popular, o gov. ugandês adota uma postura forte: repressão policial, vigilância da mídia e intimidação de opositores. O aumento do custo de vida e escândalos de corrupção fragilizam o regime.A crise reaviva tensões entre monarquias tradicionais, que reivindicam direitos sobre as terrasAlain Vicky
As terras que nos pertencem estão cada vez mais valorizadas, queremos recuperá-las e administrá-las, mas o governo não quer saber: age como se fosse Deus”, denuncia Charles Peter Mayiga, porta-voz de Buganda, o mais importante dos reinos tradicionais de Uganda. Os bagandas somam 6 milhões de pessoas espalhadas pelas margens do Lago Vitória, por Campala (capital federal) e pelo centro de um país com 32 milhões de habitantes. Essas populações “têm impressão que seus territórios estão inexoravelmente sendo absorvidos por outras, o que suscita um ressentimento profundo. A tensão aumenta. Os algozes de hoje podem ser os expulsos de amanhã”,1 analisa o historiador Phares Mutibwa.
Uganda, que possui um terço das terras agricultáveis do Leste Africano, tornou-se uma das novas fronteiras de investidores estrangeiros, na maioria vindos do Golfo Pérsico e do subcontinente indiano. Nos últimos quatro anos, cerca de 800 mil hectares foram cedidos ou arrendados por contratos de longo prazo. Teatro de uma especulação imobiliária frenética, Campala saltou de 2.850 habitantes em 1912 para 2 milhões hoje em dia – amontoados em apenas 201 km². A guerra da República Democrática do Congo (RDC) no fim dos anos1990, a do Sudão até 2005 e a crise eleitoral do Quênia durante o inverno de 2007 levaram muitos chefes de guerra e homens de negócios a investir no bem sinônimo de segurança: terras. “Não há forma mais simples de lavar dinheiro. Se somarmos o capital da corrupção, o de certos oficiais ugandenses que participaram das depredações da guerra dos Grandes Lagos e os desvios, por exemplo, dos fundos de apoio ao desenvolvimento, o resultado estimado será a medida da alta dos preços dos terrenos. Nas colinas mais ocupadas e cobiçadas da capital, meio acre [20% de um hectare] pode chegar a US$ 500 mil. É um círculo vicioso que atrai cada vez mais dinheiro”, comenta o advogado David Mpanga. A situação fomenta ainda mais o rancor secular do povo baganda contra o Estado central.
Antes de tornar-se capital do país, com a independência, Campala era o centro do reino de Buganda. Em função da extrema centralização do poder e do posicionamento geográfico ideal, esse Estado pré-colonial, verdadeira monarquia constitucional fundada no século XIV, impôs-se a partir de 1890 como o principal parceiro dos colonos britânicos. Advindos das margens do Oceano Índico, os colonos ocuparam a região anteriormente descrita por Winston Churchill como a “pérola da África”. Em 1900, um acordo entre Londres e o kabaka (soberano) do reino transformou Buganda em protetorado inglês. Em troca de 500 libras esterlinas concedidas ao rei, Londres se apropriou de 23,3 mil km² do reino (dos 50,76 mil km² que o constituíam), nos quais o território de Campala estava incluído. À exceção de uma parcela de 906 km² reservada ao uso do monarca, as terras comunitárias restantes foram arrendadas aos chefes tradicionais dos 52 clãs de Buganda. Sob o termo mailo, a legislação anglo-saxônica permitiu que não bagandenses também pudessem se apropriar dessas terras: “Uma simples assinatura no pé de uma folha de papel era suficiente”, explica Mutibwa.
Aliança contra Idi Amin Dada
Em 1962, com a independência, esses 23,3 mil km² do ex-protetorado voltaram a fazer parte do reino, cujo soberano, Edward Mutesa II, se tornou o primeiro presidente de Uganda. Após quatro anos, em 1966, o primeiro-ministro Milton Obote, originário do norte do país, decidiu colocar um fim nesse verdadeiro “Estado dentro do Estado” e suspendeu a Constituição. Ele destituiu o kabaka e ocupou o cargo de presidente. No dia 24 de maio do mesmo ano, as tropas do governo, lideradas por Idi Amin Dada, ocuparam o palácio real na colina de Mengo, em Campala, ação que resultou em mais de cem mortos entre os partidários de Mutesa. O rei/presidente deposto se exilou em Londres e faleceu em 1969. Os 23,3 mil km² foram confiscados pelo Estado, e os reinos tradicionais abolidos. Os vinte anos seguintes de ditadura, intervenções estrangeiras e rebeliões – além do caos gerado pelos fluxos migratórios forçados – estimularam a instalação de muitos não bagandenses nas antigas terras reais, antes deles mesmos sublocarem esses territórios a migrantes oriundos de outros reinos do país.
Quando Yoweri Museveni subiu ao poder, em 1986, Buganda esperava reconhecimento. O novo homem forte de Uganda não teria vencido sem o apoio do reino mais importante do país: os rebeldes do Exército de Resistência Nacional (ERN) não teriam chegado a Campala e nem seu braço político, o Movimento Nacional de Resistência (MNR), teria tomado o poder.2 Em 1993, Museveni restaurou os reinos e o novo kabaka de Buganda, o rei Ronald Muwenda Mutebi II, recuperou seu palácio e os 906 km² reservados ao uso real. Os 23,3 mil km² comunitários, porém, foram mantidos nas mãos do Estado central. A reaquisição desses territórios pelos clãs tornou-se, assim, a grande fonte dos conflitos entre o reino e o Estado.
A partir do fim dos anos 80, os arrendatários de fundos internacionais solicitaram a modificação do sistema tradicional de uso das terras em Uganda, considerado obsoleto, para um sistema de propriedade privada que pudesse responder às leis de oferta e procura. Preocupado em dar sinais de “boa governança”, o presidente Museveni levou a cabo uma política de privatização acelerada. Em julho de 1998, uma lei foi aprovada para facilitar essas transações e formalizar a propriedade das terras. Os conselhos de administração territorial dos distritos (District Land Boards) se estabeleceram como intermediários dessas negociações e começaram a adjudicação das terras. Assim como em outras reformas realizadas com o apoio de instituições financeiras internacionais, a lei de 1998 beneficiava sobretudo investidores privados poderosos. As principais vítimas do novo sistema foram os ocupantes sem o título das terras – em geral instalados nesses territórios há gerações e para quem essa “modernização” jurídica significou a espoliação pura e simples.
Os litígios se acumulam nos tribunais
“As mudanças no regime legal não ajudaram ninguém, exceto aqueles que criaram grandes empresas destinadas a explorar comercialmente essas terras. Possuir um título de propriedade não motiva somente o investimento, mas também gera um capital que justifica o pedido de empréstimos. Esse aspecto, somado ao entusiasmo do Banco Mundial, fez com que Museveni adotasse a lei de 1998”,3 explica Anne Perkins, jornalista do The Guardian. Em 2010, com a preocupação de apaziguar as tensões, uma nova legislação permitiu às vítimas acionar a justiça. “Se, por um lado, o governo parecia bem intencionado ao formular a medida, essa tentativa de dar algum ar de legalidade ao emaranhado de relações tradicionais complexas entre proprietários e ocupantes ajudou a recrudescer os conflitos fundiários”,4 conta Livingstone Wewanyana, diretor executivo da Fundação Ugandesa pelos Direitos Humanos (FUDH).
A partir de propaganda veiculada em rádios comerciais e da elevação das taxas sobre as terras que ainda restavam, o reino de Buganda contestou ativamente a lei para a criação do Buganda Land Board. De seu lado, o governo defendeu-se perante a mídia internacional: “Os notáveis bagandas são os principais proprietários de terra da região central, e o kabakaé o primeiro entre eles. A reforma agrária deveria cassar o sistema de propriedade deles”.5
No tribunal de Campala, os litígios fundiários se acumulam. Os mais pobres entre os pequenos ocupantes não podem dispor dos serviços de um advogado. Os casos de títulos de propriedade falsificados são incontáveis. Nos muros dos bairros populares da capital, as placas se multiplicam: “Essa casa não está à venda”. É uma forma de protesto contra a comercialização selvagem de terrenos sem o conhecimento ou o aval de seus proprietários.
Atualmente, as favelas de Campala – que cobrem 21% da capital – são o alvo cobiçado pelos empreendedores. Os loteamentos reservados à nova classe média cresceram até as fronteiras com essas ilhas informais de miséria, povoadas principalmente por migrantes do norte acholi, majoritariamente funcionários de empresas de segurança privada em pleno crescimento. Nesse cenário, também se encontram notáveis do reino de Buganda. Instalado sobre uma colina em frente à do palácio real, o governo do kabakaestá dividido em dois grupos: os conservadores, cujo pilar reivindicativo é a restituição dos 23,3 mil km²; e os jovens renovadores, prontos para fazer parte do círculo de negócios do presidente Museveni. A decisão sobre o que fazer com os 906 km² de terras gerenciados pelo Land Board de Buganda é o tema das próximas discussões.
A Constituição de 1995 estipula que os reis de Uganda – há no país cerca de dez reinos tradicionais – devem desempenhar um papel cultural. “O artigo 246 proíbe os chefes tradicionais ou culturais de fazer política. Por quê? Porque quando participam da vida política, não contentes em dividir seus reinos, também geram problemas ao governo central”, explica Apollo R. Nsibambi, então primeiro-ministro. Em 2007, Buganda foi o primeiro reino a atravessar essa linha ao mobilizar milhares de pessoas em Campala. O protesto foi uma resposta à medida do governo de arrendar 7,1 mil hectares (dos 30 mil) da floresta de Mabira ao grupo açucareiro indiano Mehta. A empresa esperava desenvolver na região a exploração do bioetanol. O kabakapropôs que o governo arrendasse uma parte de seus 906 km², mas a ideia foi recusada. Frente ao cenário tenso, as autoridades decidiram congelar o projeto. Estabeleceu-se uma “guerra fria” entre o reino de Buganda e o regime do presidente Museveni.
No dia 10 de setembro de 2009, manifestantes ocuparam novamente as ruas da capital. Dessa vez, o alvo dos protestos foi a decisão do governo de proibir o kabaka de visitar a seu critério um dos distritos do reino cujo chefe tradicional, não bagandense, havia sido nomeado pelo presidente Museveni. “É a tática do famoso ‘dividir para reinar’”, sublinha Yacine Alume, professor de ciências políticas da Universidade de Makerere. A repressão policial deixou um rastro de 30 mortos.
Novamente, o petróleo e o gás
Mas é principalmente no leste do país, nas terras tradicionais bunyoro, onde a extensão do Lago Albert faz fronteira oficial com a República Democrática do Congo, que os riscos de conflitos são mais elevados. Ali, o petróleo e o gás, descobertos em 2006, podem desestabilizar a qualquer momento a distribuição fundiária. Ao norte do imenso Vale do Rift, a região abrigaria o equivalente a 2 bilhões de barris de petróleo. A companhia irlandesa Tullow Oil já abocanhou 150 km². Os franceses da Total e os chineses da companhia pública Chinese National Off-Shore Oil Company (CNOOC), após investirem US$ 1,5 bilhão cada, acabam de adquirir um terço das extrações realizadas pela Tullow Oil. Os italianos da Ente Nazionale Idrocarbur (Eni) também estão à espreita.
Está prevista a construção de uma refinaria que poderia, em 2016, garantir a independência energética do país – 20 mil a 25 mil barris por dia. O resto seria exportado para Mombasa, no Quênia, por um oleoduto cuja construção está parada: Trípoli contribui financeiramente com o projeto, e a guerra na Líbia pesa sobre o avanço das obras. Cerca de 60 km² de terras comunitárias pertencentes ao reino de Bunyoro teriam sido compradas, em 2010, por “personalidades bem colocadas”.6 Os certificados de propriedade teriam sido obtidos a partir do suborno de funcionários da Comissão de Terras de Uganda (Uganda Land Comission). Entre esses notáveis prevaricadores, está a princesa de Bunyoro, antiga presidente do grupo parlamentar do Movimento Nacional de Resistência e ministra da informação, Kabakumba Masiko. Em Campala, ela promete: “O petróleo transformará a região para melhor”. Sem dúvida, é por esse motivo que, atualmente, a zona está protegida por uma unidade de elite da guarda presidencial – liderada por Muhoozi Kainerugaba, o próprio filho do chefe de Estado.
“Não há muitos lugares no mundo onde a exploração petroleira se dá em meio a leões, elefantes, búfalos e girafas”, observa Brian Glover, diretor-geral da filial ugandense da Tullow Oil, em seu relatório de 2009. A descoberta de petróleo na região rendeu um agrado à empresa irlandesa: um certo “reino de Bandura Petar”. O problema é que ninguém em Bunyoro ouviu falar de um soberano com esse sobrenome. Em Masindi, o engenheiro Kiiza Yaberi, “primeiro-ministro”7 do reino, não se surpreende: “Mais uma mentira! Quando o petróleo foi descoberto, estávamos muito felizes. Pensávamos que o Bunyoro recuperaria seu atraso e sairia da situação miserável deixada de herança pelos colonos britânicos. Ainda hoje não dispomos de nenhuma universidade e faltam médicos no hospital. Em seguida, descobrimos que todos os papéis tinham sido assinados sem o conhecimento ou qualquer palavra da comunidade”.8
“Quando o petróleo começar a ser explorado, é muito possível que a juventude do reino ataque o oleoduto”, analisa Henri Ford Mirima, responsável pela comunicação do reino. Yaberi confirma a previsão: “Não queremos conhecer os problemas dos habitantes do delta petroleiro do Níger, na Nigéria.9 Atualmente, a situação me preocupa. Tem aparecido cada vez mais gente para comer em nossa mesa sem ser convidado e, qualquer dia desses, podemos acabar com a festa”.
Beti Olive Namisango Kamya, candidata bugandense derrotada nas eleições presidenciais de 2011, diz conhecer a forma de parar o inquietante tique-taque dessa bomba-relógio que atiça as tensões com o governo e entre os reinos tradicionais: “Uganda deveria voltar a ser um Estado federal e permitir que cada região aproveite seus recursos minerais e agrícolas da melhor forma possível, em lugar de essas riquezas serem confiadas aos governos regionais nomeados pelo regime de Museveni – verdadeiros buracos negros”. O federalismo, junto com a restituição dos 23,3 mil km², é uma antiga reivindicação do reino de Buganda. O todo foi reagrupado sob o conceito baganda de afye, “nossas coisas” em língua vernácula. Kamya nota que outros reinos buscam “uma solução alternativa a esse sistema político herdado dos colonos britânicos e que perpetua a subserviência aos interesses da elite”. Seu partido se chama Aliança Federal por Uganda, cujo logo é uma girafa (“animal cuja vista vai longe”) e o lema, uma citação de Victor Hugo: “Nada é mais poderoso que uma ideia na hora certa”.
No dia 18 de fevereiro, Museveni foi reeleito como chefe do Estado ugandense para o quarto mandato de cinco anos. Desde então, em Campala, as manifestações contra o alto custo de vida e o apoio à oposição se multiplicaram. Para o editorialista político Ibrahim Asuman Bisiika, “a massa crítica do descontentamento ainda não foi alcançada. A geração Museveni, nascida na segunda metade dos anos 1980, quando ele subiu ao poder, não quer perpetuar as tragédias do passado, mas a questão fundiária poderia muito bem aumentar o nível de sua cólera e se espalhar pelo conjunto do país”
Alain Vicky é jornalista.